Tragédia de Santa Maria: Caos na Pátria de Chuteiras

Tragédia de Santa Maria: Caos na Pátria de Chuteiras

Santa Maria, repentinamente o vigor da juventude / desvaneceu, sob a implacável olência do cianeto, / evaporadas 242 almas no auge do vicejo. / Santa Maria, até quando o amargor, da vida tal vicissitude? / Foram teus filhos! Pisoteados, queimados, asfixiados. / Ânsia por mundos mais dourados, / infortúnio, a sentença de seus pecados?

por Edu Montesanti

Tragédia em Santa Maria, segundo incêndio mais mortal da história do Brasil. Longos quatro anos já se passaram desde então, por outro lado muito curtos diante de tanto infortúnio para apenas uma sociedade, localizada majoritariamente em uma cidade do interior gaúcho: anos de completo esquecimento midiático, político, judiciário e social com os devidos (e previstos, desde o dia infame por este autor) arquivamentos jurídicos, que não responsabilizam os criminosos. Ingredientes macabros à brasileira, tão trágicos quanto o próprio fogaréu - tragédia anunciada - e suas vidas queimadas e asfixiadas em si.

O Brasil não "parou" à época no sentido mais profundo, solidário, mobilizador do termo - com exceção dos índices de Ibope que, como sempre nos momentos mais catastróficos deste País, representavam a inócua paralisação frente às telas de TV. A desgraça alheia é famosa por, não raras vezes, servir como anestesista das próprias - a diversas massas pensadas pela TV.

Em algumas ocasiões, quando tais massas dão-se conta ainda que momentaneamente de que nem só de pipoca, "telenovela como o real e o real como telenovela" (parafraseando José Arbex) vive o homem - geralmente, parcial despertar advindo de tragédia que bateu à própria porta -, torna-se efêmero, facilmente manipulado todo e qualquer ativismo. O exercício da cidadania é algo a ser construído na vida cotidiana. Linguagem um tanto estranha em terras verde-amarelas com fortes raízes oligárquicas, discriminadoras e incentivadoras da díspar apatia e do analfabetismo, sobretudo político entre a sociedade local.

Estava totalmente claro, desde os primeiros momentos em 27 de janeiro de 2013 desenhava-se perante todo aquele jogo político, empresarial, midiático, social, judicial que, a partir de Santa Maria, repetir-se-ia mais um tragicamente impune capítulo na história deste país.

Enquanto setores empresariais e políticos à época, amparados fielmente pela mídia inculcaram - com sucesso, baseado na bem conhecida manipulação das informações e no excesso da fraseologia mais baixa - que o incêndio na boate Kiss não passara de mera fatalidade e não problema estrutural deste país, fica cada vez mais evidente, inversamente proporcional ao total descaso nacional ao longo de todo este tempo, que se tratou de retrato perfeito do Brasil no que diz respeito à tragédia em si além das implicações de corrupção política e empresarial, do sensacionalismo e posterior esquecimento midiático, da indiferença societária e da impunidade advinda de corrupção também judiciária que reina soberana no Brasil - desde o início, era sabido deste lado (leia Fantasmas em Meu Quarto: Assassinos de Corpos e de Almas, de 28 de janeiro, um dia após a tragédia de Santa Maria) que exatamente assim seria, enquanto o choro era desesperada e copiosamente dolorido, noticiado - ou "contemplado"? - pela Imprensa em séria crise financeira e moral, enquanto a sociedade via-se generalizadamente "indignada", sempre ela manifestando o mesmo comportamento e as idênticas reações, frente às piores catástrofes - desde que acometa apenas ao vizinho -, de norte a sul do Brasil. Onde está a Primavera?

Caos na "Pátria de Chuteiras"

 Cá, o pungente sabor de consternar. / Santa Maria, uno pulsar, / o velho Porto... Alegre não há de estar. / As ubíquas lágrimas hás de um dia enxugar. / Santa Maria, extasiante dádiva a consolar / teus filhos. Minh' alma, vem da amargura livrar. / Austrais ventos que levem seu doce afago, o de Santa Maria. / Ao repousar por sobre tuas relvas, há de livremente ruflar / cada alma, a de teus 242 filhos. / Cá, cá, Santa Maria, díspar pesar!

Andreia Fontana, editora-chefe do Diário de Santa Maria, escreveu editorial em 26/10/2013, nove meses após o massacre da boate da morte:

Muitos empresários nos procuram para pedir que deixemos de lado essa cobertura [desdobramentos da tragédia], num entendimento de que noticiar o assunto enluta a cidade, o que [pasmem!] é ruim para o seu desenvolvimento.

Certamente, nenhum desses empresários mencionados pela editora Andreia perdeu filhos na fatídica madrugada de 27 de janeiro último. O lucro à frente do luto, sempre. Selvageria humana contemporânea. 

Onde está a mídia auto-declarada independente e combativa agora, para fazer denunciar isso e ecoar a voz da justiça? Nunca esteve em lugar nenhum quando o assunto é memória, verdade e justiça envolvendo o genocídio de Santa Maria. O máximo que faz, é ecoar a voz da Justiça, jamais da justiça! Entenda quem quiser

A Imprensa não aborda casos como este acima, enquanto medíocre representante da mais patética Pátria de Chuteiras (que até nisso já decaiu em muitas posições, há muitas décadas, e apenas no próprio País ainda não foi dada conta disso).

Desta maneira, a tragédia de Santa Maria tornou-se, aos interesses e medos alheios - medo de encarar a realidade que implicaria transformá-la -, exitoso passado remoto na sucessão de horrores deste país, onde um capítulo da barbaridade vai passando por sobre o outro, a mídia busca na desgraça sua graça, ninguém se lembra de absolutamente nada em um curtíssimo espaço de tempo, e tudo segue como sempre esteve. Pois que venha o Carnaval, sobremaneira colorido pelas expectativas (artificiais, e nunca foram tão sem-graça!) em relação à Copa do Mundo de 2018.

Samba no pé, uma mão na taça do ano que vem (mesmo, Galvão?), a bunda mulata mais bela do planeta, o diário pão na barriga com o assistencialismo político nacional que não incentiva a produção e a politização societária, o brasileiro já tem. Portanto, se os sagrados e milenares Pão e Circo já estão garantidos, preocupar-se com o quê? Mudar o status quo por quê? É, sem dúvida, mais cômodo não levar muito a sério...

Aniversário de 4 Anos: Comoção Local e Indiferença Nacional

Ninguém está mais desesperadamente escravizado, que aquele que falsamente acredita ser livre (Johann Wolfgang von Goethe, escritor alemão)

No último dia 27 de janeiro, exatamente há quatro anos da tragédia de Santa Maria, suas 242 vítimas, tão vítimas do silêncio quanto do cianeto, passaram desapercebidas enquanto a dor de familiares e amigos das vítimas apenas cresce e prestaram, isolados, suas homenagens ilhados pela terra da indiferença.

Nos dias subsequentes ao incêndio, somavam-se mortos paralelamente às mais patéticas e peculiares aulas de anijornalismo, e da total atenção da sociedade a qual, desde 27 de janeiro de 2013, sequer fazia as refeições sem estar focada em chamas, no choro mais doído e em rostos de cadáveres em pleno caixão, focados pelas câmeras do lucro descomedido, prontos para descerem as profundezas da terra. Mas tudo era um momento! Apenas um momento, superficial e velozmente passageiro da nossa calamitosa história.

Poucos meses depois, já em pleno Dia dos Mortos (2 de novembro de 2013) ninguém mais se lembrava, com a devida consciência, que aquele incêndio que acabou sendo impossível de não se noticiar - e noticiado com a mesma precariedade de sempre especialmente quando interesses políticos e empresariais estão envolvidos - fora fruto de corrupção e profundo descaso com a vida alheia; na verdade, muitos sequer vieram a saber disso. Mas passou...

As "reportagens" no Dia de Finados do mesmo ano do incêndio já evidenciavam que a mídia havia dado de ombros à tragédia de Santa Maria. Foram emblemáticas neste sentido, pautando o que seria a "cobertura" midiática para os próximos meses e anos de sutil e impositivo e impostor esquecimento. Confundiram-se, em seu sentido mais amplo, em meio ao excesso de informações carente de contextualização e de pleno entendimento. Matéria da TV RBS, afiliada à Rede Globo no Rio Grande do Sul, lembrou-se melancolicamente das 242 almas e de seus entes queridos no Dia de Finados daquele ano. O Jornal do Almoço tratou das questões técnicas e estatísticas do Cemitério Ecumênico de Santa Maria, principal da cidade (medíocre reportagem, aqui).

O jornal O Globo não lembrou Santa Maria no Dia de Finados com a mínima consciência, mas em seu sítio na Internet o que se podia ver de mais destacado foi o 5º dia da badalada e bilionária São Paulo Fashion Week. Uma reportagem do impresso tratando do feriado em Santa Maria, manteve o tom da TV Globo: o túmulo mais visitado, no caso o do cantor e compositor gaúcho Teixeirinha, além de outras questões funerais, geográficas e estatísticas envolvendo o cemitério. Do jeito que o brasileiro merece? Assim tem sido ao longo desses anos, com uma sensível piora, se já não bastasse.

A triste realidade é que as "reportagens" da RBS no Rio Grande do Sul, das poucas que ainda veicularam o caso naquela ocasião (recordemos: há nove meses do incêndio), eram extremamente reduzidas, no tamanho e na qualidade jornalística, e sempre passavam bem distante de seus editoriais. Que esperar das Organizações Globo que, em sua versão impressa, no dia seguinte à tragédia, publicou uma charge, o macabro humor jornalístico? (veja a charge de  péssimo gosto Chico Caruso no Globo). Era motivo para cancelamento de assinaturas por todo o País. Mas a indiferença (talvez com boas gargalhadas) falou mais alto.

Também no dia seguinte à tragédia, em 28 de janeiro o jornal O Estado de S. Paulo propôs em seu sítio na Internet receber reclamações de casas noturnas que, de alguma maneira, desrespeitavam leis de segurança, prometendo investigar cada uma delas.

A primeira impressão, dado o histórico do jornal e da Imprensa brasileira em geral, foi realmente que tal proposta fora elaborada no Departamento deMarketing da empresa jornalística, ao invés de movida por sensibilidade editorial e por consciência cidadã.

Vários e vários leitores, na maioria jovens, passaram imediatamente a atacar no espaço de comentários a empreitada justiceira de O Estado de S.Paulo, acusando-o de hipócrita, sensacionalista, oportunista entre outras coisas, evidenciando-se assim, uma vez mais, o quase total descrédito dos grandes veículos de comunicação do país.

Mesmo diante disso, enquanto (no Observatório da Imprensa) levantamos a suspeita de jogada de marketing sobre o jornalismo, enaltecemos a iniciativa alegando que o tempo diria de que lado estava o jornalão.

O tempo passou e a resposta veio a cavalo, desferiu-se precisamente sem a menor piedade na cara da sociedade: os leitores furiosos tinham razão...

País do Jeitinho Fatal

 Povo que esquece seu passado, é obrigado a vivê-lo novamente (Nicolás Avellaneda, jurista argentino)

No dia 27 de janeiro deste ano de 2017, homenagens em Santa Maria às vítimas da tragédia se deram através de 242 balões brancos lançados ao ar, com toques de sino paroquial e das vigílias de sempre por parte de familiares de vitimas, sobreviventes e amigos. E com a ausência da memoria nacional de sempre, é claro.

Ao longo de todo este tempo, de lá para cá inúmeras homenagens de entes queridos, vigílias, comoventes declarações e valente luta por justiça não ecoa no Brasil: limita-se à Santa Maria, e com o velho e indispensável quê do jeitinho brasileiro.

No restante do Brasil, é como se tais acontecimentos se dessem em outra dimensão dada a falta de informações e de interesse, na era da informação global e em tempo real.

Enquanto isso, o Ministério Público de Santa Maria, que não condenou ninguém pelo crime da boate Kiss, está processando quatro pais de vítimas por alegarem que o órgão - famoso pelas tendências elitistas - sabia com antecedência das inúmeras irregularidades da casa noturna cujos proprietários eram, segundo investigação da Polícia Civil da cidade, bem próximos dos poderes políticos locais.

Isso tudo, grande novidade à nação geral, parecendo um mundo à parte ao velho Patropi de tantos carnavais e de fatos como este de Santa Maria, que se acumulam, desfilam pela passarela do crime organizado estatal, empresarial, judicial e midiático sem nenhuma perspectiva de mudança.

Mas já estamos acostumados, devidamente amestrados, vivemos alegremente acomodados com as diversas anestesias da consciência que nos são aplicadas todos os dias. Portanto, nem nos apercebemos desse festival do terror, ou quando é impossível negá-lo, já não incomoda. Até que, como foi argumentado mais acima, a desgraça bata á nossa própria porta.

Assassinos de Corpos e de Almas

Vai, sutileza incomparável - a tua, Santa Maria: / dá a cada um teu cálido manto, / fiel ombro fagueiro. / Pôr do sol, o Guaíba é todo pranto. / Suas vicejantes margens já não mais espetacularizam, / excruciantes: choram almas, clamam copiosamente; / a teus filhos que se foram, o resplendor do Pegureiro, / da chalana compassivamente / a acenar, para neles eternamente raiar

Os que ficaram na saudade de seus entes queridos, em Santa Maria e em alguns outros pontos do País, vozes no deserto tão unidas quanto sufocadas, herois dignos, no máximo em nossa sociedade, de preconceito de piedade e/ou de excessiva curiosidade; vozes que buscam dentro de si mesmas o consolo, à procura de um novo significado para a vida. 

Brasil, país assassino de corpos e de almas. Até quando?

Recentemente, após falarmos com uma das familiares das vítimas de Santa Maria, dois conhecidos, universitários tanto quanto a maioria dos 242 jovens vítimas do cianeto e do silêncio, disseram-nos coisas horrendas conforme noticiamos em Memórias de um Escritor no País da Mediocridade: uma garota disse que aquelas vítimas eram culpadas por não estar em casa estudando, mas dançando - detalhe: se não bastasse o próprio absurdo do "raciocínio" em si, a própria autora de tal excrecência verbal, parece piada mas não é, já havia combinado com amigas universitárias ir a uma casa noturna da cidade de Florianópolis dias depois, embora não seja seu costume, e mais adiante iria à famosa e badalada Oktoberfest, festa da cerveja anual da cidade de Blumenau.

Fezes intelectuais e morais idênticas às que ouvimos de jovens "religiosos" no dia da tragédia a fim de nos consolar entre lágrimas em frente à TV no dia 27 de janeiro, relatados à época por nós no artigo Assassinos de Corpos e de Almas, mais abaixo. Detalhe hipócrita da vez: uma das "religiosas" que optara por escolher o caminho mais confortável, o de condenar às vítimas de Santa Maria, possuía dois namorados então - este autor era, em sua mente revelada por gestos claros e palavras sutis, candidato a compor ali um triângulo amoroso que jamais viria a se formar.

Vale ainda recordar que, em janeiro de 2009, desabou 40% do teto do suntuoso "templo" da Igreja Renascer em Cristo de São Paulo, de cunho protestante, por negligência de seus líderes, especialmente do apóstolo formado em Marketing, o estelionatário Estevam Hernandes que meses antes fora condenado por ter sido pego com sua esposa-bispa em aeroporto, deixando o território norte-americano, com dezenas de milhões de dólares escondidos em uma Bíblia Sagrada - o dito-cujo é ligado a Paulo Maluf, o que explica a total desconsideração midiática sobre este grave caso. 

Naquela ocasião nove pessoas morreram, e 106 ficaram feridas: qual a explicação religiosa para tal "fatalidade"? Ao menos por questões de coerência, imbecilidades à parte, a tragédia da Igreja Renascer teria sido, então, consequência das más escolhas dos religiosos ali presentes? Eis que a Grande Intentona do Senhor contra os pecadores atinge Sua própria Casa, também? Pois é... Na selvageria contemporânea do "salve-se quem puder", pimenta nos olhos alheios é colírio, dir-nos-ia o filósofo.

Outro comentarista de uma das ligações telefônicas a familiares das vítimas da boate Kiss, contou que morria de rir durante a conversa com Santa Maria em prol de justiça - criticamos, naquela ligação, a passividade conivente de nossa individualista sociedade, evidente na indiferença, afirmações estas que que podem, muito bem, explicar a agressividade disfarçada de gracejo e descaso do "futuro do Brasil".

País assassino de corpos e de almas!

O Brasil precisa rever seus conceitos, passar por uma inevitável e dolorosa auto-análise seguida de muita prática que venha de seu interior e não de estereótipos, se realmente quiser deixar de ser o país do descaso, do "nada funciona", das catástrofes, o vice-campeão mundial de mortes violentas anuais em números proporcionais, há décadas - atrás apenas da Colômbia, e à frente de países como Iraque, Síria e Afeganistão. A próxima vítima pode não ser seu vizinho, mas você mesmo. Então, será tarde demais...

Vale recordar aqui a conclusão do já mencionado artigo deste autor, logo após a catástrofe em terras gaúchas: enfim, até o próximo capítulo do nosso espetáculo do horror, gente. E salve-se quem puder...

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey