Bolsonaro no Roda Viva

Por Gabriel Brito, no Correio da Cidadania

De­pois de meses de es­quiva, o can­di­dato a pre­si­dente e con­fesso de­fensor da di­ta­dura mi­litar e seus tor­tu­ra­dores Jair Bol­so­naro se prestou a uma longa con­versa em pú­blico.

Fenô­meno mi­di­a­ti­zado por pro­gramas te­le­vi­sivos tão de­nun­cistas quanto va­zios, além de meios de co­mu­ni­cação onde cam­peiam a obs­cu­ri­dade e a de­sin­for­mação, o mi­litar da re­serva, em seu sé­timo man­dato de pura im­pro­du­ti­vi­dade par­la­mentar, enfim co­meça a dizer a que veio. 

A en­tre­vista no Roda Viva da TV Cul­tura, que outro dia apre­sen­tara au­tên­tica ópera bufa ao re­ceber Ma­nuela D'Ávila, gerou ex­pec­ta­tiva e não à toa foi a me­lhor au­di­ência do pro­grama nos úl­timos tempos. A ban­cada, que pode ser con­si­de­rada pro­gres­sista, era a es­pe­rança de mi­lhares de te­les­pec­ta­dores que en­xergam no pre­si­den­ciável do PSL (Par­tido So­cial-Li­beral) o mal a ser ex­tir­pado.

No en­tanto, a par­ti­ci­pação de Bol­so­naro deixou sen­ti­mentos de dú­vida. Des­pre­zado por sua ig­no­rância e bai­xís­simo nível in­te­lec­tual, o can­di­dato pa­receu, dentro de seus li­mites, ter se vi­rado. O que nos leva a al­guns ques­ti­o­na­mentos. 

Aliás, como bem ob­servou o fi­ló­sofo Moyses Pinto Neto, se tem algo que faltou nos en­tre­vis­ta­dores foi jus­ta­mente a in­sis­tência em ques­tioná-lo. Co­me­çavam bem, mas de­sin­flavam ra­pi­da­mente.

- Tem que acabar a so­ci­al­de­mo­cracia. 

- De­pu­tado, o se­nhor sabe o que é so­ci­al­de­mo­cracia? O se­nhor sabe que boa parte do texto cons­ti­tu­ci­onal é ins­pi­rado na so­ci­al­de­mo­cracia? Como o se­nhor vai con­se­guir mai­oria par­la­mentar para mudar a Cons­ti­tuição e acabar com a so­ci­al­de­mo­cracia? Se não con­se­guir mai­oria, como vai mudar a Cons­ti­tuição e acabar com a so­ci­al­de­mo­cracia?
 
- De­pu­tado, se o se­nhor con­se­guir os votos, quais ser­viços pú­blicos vai ex­tin­guir? Hos­pi­tais? Es­colas? Saúde e edu­cação pú­blicas são parte da so­ci­al­de­mo­cracia. Se não, por que o se­nhor diz que vai acabar com a so­ci­al­de­mo­cracia? Será que o se­nhor sabe bem o que isso quer dizer?", exem­pli­ficou em exer­cício mental pró­prio.

Dessa forma, o que ficou pa­tente foi um em­penho em bater nas te­clas mais mi­diá­ticas, por­tanto ime­di­a­tistas, algo, por sinal, bem de acordo com a atual di­nâ­mica dos de­bates que vemos nas redes so­ciais e mesmo na TV. Um bate-re­bate fre­né­tico e sem pro­fun­di­dade.

Outro exemplo foi quando a jor­na­lista Da­niela Lima lem­brou de sua de­cla­ração sobre ser ig­no­rante em eco­nomia, per­gun­tando o que faria caso bri­gasse com seu ar­ti­cu­lador do as­sunto. 

Até aí, ok. Mas, afinal, qual o pro­grama econô­mico de Bol­so­naro? Será que não é pra­ti­ca­mente a mesma coisa que apre­senta o go­verno do qual todos querem des­colar sua imagem? Ou de Alckmin e seu recém-ce­le­brado acordo com o cen­trão - o su­pras­sumo da cor­rupção e fi­si­o­lo­gismo em nossa des­tro­çada Nova Re­pú­blica?

Isto é, es­tamos fa­lando de jor­na­listas cujos meios - e talvez eles pró­prios - sejam aman­sados de­mais pelos man­tras ne­o­li­be­rais e suas cren­dices ao redor de pri­va­ti­za­ções e pro­ta­go­nismo de um em­pre­sa­riado que ja­mais "chamou a res­ponsa" em mo­mentos de crise.

"A ban­cada foi firme, mas sem es­tra­tégia. Apertar um can­di­dato como Bol­so­naro não passa por in­sistir nos temas po­lê­micos de di­reitos hu­manos e se­gu­rança pú­blica que chocam os opo­si­tores, mas fazem a ale­gria dos apoi­a­dores; apertar al­guém como Bol­so­naro é fazê-lo se po­si­ci­onar es­pe­ci­fi­ca­mente sobre coisas muito im­po­pu­lares como o au­mento da idade de con­tri­buição na re­forma da pre­vi­dência ou sobre as pen­sões para as fi­lhas de mi­li­tares ou ainda fazê-lo falar sobre qual­quer as­sunto es­pe­cí­fico de po­lí­ticas pú­blicas (foi feito um pouco, quando per­gun­taram sobre mor­ta­li­dade in­fantil e po­lí­tica de ci­ência e tec­no­logia - mas já pen­saram num pro­grama in­teiro com per­guntas assim?)", ana­lisou o pro­fessor e pes­qui­sador Pablo Or­tel­lado. 

Por sinal, Or­tel­lado é um dos alvos da moda da en­rai­ve­cida mi­li­tância vir­tual lu­lo­pe­tista e sua sanha de acusar tudo e todos de fa­zerem o jogo do ini­migo, en­quanto so­negam um pro­grama po­lí­tico ao país. Talvez porque, gri­taria à parte, tal pro­grama soe de­mais como mais do mesmo em re­lação aos can­di­datos da "di­reita gol­pista".

"Não pre­cisa dessa re­forma da Pre­vi­dência, mas uma que vá pau­la­ti­na­mente", disse o de­pu­tado. Como assim? Fazer o mesmo em doses su­aves, mas com o mesmo re­sul­tado final? 

Con­ve­nhamos: tema di­fícil de ir fundo en­quanto os jor­nais e re­vistas ali re­pre­sen­tados vendem dia e noite a ne­ces­si­dade de re­formas tão im­po­pu­lares - in­clu­sive com ab­jetas dis­tor­ções da re­a­li­dade.

E a re­forma tra­ba­lhista, teto de gastos, po­lí­tica de mo­radia, dí­vida pú­blica? Nada disso foi tra­ba­lhado a fundo. 

Dessa forma, até o cerco que al­gumas per­guntas re­la­tivas à de­fesa que o de­pu­tado faz da di­ta­dura e da tor­tura pa­re­ceram per­fu­ma­rias in­con­se­quentes. Le­o­nencio Nossa ab­dicou de in­sistir na vi­o­lência do Es­tado - e seus evi­dentes nexos entre pas­sado e pre­sente - e logo partiu para a crí­tica de in­ter­venção na eco­nomia dos mi­li­tares. Per­mitiu que o Bol­so­naro se saísse bem.

"Você acha que a ini­ci­a­tiva pri­vada ia cons­truir Itaipu? Ia cons­truir 40 cen­tros de ex­ce­lência?", re­bateu. 

E fi­camos na dú­vida sobre se, de fato, a he­ge­monia li­beral mi­diá­tica tem mesmo grandes res­salvas às vi­o­la­ções dos di­reitos hu­manos e ou­tras in­ter­ven­ções do Es­tado pra além da sa­grada eco­nomia ou se a re­lação é apenas uti­li­ta­rista. Nesse sen­tido, o fi­asco tre­mendo da in­ter­venção do exér­cito no Rio ja­mais po­deria ter sido dei­xado em se­gundo plano.

Fica a dú­vida: o ul­tra­con­ser­vador, fan­farrão e es­tú­pido can­di­dato tem, de fato, pro­postas que ra­di­ca­li­za­riam o atual modus ope­randi do Es­tado bra­si­leiro ou não seria tão dis­tinto, por exemplo, do que Alckmin e o go­ver­nador in­te­rino Marcio França fazem em São Paulo quando de­fendem o papel da Po­lícia Mi­litar?

No tema di­reitos hu­manos e mi­no­rias, a di­nâ­mica se re­petia.

- As mu­lheres da es­querda não querem aprovar a cas­tração quí­mica. 

- De­pu­tado, como aprovar um pro­jeto se ele viola a Cons­ti­tuição, que proíbe penas cor­po­rais? Como o se­nhor vai cons­truir base para mudar a Cons­ti­tuição? Como mudar a Cons­ti­tuição nesse as­sunto se é cláu­sula pé­trea? Em caso po­si­tivo, como pre­tende en­frentar o STF quando de­clarar in­cons­ti­tu­ci­onal? De­pu­tado, o se­nhor não está só fa­lando bo­bagem aqui e gas­tando o tempo do es­pec­tador porque não faz a mí­nima ideia de como go­vernar o Brasil?, ilus­trou Moyses Pinto Neto. 

E tal ti­midez em re­forçar e apro­fundar tais de­bates não teria a ver com a pos­tura dos grandes apa­ratos mi­diá­ticos ante temas como ge­no­cídio de po­bres e ne­gros, ma­chismo, en­car­ce­ra­mento em massa ou re­dução da mai­o­ri­dade penal? Tais apa­ratos não se es­me­raram ao longo dos anos em trans­mitir uma his­tória falsa e dis­si­mu­lada sobre a obra da di­ta­dura mi­litar que o de­pu­tado tanto ama? Não foram, de forma até vi­ru­lenta, con­trá­rios aos tra­ba­lhos da Co­missão da Ver­dade e pu­nição de agentes da re­pressão do re­gime de 1964-1985?

É evi­dente que Bol­so­naro re­cebeu o de­vido treino de re­lação com a mídia antes de se expor em rede na­ci­onal. Agiu como a es­cola dos 'bons' po­lí­ticos já en­sinou há dé­cadas, ter­gi­ver­sando e des­vi­ando os focos das per­guntas, ou sim­ples­mente res­pon­dendo o que lhe con­vinha, até a ig­norar a per­gunta em si. Mas trata-se de ex­pe­di­ente am­pla­mente dis­se­mi­nado no es­pe­tá­culo da po­lí­tica. 

O Roda Viva com Jair Bol­so­naro - que não dis­porá de tempo de TV e perdeu a dis­puta com o tu­cano pelo al­me­jado apoio dos grandes pró­ceres da velha e car­co­mida po­lí­tica - deixa in­di­ca­ções de que mais uma vez o país se verá di­ante de de­bates, senão com­ple­ta­mente falsos, muito dis­tantes da re­a­li­dade do povo bra­si­leiro e suas fontes co­ti­di­anas de so­fri­mento. 

Bol­so­naro apenas surfa nesse imenso vazio que nin­guém quer pre­en­cher. Talvez por não haver tantas di­fe­renças prá­ticas entre uns e ou­tros... 

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey