Neste breve artigo damos início a uma série de análises da política econômica brasileira, por ora fixamo-nos tão somente no exame do papel da taxa de câmbio na estabilização de preços desde 1994 e de suas consequências sobre o nível de atividade econômica.
Julio Manuel Pires*
Posteriormente, pretendemos analisar outros aspectos da política econômica brasileira nas últimas décadas e suas repercussões nos dias atuais.
Não há dúvidas quanto ao sucesso do Plano Real em estabilizar a inflação brasileira depois de décadas de inflação crônica e elevada. Embora nossos níveis médios de inflação ainda sejam mais elevados que a média mundial e mesmo dos países em desenvolvimento, constatamos que, passados mais de vinte anos de sua implementação, tivemos apenas dois anos nos quais a inflação chegou à casa dos dois dígitos (2002 e 2015). Tal desempenho não se verificava no Brasil desde a década de 1930.
O Plano Real foi elaborado e implementado durante o governo Itamar Franco (vice de Fernando Collor de Mello que assumiu após o impeachment) pelo ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, o que o credenciou para a eleição presidencial de 1994 e garantiu sua reeleição em 1998. Em seus quatro primeiros anos, o Plano Real baseou-se essencialmente na denominada "âncora cambial", a qual se caracterizou por um aprofundamento do processo de abertura comercial, acompanhado por uma política de sobrevalorização cambial, a qual ensejou um aumento extraordinário do volume de importações, tanto de bens de consumo quanto de insumos e bens de capital, que se revelaram fundamentais para a contenção do aumento de preços domésticos.
Em um contexto de economia aberta, o câmbio valorizado constitui instrumento poderoso para o combate à inflação, seja pela concorrência direta imposta pelos bens de consumo importado, seja pela redução de custos propiciada no caso da importação de bens de produção.
Todavia, como em tudo na vida, temos o outro lado da história. A manutenção de uma taxa de câmbio valorizada ao longo de vários anos implica custos enormes para a economia de qualquer país em termos de menor taxa de crescimento econômico, desequilíbrio externo, perda de postos de trabalho e, frequentemente, crises cambiais. No caso do Brasil tais efeitos deletérios são amplificados devido à necessidade de sustentação de uma taxa de juros elevada, visando atrair capitais externos para equilibrar o balanço de pagamentos. Assim, além dos efeitos negativos diretos da sobrevalorização cambial sobre as importações, exportações e outros gastos no exterior (como turismo, por exemplo), o que por si só já implica taxa de crescimento menor, temos também a manutenção de altas taxas de juros, as quais acentuam os impactos negativos sobre o nível de atividade econômica e elevam sobremaneira os dispêndios do governo com os encargos relativos à sua dívida interna, comprometendo fortemente o desempenho das contas públicas.
Estes fatos ocorreram durante o primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). A par da redução abrupta da inflação (cujo índice oficial alcançou 1,7% no ano de 1998), observamos também uma reduzida taxa de crescimento (média pouco superior a 2% ao ano), acompanhada de forte deterioração das contas externas - em vista do surgimento de deficit na balança comercial, depois de mais de uma década de superavit superiores a US$ 10 bilhões - e expressivo aumento do deficit e da dívida pública.
Tais fatos, combinados com as crises internacionais que caracterizaram a segunda metade dos anos 1990 (a crise asiática em 1997 e, sobretudo, a crise russa, em 1998) acabaram por inviabilizar a continuidade do fluxo de divisas necessário para cobrir nosso deficit em conta corrente, levando a uma aguda crise cambial no início do segundo mandato de FHC. Em decorrência, o governo foi obrigado a aceitar uma alteração do regime cambial, passando a adotar o sistema flutuante, o qual substituiu o regime de bandas cambiais responsável pela forte valorização até então prevalecente. Visando afiançar que a inflação não sairia do controle, uma vez que se abriu mão da âncora cambial, o governo instituiu, a partir de junho de 1999, o sistema de metas inflacionárias, mediante a qual o controle da demanda agregada, por meio da taxa de juros, passaria a ser o principal instrumento para a contenção das elevações de preços. A fixação de metas relativas ao superavit primário completou o chamado "tripé macroeconômico".
Com isso, teoricamente, o eixo fundamental da política de controle da inflação teria se deslocado da taxa de câmbio para a taxa de juros, ampliando a margem de manobra para utilização da política cambial com intuitos de promoção do crescimento econômico e do equilíbrio externo e, da mesma maneira, desobrigando a manutenção de taxas de juros tão elevadas quanto no primeiro mandato de FHC, dado que não havia mais o compromisso com uma taxa de câmbio específica.
Todavia, e esta parece ser uma questão essencial para os dias atuais, o processo não caminhou exatamente dessa forma. Na maioria dos anos posteriores ao estabelecimento do tripé macroeconômico, até hoje, o câmbio continuou a ser utilizado como instrumento privilegiado de contenção inflacionária, reproduzindo os mecanismos perversos acionados sempre que isso acontece, como relatado acima.
Durante os dois mandatos do governo Lula, em vista do quadro internacional amplamente favorável, sobretudo até 2008, foi possível ao governo promover significativa valorização cambial sem que, no primeiro momento, isso impactasse negativamente no equilíbrio externo, pelo contrário, o saldo positivo na balança comercial ampliou-se de forma consistente entre 2001 e 2006. Isto se deve, também, à enorme desvalorização cambial ocorrida em 2002, que elevou a taxa de câmbio a um nível extremamente alto, em vista da ameaça da eleição de Lula. Ou seja, porque partiu de um patamar de câmbio muito desvalorizado, combinado com o substancial aumento do preço das commodities no mercado mundial (em virtude da demanda proporcionada pelo crescimento elevado da economia chinesa), foi possível ao governo Lula, durante o seu primeiro mandato, combinar uma política de forte valorização cambial com expressivos saldos positivos na balança comercial e impactos positivos sobre o nível de atividade econômica e de emprego.
No entanto, esse saldo positivo começou a se reduzir já a partir do início do segundo mandato, num processo quase contínuo, findando por se transformar num resultado negativo no último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Transitamos, assim, de um superavit na balança comercial de US$ 46,5 bilhões em 2006 para um saldo negativo de US$ 6,5 bilhões em 2014. Essa deterioração das contas externas implica não só maior vulnerabilidade externa, expressa pelo aumento do passivo externo do país, mas também redução do crescimento econômico e perda de milhões de postos de trabalho. Mais grave ainda, o setor mais fortemente atingido pelo crescimento das importações e menor capacidade exportadora é justamente o setor com maior capacidade de gerar encadeamentos produtivos "para frente" e "para trás", que agrega maior valor e que propicia, em média, melhores salários aos seus trabalhadores, a indústria.
O processo de desindustrialização vivenciado pela economia brasileira nas últimas décadas, juntamente com as reduzidas taxas de crescimento do PIB, tem no câmbio valorizado um de seus ingredientes principais.
Ademais, a necessidade de manter o câmbio em determinado patamar mínimo implicou também a sustentação da taxa de juros em patamares elevadíssimos, sempre entre as maiores do mundo, com seus óbvios custos em termos da demanda agregada, do investimento e das finanças públicas.
Em vista de tais custos exorbitantes, por que, então, isso foi feito? Por que os governos FHC, Lula e Dilma não assumiram como prioridade manter a taxa de câmbio em níveis mais desvalorizados? A resposta é simples. De um lado, há os interesses ligados ao mercado financeiro, tema que pretendemos examinar com maior detalhe em futuro próximo, e, de outro, há os dividendos político-eleitorais do controle inflacionário que o uso de tal instrumento propicia.
Com a desvalorização abrupta do câmbio a partir de 2015, por conta tanto de fatores externos quanto internos, o resultado da balança comercial reverteu-se rapidamente, alcançando nesse ano um saldo positivo de quase 20 bilhões de dólares. Esse é praticamente o único resultado econômico positivo que pode ser identificado no início do segundo mandato de Dilma Rousseff.
Todavia, nos últimos meses, estamos assistindo a uma reversão dessa tendência de desvalorização cambial, com o real voltando a se valorizar perante o dólar, o que, de um lado, contribui para a redução dos índices inflacionários, por outro, pode abortar a recuperação de diversos setores vinculados às exportações ou que sofrem a concorrência dos importados. Isso seria desastroso do ponto de vista do principal objetivo que deveria guiar a política econômica atual, a saída da recessão.
É fundamental, assim, que o governo não permita que, por conta de cálculos de curto prazo, ocorra um novo ciclo de valorização cambial, prejudicando fortemente nossa capacidade de retomada do crescimento econômico e colaborando ainda mais para que o processo de desindustrialização se aprofunde.
* Professor do Departamento de Economia da FEA-RP/USP e do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP