Le Figaro: O terceiro plano de ajuda à Grécia em cinco anos, 86 bilhões de euros, está assinado. Os ministros das Finanças da Eurozona aprovaram, na 4ª-feira à noite, o desbloqueio de uma primeira parcela de 26 bilhões de euros. O país conseguiu pagar, exatamente no prazo e sem dramas, 3,4 bilhões de euros ao Banco Central Europeu (BCE). É boa notícia?
Jacques Sapir: Os desembolsos que a Grécia fez (pagamento ao BCE) estavam já previstos e organizados há dias. Nada há de estranho ou surpreendente. Mas é preciso cuidado extremo com qualquer otimismo. O plano que se chama "de ajuda à Grécia", mas que essencialmente é plano para garantir a solvência da Grécia no curto prazo, em troca de condições que, sim, são realmente draconianas, permitirá que o país pague os credores. Mas não tirará o país da crise. Pior: o plano vai afundar a Grécia ainda mais fundo, na crise, organizando uma espoliação gigante dos ativos que pertencem ao governo grego, em benefício de algumas sociedades, da alemã, principalmente.
A Grécia novamente estará em depressão quando se virem os resultados do 3º e sobretudo do 4º trimestre. Essa depressão, organizada na realidade pelo tal plano dito de ajuda vai continuar em 2016 e sem dúvida também depois. Essa é a realidade dos fatos. Pretender o contrário é, no melhor dos casos, mentir a nós mesmos; no pior, é mentir aos outros.
Nessas condições, falar de solvência no caso da Grécia tem uma dimensão surrealista. Tecnicamente, a Grécia conseguiu pagar o que deve, mas graças a mais um empréstimo, suplementar. É o que se conhece como "sistema Ponzi" - uma 'pirâmide' financeira como as que vimos nos anos 1990 na Rússia e em outros países ex-socialistas.
Le Figaro: Não seria precipitado condenar antecipadamente esse plano?
Jacques Sapir: Os principais economistas que conhecem a Grécia e até o Fundo Monetário Internacional, todos condenaram esse plano. O FMI não quer participar desse plano, se não for concedida uma anulação de pelo menos 35% da dívida grega. Ora, sem a adesão do FMI ao plano, não será possível mobilizar o Mecanismo Europeu de Socorro à Liquidez), de onde terá de vir parte do dinheiro.
Mas é preciso compreender as razões dessa condenação quase unânime, pelos especialistas. No domínio macroeconômico, esse plano organiza uma contração muito forte da demanda interna e vai desestabilizar a sociedade, comprometendo os mecanismos de transferência intergeracionais [os velhos aposentados ajudam a manter as famílias de filhos desempregados] que estavam amortecendo parte da violência da crise social. Trata-se, na verdade, de um braço de ferro entre o governo grego e os credores a propósito das aposentadorias. Considerado que o auxílio desemprego é mínimo, parte da população só sobrevive com a ajuda de pais e avós. Organizar uma redução brutal do montante das aposentadorias implica agredir toda a população, não só os aposentados.
No que tenha a ver com reformas estruturais, as privatizações anunciadas não terão nenhum efeito positivo. É simplesmente um direito dado a empresas estrangeiras para comprarem empresas públicas por preços de liquidação. Vê-se claramente, no caso da privatização dos aeroportos regionais mais rentáveis da Grécia à uma sociedade alemã, cujo maior acionista é o governo alemão. As autoridades europeias, habitualmente sempre à caça de possíveis conflitos de interesses, nesse caso fecharam os olhos... Essas privatizações só teriam algum sentido se viessem acompanhadas de planos claros, precisos, números e valores, de investimentos a serem feitos na Grécia, quer dizer, gerar dinheiro novo para a economia grega. Não é absolutamente o caso, e o 3º memorando realmente conseguiu desarticular o embrião de política séria de privatizações que o governo grego começava a elaborar. Se se recapitula, o "plano" organiza uma queda de rendas e da demanda doméstica, não organiza de modo algum qualquer transferência de investimentos em proveito da Grécia, e vai favorecer, de fato, a estrutura de corrupção e colusão que o ministro Yanis Varoufakis denunciou quando esteve no cargo. E tudo isso num país que já conheceu cinco anos de depressão econômica, onde o desemprego já ultrapassou 28% e onde os investimentos produtivos fracassaram. Pode-se fazer pior que isso, talvez, se se explodir uma bomba atômica no subsolo de Atenas.
Le Figaro: 5ª-feira à noite, Alexis Tsipras, anunciou que se demite, com o objetivo de precipitar as eleições já antecipadas para 20 de setembro. Não conseguiu pôr fim ao arrocho [não é 'austeridade': é arrocho] na Grécia. Como o senhor explica tamanho fracasso?
Jacques Sapir: A demissão de Alexis Tsipras é lógica. O governo não tem mais maioria e só pôde aprovar as medidas impostas pela Eurozona, com os votos da oposição. Além disso, Tsipras sabe que ainda é mais popular que a direita grega (a Nova Democracia, o único partido conhecido que reúne duas mentiras, no próprio nome); e que os partidos do centro-esquerda estão completamente desacreditados (o PASOK, partido que se diz socialista; e To Potami, partido de um oligarca grego, com apoio de eurocratas de Bruxelas). Tsipras teme que a esquerda do SYRIZA não alcance influência considerável. Além do mais, na 6ª-feira, 21 de agosto, 25 deputados do SYRIZA deixaram o partido para fundar novo partido "Unidade Popular". Nessas condições, é lógico que Tsipras provoque rapidamente eleições antecipadas. Ele espera alcançar novamente a maioria (pelo sistema eleitoral grego, partido que chegue à frente nas eleições recebe um bônus de 50 cadeiras, das 300 que há no Parlamento).
O risco, para Tsipras não virá da Nova Democracia, que continua fortemente desacreditada, mas do número de cadeiras que o novo partido de esquerda venha a obter. Se o novo partido conseguir pelo menosw de 5% a 6% dos votos, que será já um grande feito para organização que acaba de constituir-se, o SYRIZA pode sem dúvida obter 25, 26% dos votos, receber o bônus de 50 cadeiras e buscar uma aliança com algum partido pró-memorando.
Mas se a Unidade Popular, nascida de uma cisão do SYRIZA, conseguir surfar a onda de fundo que gerou os 61% de votos a favor do "Não" no referendo de 5 de julho, e ultrapassar os 10% dos votos, a situação ficará muito mais difícil. Ainda mais porque se deve esperar crescimento considerável da extrema direita, "Aurora Dourada" que manipula o traumatismo da capitulação de Tsipras, mas também a crise dos refugiados que se desenrola em julho-agosto na Grécia.
A demissão de Tsipras é uma aposta política. Não é gesto de renúncia, não é gesto impensado. De fato, é uma disputa contra o relógio, entre Tsipras e seus opositores. Tsipras calcula que a inércia de sua popularidade o manterá à frente até 20 de setembro, contra um crescimento da esquerda. Mas não passa de cálculo. O eleitor grego decidirá.
Le Figaro: Quais foram os principais erros de Tsipras, nesses oito meses de mandato?
Jacques Sapir: Houve claramente um fracasso estratégico, no movimento de afrontamento entre Tsipras, os credores e o Eurogrupo. Esse fracasso é resultado de Tsipras ter-se deliberadamente fechado dentro de uma posição que o levava a preferir um mau acordo a uma ruptura. Mas não que não tenha havido discussão. Está circulando hoje uma 'teoria', segundo a qual a capitulação de 13/7 estaria inscrita no programa do SYRIZA. Mas é ideia que não resiste à análise.
Desde antes da eleição de 25 de janeiro, sempre soubemos que Tsipras e Varoufakis sabiam das pressões e ameaças que o Eurogrupo usaria contra a Grécia. Todo o sentido do "Plano B" que Varoufakis preparou era precisamente dar ar ao governo grego, no caso de que, como realmente aconteceu, o Eurogrupo e o Banco Central Europeu tentassem estrangular a Grécia.
Maa a lógica desse "Plano B" implicava preparar uma saída do Euro. Por razões essencialmente ideológicas, Tsipras recusou-se a adotar essa via. Porque, ainda que Varoufakis se tenha pronunciado a favor do euro sob certas condições, ele tinha plena consciência de que a lógica do "Plano B" podia levá-lo a sair do euro. E mesmo assim Varoufakis trabalhou nesse "Plano B".
A posição de Varoufakis sobre o euro evoluiu, de janeiro a junho passado. Ele continua a entender que sair do euro é um "mal", mas "mal menor", em comparação com aceitar o acordo de 13 de julho e o 3º memorando.
Depois de esse erro estratégico ter sido cometido, e só se consumou na noite de 5-6/7/2015, quer dizer, depois do referendo no qual o "Não" ganhou por larga margem, a capitulação de 13 de julho foi decorrência. Taticamente, Varoufakis conduziu muito bem a negociação. As propostas apresentadas pelo governo grego tinha sentido. O governo grego naõ rejeitou todas as medidas econômicas, mas as ligava, com razão, a medidas para lançar a recuperação.
Bem diferente da imagem que uma certa imprensa veiculou, a negociação não consistiu em o governo grego "recusar" tudo. Bem ao contrário. Tanto Tsipras como Varoufakis estavam perfeitamente conscientes da desordem que afeta o Estado grego, seu sistema fiscal, e o peso absurdo que têm os oligarcas dentro da economia grega. Mas o Eurogrupo, esse sim, sistematicamente recusou qualquer negociação. E menos por razões econômicas que por razões políticas. Houve ali, claramente, o desejo de castigar o governo e o povo grego, além de desprezo profundo e explícito pela democracia.
Le Figaro: Qual foi o evento decisivo?
Jacques Sapir: Em termos de decisão, aconteceram a noite de 5-6 de julho e a reunião do comitê restrito do governo, na qual Varoufakis ficou em minoria. Tenho a impressão, quando releio as conversas que tive com o grupo, que Varoufakis estava então resolvido a atravessar o Rubicão, a nacionalizar os bancos gregos e, também, a assumir o comando do Banco Central da Grécia. Estava plenamente consciente de que isso provocaria o rompimento com o Eurogrupo e a saída da Grécia, do Euro. Nessa situação, a Grécia teria de oficializar o não pagamento de sua dívida soberana - o que a poria em posição de força para continuar as negociações com os credores.
Os que suponham que Tsipras teria tomado a única decisão possível ou não conhecem os fatos e o desenrolar dos acontecimentos ou, então, e mais provavelmente, mentem com pleno conhecimento de causa.
Mas pode-se também pensar numa virada mais sutil, quando Tsipras não deu andamento às propostas de Varoufakis de ativar uma parte do famoso "Plano B", no mês de maio. Pode-se assim pensar que Varoufakis, então em plena evolução pessoal, teria podido e devido procurar mais contatos com a ala esquerda do SYRIZA, e ali encontrar os apoios políticos que lhe permitiriam alterar a relação de forças.
Mas é preciso considerar também que, em abril e maio de 2015 Varoufakis negociava cara a cara com o Eurogrupo e a Comissão Europeia. O dia só tem 24 horas.
Contudo, seja qual for a data a examinar, é evidente que o jogo esteve aberto até o referendo. Mais uma vez vê-se aí que a ideia de que a capitulação de 13/7 estaria prevista no programa do SYRIZA é mentirosa. Essa ideia ignora todos os enfrentamentos e debates que se desenrolaram de janeiro a junho.
Mas também se pode dizer que, ao limitar o debate às instâncias centrais, superiores, do SYRIZA, Varoufakis muito provavelmente enfraqueceu a própria posição.*****
* Jacques Sapir dirige o grupo de pesquisa Irses na FMSH, e co-organiza, com o Institut de prévision de l'économie nationale (IPEN-ASR) o seminário franco-russo sobre problemas financeiros e monetários do desenvolvimento da Rússia. Publica regularmente em seu blog, RussEurope.
21/8/2015, Jacques Sapir* (entrevista a Alexandre Devecchio), Le Figaro