O Império dos EUA está mesmo com os dias contados.
O que foi dito pela TV ao vivo, na ONU, com a declaração "conjunta"feita por Lavrov, e com Kerry falando na 'conclusão', são dessas coisas "de que a história é feita". E entre o que foi dito depois, com portas fechadas, e o que foi dito publicamente, há oceanos de distância.
Há algumas frases chaves que foram usadas e que são a maior indicação desse golfo de distância, à parte qualquer avaliação objetiva da situação, que também se faz necessária. Mas quanto mais objetiva a avaliação, mais se vê e revê que os EUA estão em posição muito fraca.
A decisão de divulgar aquela declaração conjunta e em linguagem de colaboração explica-se, em parte, pela necessidade de não assustar os norte-americanos - ou de provocar um 'sobressalto' no mercado de ações, dadas as relações entre a situação objetiva e os bônus do Tesouro e outros papéis que os chineses acumulam. O maior detentor externo de papéis da dívida dos EUA é, como se sabe, a China (cerca de $1,2 trilhões em notas, contas e bônus, segundo o Tesouro dos EUA). Os chineses e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO) estão sem dúvida envolvidos nesse conflito.
Mas - o mais importante - essa decisão de fazer crer em consenso e colaboração tem a ver com oferecer aos EUA possibilidade de sair com alguma elegância, o que é estrategicamente importante para a Rússia, sim, mas, também, reflete o modo russo de fazer política exterior: as coisas são sempre feitas de modo a não provocar, muito menos encorajar, menos ainda encurralar e nunca absolutamente para frustrar os adversários.
Deixar ao inimigo saída segura é tática milenar e manobra militar que assegura que o oponente não encontre razão que o obrigue a continuar lutando até a última gota de sangue.
Como as coisas estão sendo feitas, os EUA terão como fazer retirada às pressas, mas ainda tática, de algum modo, sem usar a linguagem declarada da rendição.
A linguagem da colaboração têm também um significado legal. Dado que vivemos num mundo no qual os EUA tentaram sempre desconstruir a ordem legal pós-guerra e também a ordem anterior, e atropelaram grande número de acordos e convenções, é importante que todos entendam com clareza que esse não é o objetivo da Rússia.
No coração da ilegalidade em que os EUA operam, há o seguinte: a ordem pós-guerra criou um sistema de lei o qual, ao mesmo tempo em que reconhece a supremacia dos vitoriosos da guerra, como se vê na estrutura do Conselho de Segurança da ONU, foi também realmente baseada em princípios de igualdade entre as nações e no direito à autodeterminação.
Nas várias décadas depois do final da 2ª Guerra Mundial, o mundo viu um levante global anticolonial e anti-imperialista, sobretudo no Terceiro Mundo, o qual - apesar de algumas frustrações por ação do imperialismo dos EUA - conseguiu dar bom uso às promessas e valores consagrados na Carta da ONU. Apesar de os EUA continuarem a violar direitos humanos e a lei internacional em algumas graves instâncias, no Sudeste da Ásia e na América Central principalmente - a sua interação primária com o mundo não dependeu da ilegalidade como sistema operacional.
Os EUA não atacaram frontalmente essa ordem global do pós-guerra, porque, mediante o sistema financeiro internacional de bancos e estruturas aparentadas como FMI e OMC, eles puderam continuar a dominar e controlar economicamente os países do Terceiro Mundo, mesmo depois de eles terem alcançado independência e soberania formais.
Como muitos desses países cresceram, e em vários sentidos ultrapassaram os EUA, o método de manter a hegemonia mediante dominação econômica, que pode alterar a igualdade legal entre todos os estados-nações, foi-se tornando proporcionalmente menos e menos útil.
Isso explica em grande parte porque os EUA precisaram atacar a lei internacional, fazendo desse ataque o seu sistema operacional, para conseguir manter a dominação ou reconquistar a posição dominante de antes.
As forças combinadas de China, Rússia e Irã, absolutamente não são derrotáveis no continente eurasiano. Os EUA sabem muito bem disso, mas, por razões de sua própria cultura política e militar interna, exigiram 'uma prova' dos russos, sob a forma de campanha aérea massiva e bem-sucedida. Isso, precisamente, é o que os russos deram hoje a eles, e dar essa 'prova' foi, provavelmente, a principal razão dos ataques do dia de hoje.
E assim sendo, o que foi dito hoje por trás de portas fechadas?
O que muito provavelmente aconteceu foi uma série de ultimatos, dos dois lados. Mas é a Rússia que tem as cartas do jogo. A tática básica de barganha dos EUA é superestimar a própria mão e blefar. A Rússia sabe disso, e sabe da posição delicada e muito sensível em que estão os EUA, os quais só muito recentemente descobriram a própria mortalidade; por isso, os russos com certeza deixaram passar sem resposta, polidamente, sem provocações, as ameaças e exigências absurdas dos EUA. Ao mesmo tempo, não perderam em nenhum momento o foco da reunião: informar aos EUA a posição dos russos, final e inalterada.
O que não aconteceu é qualquer tipo de plano para ação conjunta de EUA e Rússia no serviço de atacar - alvos. A mídia-empresa norte-americana que já percebeu e está discretamente apontando nessa direção, cumpre o papel primário de intrometer dois tipos de interferência: vai desmontando a realidade de que, sim o ISIL é principal criação/aliado dos EUA; e faz parecer que os EUA seriam ainda parte de 'algo', seja o que for, que ainda cheira ou soa como 'vencer'.
O que deve realmente ter acontecido é os EUA terem negociado em nome de Turquia, Israel, Arábia Saudita e Qatar, para garantir que haja corredores de saída pra seus grupos e exércitos (híbridos) de mercenários estrangeiros/extremistas, e outros líderes importantes, especialistas e instrutores. Cada dia que passa, mais especialistas começam a dizer que, sim, entre os verdadeiros refugiados que estão chegando à Europa, há comandantes e instrutores importantes do Exército Sírio Livre/Frente al-Nusra, que estavam um pouco avançados na curva, viram e entenderam o rumo dos eventos e começaram a cuidar da própria saída algumas semanas mais cedo.
O que Kerry disse publicamente e que é criticamente importante - e é o que expõe claramente a real natureza das conversações de hoje - capitulação militar dos EUA - foi o seguinte:
"Como Sergey disse a vocês, concordamos quanto ao imperativo de uma, um... o mais rapidamente possível, talvez já amanhã, o mais rapidamente possível - de haver uma discussão para deconflec... desconfre... uma discussão para desconflitação militar, reunião, conferência, o que for, o que se possa fazer com a necessária rapidez, porque concordamos com a urgência dessa desconflitação."
"Discussão para desconflitação dos esforços militares" é formulação em linguagem pedante e falsamente neutra, para disfarçar o objetivo de 'livrar a cara' de alguém na operação que se descreve mais adequadamente como 'desenredamento', 'separação' ou, talvez mesmo, sendo o caso, como "definir termos para rendição incondicional".
É preciso olhar de frente, na cara do óbvio - e é preciso dar as coisas os nomes verdadeiros. Para que duas partes, dois lados ou dois exércitos tenham uma discussão para desconflitação - eles têm de estar em conflito. Isso, precisamente, é o que há aí, nessa conversa de última hora.
Outra coisa muito significativa que absolutamente não se ouviu publicamente, é qualquer conversa sobre o presidente Assad da Síria renunciar ao governo.
Praticamente não há sombra de dúvida sobre quem - ou Kerry ou Lavrov - suplicou que essa reunião de emergência acontecesse logo.
Por fora dessa admissão de derrota mais ou menos direta e completa, pelos EUA, há a semelhança com a situação do Debaltsevo e o Acordo de Minsk.
Serve como paralelo ao conflito da Ucrânia, onde se viu o caldeirão do Debaltsevo, e o cerco que Motorola disse publicamente que eram soldados da OTAN (que estivessem em formações de mercenários, como Greystone/ Blackwater/ Xe/ Academi não tinha importância nem alterava coisa alguma), e o subsequente Acordo de Minsk 2, construído sobre a derrota de forças norte-americanas 'por procuração', ante forças russas 'por procuração'.
Temos também, portanto, de especular sobre se há combatentes do MI6, da CIA, do Mossad e de outros serviços secretos/militares/forças especiais e/ou grupos mercenários ocidentais ligados a esses entre as baixas nos ataques de hoje.
E como se viu com o Acordo Minsk 2, aqui também se verá os EUA ininterruptamente tentando sabotar ou trabalhar contra tudo que eles mesmos declaram que estariam fazendo ou que se teriam comprometido a fazer.
Ao mesmo tempo, a Rússia está muito ciente disso, e confiará mais pesadamente na sua principal força básica no mundo emergente de hoje: a multipolaridade.
A aliança norte-americana está caindo aos pedaços, e qualquer movimento errado que faça pensar em conflito maior pode pôr em modo de choque a frágil economia norte-americana. Já foi difícil que chegue usar dinheiro de empréstimos [orig. debt spending] e razão crescente entre dívida/PIB para si-mu-lar (não para "estimular") crescimento. Já foi difícil que chegue mudar números a torto e a direito, para fazer que um índice crescente de desemprego desse a impressão de ser decrescente.
Essencialmente, o que a Rússia ofereceu aos EUA é também semelhante a setembro/2013 na Síria, mas em forma reforçada, quando a Rússia forneceu aos EUA - como faz agora - saída oficial elegante e digna, do conflito. Lá, veio na sequência de um ataque sob falsa bandeira, tentado pelos EUA, para pôr no governo sírio a culpa por ataque com armas químicas.
Atrás daquelas portas fechadas, os EUA ameaçaram aumentar o apoio e o reforço que dão à Al-Qaeda, Frente Al-Nusra, o nome que preferirem. Combina perfeitamente com o que emergiu publicamente, dito por Kerry (que a Rússia "será autorizada" a lutar sozinha).
Para realmente compreender como essas duas coisas caminham juntas, temos só de observar o que andam dizendo à mídia candidatos presidenciais tipo Trump, cuja tarefa tem sido ir enfiando a ideia na mente do cidadão norte-americano médio. A ideia é 'deixem' a Rússia resolver essa parada... mas com o objetivo real de aumentar o apoio contra os russos, para assim prender a Rússia numa arapuca semelhante à que os EUA já teriam conseguido fazer no Afeganistão.
Não há dúvidas de que o que está sendo dito pela televisão ao vivo, tarde da noite [quando esse postado foi escrito] - depois de um longo dia, quando a Rússia destruiu pelo menos oito alvos em 20 decolagens - é exatamente o oposto do que está sendo dito por trás de portas fechadas.
Com Lavrov, que fala o idioma claro e transparente da diplomacia russa, Kerry não teve escolha e lá ficou, a balançar a cabeça, como se o que Lavrov dizia fossem palavras que Kerry tivesse escolhido.
Prova de que Kerry, nas reuniões fechadas ao público, foi forçado a aceitar um acordo que absolutamente não foi do seu agrado - encontra-se nas suas declarações públicas finais.
Em conclusão e para resumir aquelas declarações: Kerry disse que os embaixadores apenas haviam listado alguns pontos de princípio sobre os quais estariam de acordo - Síria Unificada, Síria Soberana, Síria Democrática, Síria Secular e Síria aberta a todos os grupos étnicos e confessionais; que ele teria de levar tudo isso a Obama e "sua equipe", para aprovação final.
Em mais uma derrapada diplomática, e falando erradamente por Lavrov, Kerry acrescentou que Lavrov também levaria a relação "de pontos" para que Putin aprovasse. Tudo errado. Lavrov não precisa de nenhuma consulta extra, dado que a lista das exigências russas que Kerry aceitou sem reparos foi provavelmente a mesma lista que os russos já tinham pronta, no início da reunião. Não se tem notícia de vitória que tenha de ser 'aprovada' pelos superiores; termos de rendição, sim.
A diferença é que Lavrov, conforme a modalidade padrão entre os russos, chegou à reunião com plena autoridade de Estado para apresentar o documento do acordo o qual, para começar, foi redigido pelo próprio Lavrov. Mas Lavrov, diplomata brilhante e sempre cavalheiro, deixou que o infantiloide Kerry tentasse mais essa manobra para livrar a própria cara e controlar danos.
Evidentemente, em nenhum caso Lavrov discordaria ou corrigiria Kerry publicamente. A posição de força da Rússia não se baseia no que Kerry pense, faça, diga ou não diga, mas na posição que a Rússia construiu para si na comunidade internacional.
A força da Rússia é a força de seus parceiros na região e de suas próprias ações e movimentos, sempre apoiadas em princípios da lei internacional; e na sua própria capacidade militar - fartamente comprovada hoje.
A estratégia russa baseou-se no ponto de equilíbrio entre o poder real e o apoio 'em princípio' da comunidade internacional. Com o aventureirismo dos EUA perdendo gás, e já sem qualquer possibilidade de sucesso - os EUA passaram a perder também apoio na comunidade internacional. Quando aconteceu, a Rússia já estava posicionada para ocupar o vácuo.
Interessante, daqui em diante, será observar em tempo real o crescente isolamento dos EUA, e a capacidade cada dia menor que passará a ter para ações unilaterais e demandas sobre (e contra) o resto do mundo. E já foi divertido ver Kerry, na TV, ao vivo, sem conseguir não expor a real posição de rendição dos EUA, na Síria. *****
* JOAQUIN FLORES trabalha em Belgrado, é diretor do Centro para Estudos Sincréticos. O centro foi fundado em 2013 em Belgrado como organização internacional para educação ideológica, fórum de discussão e revisão de trabalhos significativos e novos itens, e organização militante para desenvolver propostas e recomendações, além de pesquisas de análises sociais sincréticas e interdisciplinares. É também editor chefe do serviço de notícias Fort Russ e presidente da Associação de Jornalistas Independentes pela Paz, com sede em Berlim.
30/9/2015, Joaquin Flores,* Fort Russ
Rússia está outra vez em guerra
30/9/2015, Oleg Nemen, Fort Russ (trad. Kristina Rus)