Portugal e Espanha: Vítimas do próprio pioneirismo

Portugal e Espanha, católicos e - quando se formaram nacionalmente -  confinantes com muçulmanos, colocavam-se na área de choque entre duas civilizações que à época se digladiavam. Daí conhecerem um feudalismo peculiar no qual desde logo sobressaiu a figura sobranceira da Coroa.

Portugal e Espanha, católicos e - quando se formaram nacionalmente -  confinantes com muçulmanos, colocavam-se na área de choque entre duas civilizações que à época se digladiavam. Daí conhecerem um feudalismo peculiar no qual desde logo sobressaiu a figura sobranceira da Coroa sob cuja égide deu-se a precoce unificação dessas nações, as  primeiras a adquirirem os contornos distintivos dos Estados modernos.

Iraci del Nero da Costa *

  

O resultado maior destes sucessos históricos encontra-se na  posição pioneira assumida pelas duas nações da península ibérica na expansão marítima européia, por elas sistemática e vitoriosamente encetada. Assim,Portugal e Espanha, que devem ser vistas como os grandes vencedores do momento inicial da expansão ultramarina, chegam imediatamente ao grande comércio mundial, cabendo à Espanha, desde logo, o ouro e a prata.

Como sabido, seus navegantes não cingiram-se, como haviam feito anteriormente os navegadores nórdicos, ao mero reconhecimento de novas áreas do planeta. Não, os exploradores ibéricos executaram missão mais complexa e completa pois estabeleceram as bases de dois grandes impérios mundiais ocupados em comerciar, colonizar e explorar economicamente as terras descobertas. Assim, o tratado de Tordesilhas não representa só a divisão pela metade do globo, mas anuncia sua ocupação efetiva por dois povos arrojados, destemidos e cosmopolitas que se abalançaram a dividir o globo em duas metades, apoderando-se de riquezas, de terras e de gentes.

Não seria descabido, pois, propor que os movimentos observados nas demais nações européias definiram-se como ações reflexas mediante as quais esses retardatários e "desprivilegiados" pretenderam carrear para si os ganhos auferidos pelas duas grandes potências hegemônicas em escala mundial.

Correlatamente, pode-se tomar o êxito econômico dessas duas potências como um dos elementos que contribuíram fortemente para a afirmação da Revolução Industrial.

Assim, Portugal e Espanha não devem ser pensadas como elementos marginais de um movimento "progressista" que levou ao desenvolvimento tecnológico e socioeconômico propiciado pela Revolução Industrial, mas, sim, como relevantes componentes impulsionadores de tal movimento.

No Brasil, a Coroa empreende, pioneiramente, a valorização da terra como forma de viabilizar sua ocupação. Com as donatárias e mediante a doação de sesmarias e o fabrico do açúcar atrai o capital particular para a tarefa de ocupar e povoar uma área na qual esperava encontrar os minerais preciosos que tão solicitamente se ofereceram aos espanhóis. Solução genial, dirão alguns; nem tão, porque empiricamente achada, arguirão outros; sim, num mundo pré-cartesiano, redarguirão aqueloutros. De toda sorte, genial, repisamos nós.

Enquanto, no Brasil, o capital escravista-mercantil (1) levava avante a tarefa de produzir ganhos para colonizadores, Coroa e mercadores metropolitanos, Portugal e Espanha davam continuidade, sob a égide do capital comercial à luta pela conquista dos mercados  mundiais estendendo sua presença e influência do Novo Mundo ao extremo Oriente.

O capital comercial achava-se concentrado em poucas mãos que não se perdiam num cipoal de pequenos empreendimentos e que souberam acomodar-se de sorte a fazer prevalecer, tanto internamente e em suas dependências coloniais como nos mercados que dominavam, as práticas mercantilistas consubstanciadas nos monopólios, no fechamento de mercados e na institucionalização de benesses e privilégios que visavam a garantir a permanência indefinida dos ganhos oriundos de  trocas desiguais, ganhos estes próprios do capital mercantil que, assim, não se viu compelido a transmudar-se.

Enfim, os capitalistas dessas nações não se defrontaram com situações concretas - como as que prevaleceriam, em maior ou menor grau, na Holanda, Inglaterra e França - que os obrigasse a imprimir mudanças na condução de seus negócios, na forma como se relacionavam com o mundo produtivo e na maneira como se organizavam politicamente. Destarte, os lucros que auferiam do puro ato de intermediar a compra e a venda puderam continuar a acumular-se sem óbices; assim, o capital comercial deparou-se com um ambiente ideal para repor-se em escala ampliada. Não se impuseram, aos capitalistas portugueses e espanhóis, a concorrência e a inovação. Eles não foram obrigados a concorrer! Puderam gozar, sem maiores percalços, esta antessala do paraíso representada pela fórmula D-M-D', em muito, próxima da fórmula excelsa, a do capital usurário: D-D', a transmutação imediata de dinheiro em mais-dinheiro, ou seja, o nirvana sonhado por todo  capitalista consciente do real papel social que lhe cabe desempenhar.

Vale aqui, creio, uma breve reflexão sobre o "espírito do capitalista". A ação e consciência do capitalista, enquanto personificação do capital, estão dirigidas pela valorização do valor e tão só pela valorização do valor. Se para alcançar tal objetivo for preciso "valorizar" o trabalho ele será valorizado; se para atingir tal meta for necessário concorrer então concorrer-se-á; se para tanto é imperioso desenvolver as técnicas e aumentar a produtividade isto será feito; se para maximizar os ganhos se impuser a continuidade de práticas que gerações futuras considerarão arcaicas ou pouco inventivas nelas perseverar-se-á, caso vivenciado por Portugal e Espanha.

Evidentemente, estas minhas afirmações não negam o conjunto de "atrasos" (técnico, cultural, religioso, político etc.) das duas nações em tela, apenas coloca a História em seu leito natural - "historicamente dado" - deixando de lado as apologéticas interpretações dos avanços decorrentes da afirmação e desenvolvimento do capitalismo europeu.

Portugal e Espanha ao estagnarem-se, ao congelarem as mentes e as instituições e ao se prenderem a uma forma de capital tradicional procuram, como avançado, a maior proximidade possível com a verdadeira alma burguesa, qual seja a maximização dos ganhos no mais curto espaço de tempo possível. Lembremos, ademais, que essa atitude não se deveu a uma falsa percepção do momento histórico; não, os capitais aplicavam-se nas atividades mais rentáveis daquela quadra e assumiam a forma  mercantil porque essa forma aliada àquelas atividades propiciava o maior retorno possível, frisemos, naquele momento.

Haveria alternativas? Sempre as há, aqui a questão é saber se eventuais alternativas conseguiriam impor-se. Havia clima político, econômico, psicológico e ideológico para, digamos, "pensar-se mais a  longo prazo"? Para "pensar" sim, para implementar não. Ora é  justamente este o ensinamento das repostas às crises do segundo meado dos séculos XVII e XVIII. Nas duas oportunidades, na primeira sob inspiração de Duarte Ribeiro de Macedo e na segunda sob a condução enérgica do Marquês de Pombal, as práticas inovadoras e que apontavam no sentido do desenvolvimento manufatureiro autônomo de Portugal são  adotadas e seus frutos positivos chegam a materializar-se; não obstante, superadas, em espaço de tempo relativamente curto, as causas imediatas das crises, e na ausência de um conjunto expressivo de empreendedores vinculados aos  "interesses industrializantes" que certamente não chegaram a cristalizar-se no aludido espaço de tempo, impõem-se novamente as velhas práticas. Sobre a crise do século XVII diz Vitorino de Magalhães Godinho: "Os anos de 1690 a 1705 foram de incontestável  incremento e prosperidade mercantil para Portugal. Ora, sendo a política industrial uma resposta à crise comercial, uma vez esta passada, a primeira perdia a sua razão de ser." (2)

Os dois exemplos aqui arrolados evidenciam a capacidade de "resposta" de Portugal em face de condições adversas demonstrando, ademais, ainda estar viva, já avançado o século XVIII, a flexibilidade e maleabilidade de aculturação características dos primeiros navegadores e colonizadores lusos. Assim, como avançado, a volta às velhas práticas não se deu por incapacidade de formulação de alternativas nem pelo apego irracional a posturas conservadoras, mas, sim, pela adoção estrita da "racionalidade" econômica própria do capital, em geral, e do capital comercial, em particular: auferir, no mais curto espaço de tempo, o máximo possível de ganhos.

Prosseguir naquele momento com o projeto "industrializante"  que aproximaria Portugal do "modelo" inglês seria renunciar a lucros  imediatos em favor de eventuais ganhos futuros sobre os quais não se tinha, à época, segurança alguma, pois poderiam mostrar-se ilusórios, não passando, tal "modelo", de uma grande esparrela. "Realisticamente", os portugueses anteciparam o sombrio "vaticínio" de J. M. Keynes: maximizemos aqui e agora, pois "no longo prazo todos estaremos mortos."

Enfim, Portugal e Espanha foram vítimas de seu próprio pioneirismo calcado que estava no capital comercial, na sua precoce constituição como nações modernas e na emergência precursora, em ambos países, de um poder político central unificador e caíram em armadilha por eles mesmos armada ao não desenvolverem o capital industrial porque a Revolução  Industrial "deu certo"; se ela não viesse a obter êxito superando definitivamente o capital mercantil e as práticas econômicas e  políticas a ele associadas, estaríamos hoje a dizer: "A arguta sensibilidade dos mercantilistas ibéricos evitou-lhes o desastre da Revolução Industrial".

  

NOTAS

1. Sobre este conceito veja-se: PIRES, Julio Manuel & COSTA, Iraci del Nero da (organizadores). O Capital Escravista-Mercantil e a escravidão nas Américas. São Paulo, EDUC/FAPESP, 2010, 226 p.

2. GODINHO, Vitorino de Magalhães. Portugal, as frotas do açúcar e as  frotas do ouro (1670-1770). Estudos Econômicos. São Paulo, IPE-USP, 13(número especial), 1983, p. 726.  

  

* Professor Universitário aposentado.

Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Descobrimentos_portugueses#/media/File:Spain_and_Portugal.png

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey