Essa foi semana na qual as iniciativas da política externa do presidente Obama azedaram; e, para piorar, todas parecem ter azedado ao mesmo tempo.
Não é fácil dizer por que essa constelação de eventos aconteceu numa espécie de sincronia, mas há poucas dúvidas de que o presidente Obama está diante de um muro de truculência que emana de toda a região. Dos sauditas, sobre virtualmente tudo; de Abu Mazen [Mahmoud Abbas] e da Liga Árabe, sobre reconhecer Israel como estado judeu e a libertação de prisioneiros; ou o desprezo de Moshe Yaalon, pelo plano de segurança ('engenhoca') dos EUA; ou a ira dos egípcios, pela acanhada reação dos norte-americanos ante a matança e a condenação à morte em massa de Irmãos da Fraternidade Muçulmana; ou como resultado dos sucessos do presidente Assad, que criou fatos militares suficientes para virar o jogo em campo; ou resultado do humor pendular do Irã que, agora, vê as possibilidades das conversações do grupo P5+1 sob luzes mais escuras; ou as ações de um touro ferido, com sangue nos olhos, que chifra para todos os lados em Ancara.[1]
Feitas todas essas contas, o presidente Obama tem pela frente tempos políticos nada fáceis e, isso, no momento crucial da campanha para as eleições parlamentares de meio de mandato.
Para que não pairassem dúvidas, os sauditas disseram com todas as letras[2] que Obama não espere vida fácil em Riad[3] - a menos que esteja preparado para mudar de rota sobre o Irã, ser militarmente proativo na Síria e dar apoio a Sisi, no serviço de esmagar a Fraternidade Muçulmana. Para o caso de o recado não ter sido ouvido, foi repetido, com o anúncio, na véspera da visita de Obama, de que o príncipe Muqrin será o próximo, na linha de sucessão, depois do atual Príncipe Coroado. Em outras palavras, o Reino Saudita está declarando: "EUA, nem pensem em interferir na sucessão, com o favorito de vocês, príncipe Mohammad bin Naif".
E para deixar bem claro ao presidente Obama que as coisas não serão fáceis tampouco nas conversações Israel-palestinos, a Liga Árabe alinhou-se - com Abbas -, em declarações que parecem estar comprometendo todos os membros da Liga Árabe com a posição de "rejeição absoluta" a qualquer reconhecimento de Israel como estado judeu. Foi tranco suficiente para que o secretário de Estado deixasse Roma e voasse diretamente a Amã, para tentar salvar pelo menos em parte as conversações de depois do fim de abril, e conseguir, que seja, alguma espécie de 'mapa do caminho' desbotado.
E no Egito, um dia antes da visita do presidente Obama, Sisi anunciou que é candidato à presidência, notícia há muito tempo adiada. Em resumo, está dizendo aos EUA "Estou aqui para ficar. Vocês não têm escolha: têm de trabalhar comigo, gostem ou não gostem."
E acima e em torno de todos esses itens, paira o relacionamento dos EUA com a Rússia. Já argumentamos em vários "Comentários" anteriores que a política de Obama para o Oriente Médio tornou-se pesadamente dependente de uma relação necessariamente privada, nunca comentada, com o presidente Putin. Já seria necessário que assim fosse - sem cenas públicas, próxima, pode-se dizer íntima, próxima do coração de Obama - por causa das animosidades residuais da Guerra Fria que persistem, se não também em muitos outros pontos, pelo menos dentro da própria "equipe de rivais" do governo Obama, que está furiosa por causa da Síria, furiosa por causa das negociações com o Irã e profundamente ressentida, obrigada a assistir ao ressurgimento da Rússia.
Parece que, empurrado para as cordas do confronto contra Putin, por membros neoconservadores de seu governo, na disputa pelo mais improvável dos butins (só não é improvável, é claro, para o contingente neoconservador de seu próprio governo), o presidente Obama ficou sem escolhas, obrigado a reconhecer que a Ucrânia sobretudo, para muitos norte-americanos, é um símbolo psicológico.[4] O que, se não isso, explicaria que um estado remoto, pequeno, falido, assuma tal significação e desperte emoções tão apaixonadas entre as elites políticas?
É profundamente perturbador, e desperta ódios só parcialmente sublimados, que o mundo não esteja caminhando pela história linear, como 'deveria'.
O presidente Putin está, efetivamente, negando a narrativa de um 'fim da história' pela qual todos nós convergiríamos para a órbita da globalização liberal norte-americana e seu séquito, sempre presente, sempre de autoperpetuação, de "conjunto de regras". E ao fazê-lo, os russos estão pondo em questão algo muito fundamental sobre como alguns norte-americanos e europeus se autodefinem.
Parece que Obama vê isso, e está entendendo que, a menos que ele responda à psicologia do momento, a ira sublimada dirigida contra a Rússia, virar-se-á contra ele.
Em Bruxelas essa semana, ele portanto repetiu a questão da Ucrânia nos termos da mesma narrativa simples: desafiando o presidente Putin, Obama diz que os eventos na Ucrânia nada têm a ver com a aliança ocidental explorar o sul vulnerável da segurança da Rússia, mas devem ser corretamente compreendidos como nada além de um ocidente civilizado que apoia o progresso linear, regular, em direção à liberdade, ao individualismo e à democracia. E, com todos progredindo e ascendendo por essa trajetória, todos naturalmente nos dirigimos para aceitar o 'conjunto de regras' que governa e difunde-se por esse mundo conectado, globalizado. Não há lugar para os que recusem a ordem internacional ou desrespeitem o "conjunto de regras" que subjaz e dissemina a conectividade liberal global.
Provavelmente, o presidente Obama não tinha outra escolha que não fosse essa posição simplória de apoio à história linear - pelo menos, para se autovacinar contra acusações de ter contribuído para que a liderança excepcional dos EUA fosse diluída e deixada perecer. Afinal, o excepcionalismo norte-americano depende existencialmente da história linear.
Mas essa abordagem - embora talvez obrigatória, em termos do eleitorado doméstico de Obama -, põe abaixo a política de Obama para o Oriente Médio.
Ao negarem à Federação Russa, ao Irã ou à Síria o direito a uma visão alternativa coerente de seu próprio futuro, os EUA tentam outra vez prender-se pelas próprias garras à narrativa de uma sua liderança global - e retomar o papel de 'moralizador-em-chefe e único árbitro do que sejam pensamento e comportamento normais e anormais. Essa ideia mancha e complica qualquer negociação de política externa, e dificulta muito todas elas.
Já está dividindo a Europa (adiante, mais sobre isso); chineses e russos sentir-se-ão repelidos; e fará o Irã resistir mais firmemente a todas as demandas dos EUA.
Em termos práticos, Obama - ante um Oriente Médio truculento - deve desejar que as tensões com a Rússia sejam discretamente desescaladas (apesar do discurso que fez em Bruxelas) e que ele consiga reencontrar algum tipo de relacionamento de trabalho com o presidente Putin. Assim, terá ainda alguma probabilidade de salvar alguma coisa de sua política exterior, ante o assalto que lhe movem seus adversários ideológicos. Resta uma pequena possibilidade de que consiga [e depende de Putin]: embora a Rússia deva, com certeza, orientar de outro modo sua política externa à luz dos eventos na Ucrânia, o presidente Putin sempre se mostrou muito hábil no trabalho de separar 'os casos'. Putin pode manter-se em posição de oposição em alguns casos chaves, e mesmo assim cooperar em outros.
O 'melhor amigo' de Obama na tentativa de salvar alguma coisa do imbróglio na Ucrânia será provavelmente Angela Merkel. A chanceler alemã disse que "não está interessada" na escalada de tensões com a Rússia. "Ao contrário", disse ela, "estou trabalhando para desescalar a situação". Disse que o ocidente "não alcançou posição que implique impor sanções econômicas" à Rússia. "E espero que consigamos evitar isso", acrescentou.
Outro político alemão, e ex-chanceler, Helmut Schmidt, que mantém coluna regular em Die Zeit, escreveu[5] que a abordagem de Putin na questão da Crimeia é "completamente compreensível". As primeiras sanções ocidentais (contra indivíduos) foram "completamente estúpidas", continuou ele, e "sanções econômicas mais sérias ferirão o Leste, tanto quanto o Oeste". A decisão de reduzir o G8 para G7 pensando em punir a Rússia é erro grave, Schmidt alertou: "Muito bom seria reunir os oito agora, exatamente agora. Com certeza seria melhor serviço, com vistas à paz, que a ameaça das sanções".
Mas também essa esperança, o presidente Obama está obrigado a manter guardada no peito: há muitos velhos (e uma nova geração) de Guerreiros da Guerra Fria, tanto nos EUA como na Europa, que temem, mais que qualquer outra coisa, a emergência na Europa, de um eixo russo-alemão. O caso Ucrânia já abriu fissuras entre os EUA e a União Europeia, quando, vale lembrar, o objetivo original (declarado por John Kerry na Conferência de Segurança de Munique) do 'movimento' na Ucrânia era unir a Europa sob uma liderança revigorada de EUA-OTAN.
A OTAN, hoje, está sem 'missão' crível (assim, portanto, está sem justificativa para os gastos com defesa). A Ucrânia só deu à OTAN causa clara para, no máximo, reforçar uma 'linha Maginot' da Estônia ao Azerbaijão. Com isso, a OTAN pode, pelo menos, reformular sua missão. Na direção exatamente contrária aos interesses da Alemanha de Merkel, o que interessa à 'indústria da defesa' é manter sempre crescentes as tensões com a Rússia. *******
[1] http://www.todayszaman.com/columnist/abdullah-bozkurt_342915_a-psychological-profile-of-erdogan.html
[2] http://www.raghidadergham.com/4rdcolumn.html
[3] http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303949704579460902655125342?mg=reno64-wsj&url=http%3A%2F%2Fonline.wsj.com%2Farticle%2FSB10001424052702303949704579460902655125342.html
[4] http://www.dedefensa.org/article-a_n_cessit_du_facteur_psychologique_27_03_2014.html
[5] http://rt.com/news/schmidt-crimea-russia-germany-465/
5/4/2014, Comentários da semana 21-28/3/2014
http://www.conflictsforum.org/2014/conflicts-forums-weekly-comment-21-%E2%80%93-28-march-2014/