Em março de 2017, a Internacional das Periferias realizou seu primeiro Seminário Internacional, na Maré, Rio de Janeiro. O evento teve como seu objetivo central a construção de uma visão convergente - aberta a adesões e contribuições - entre as organizações, movimentos, coletivos e pessoas que dele participaram sobre as periferias e seu lugar no mundo contemporâneo.
Esse esforço de construção não é trivial. De fato, como é sabido, vivemos em um mundo social dominado por representações das periferias - e de seus moradores - baseadas em estigmas que impedem uma apreensão global e complexa sobre as realidades sociais, econômicas, políticas, ambientais e culturais desses territórios. E, como o imaginário é um elemento fundamental na instituição do real, as representações estereotipadas sobre as periferias onde residem os grupos sociais mais empobrecidos da cidade orientam, muitas vezes, políticas públicas e investimentos sociais privados. Estes, além de não efetivarem as reais demandas dos seus moradores, contribuem para reforçar processos de expropriação material e apropriação simbólica que fragilizam estratégias coletivas construídas pelos grupos dos territórios periféricos para exercerem o seu direito à cidade.
A dinâmica de estigmatização acontece tanto nos países dominantes (hegemônicos) como nos países subalternizados (não hegemônicos) na ordem econômica e sociopolítica vigente. Seus pressupostos são sociocêntricos: os padrões utilizados para qualificar as periferias, em geral, são referenciados em teorias urbanísticas e pressupostos culturais/estéticos vinculados a determinadas classes e grupos sociais hegemônicos (dominantes). Eles consagram o que é um ambiente saudável, agradável e adequado às funções que uma cidade deve exercer no âmbito do modelo civilizatório em curso. Na mesma linha, definem um determinado conceito de ordem e as formas pretensamente adequadas de comportamento social e de agir no mundo.
Com isso, temos o fortalecimento das noções de ausência, carência e homogeneidade como elementos de percepções reducionistas e de classificações hierárquicas das periferias em relação aos demais espaços da cidade. Toma-se como significante aquilo que a periferia não seria em comparação a um modelo idealizado de cidade, baseado em padrões culturais e educativos colonizadores construídos, em geral, pelas parcelas mais enriquecidas da população. Nessa compreensão, as periferias são concebidas como espaços precarizados, com sujeitos que têm a sua historicidade negada, seus territórios não reconhecidos como legítimos e seus moradores, não raramente, tratados de forma exotizada (a não civilização, por excelência).
As periferias, todavia, existem na relação com as instituições do mundo social, especialmente o Estado e o Mercado formal. Nessa tensão, elas são constituídas, em geral, por tipos de ocupação que não seguem os padrões hegemônicos que o Estado e o Mercado definem ou, quando construídos por esses entes, ela são materializadas a partir de uma perspectiva de subalternidade e precariedade que destituem as identidades, as inventividades práticas e os saberes ali construídos. Logo, ao longo dos anos e do processo de regulação da vida social estabelecido pelo Estado, os assentamentos em periferias, por suas características morfológicas e também por sua composição social, foram sendo considerados como expressões de ilegalidade e/ou em desconformidade às referências estéticas e morais afirmadas pelos grupos hegemônicos que exercem o poder político e econômico nas cidades.
Os proponentes e as proponentes dessa carta recusam a visão reducionista, estereotipada e desqualificadora dos territórios periféricos. Com efeito, a pluralidade das formas e das dinâmicas sociais, econômicas e culturais se coloca como um desafio na compreensão do que é uma periferia e, por conseguinte, na definição de parâmetros abrangentes que orientem leituras mais precisa. Apesar da consciência sobre a condição heterogênea e as distintas formas-funções das periferias do mundo, podemos afirmar vários elementos que são comuns entre elas. Afirmamos que cada periferia constitui uma morada no conjunto da cidade, compondo seu tecido urbano e estando, portanto, integrada a este. Logo, periferias são elementos centrais da cidade, lhe dão identidade, sentido e humanidade.
Deste modo, a definição de periferia não deve ser construída em torno do que ela não possuiria em relação ao modelo dominante na dinâmica socioterritorial ou da distância física em relação a um centro hegemônico. Ela deve ser reconhecida pelo conjunto de práticas cotidianas que materializam uma organização genuína do tecido social com suas potências inventivas, formas diferenciadas de ocupação do espaço e arranjos comunicativos contra-hegemônicos e próprios de cada território.
Assim, é a partir da concretude da sua morfologia; do reconhecimento das práticas estabelecidas por seus moradores e das condições objetivas de sua vida social que devem se estabelecer as referências possíveis do que é uma habitação digna, dotada das condições necessárias para o bem-estar e bem-viver. Um lugar pleno e complexo, onde grupos se aproximam por valores, práticas, vivências, memórias e posição social, afirmando sua identidade como força de realização de suas vidas.
Os(as) proponentes desta Carta consideram, portanto, que as Periferias são territórios constituintes da cidade, caracterizadas, em parte ou em sua totalidade, pelos seguintes desafios que têm sido enfrentados pelos seus moradores:
Afirmamos também que estes territórios se caracterizam por um conjunto de potências, tais como:
Compreender a cidade em sua pluralidade é reconhecer a especificidade de cada território e, igualmente, afirmar a condição cidadã e o protagonismo de todos os seus moradores e moradoras. Para tal, é necessário reconhecer que os mesmos são os principais sujeitos aptos a narrarem suas práticas sociais e culturais, símbolos de resistência e reinvenção, formas concretas de afirmação e invenção de direitos, que necessitam serem amplamente garantidos na forma de políticas públicas. Trata-se de um princípio de validação plena da vida social, democraticamente orientada e configurada nos usos legítimos do território por grupos populares. A garantia deste princípio só será possível a partir da construção de uma radical experiência democrática de Direito à Cidade.