Aos poucos, a resposta do Kremlin vai-se tornando mais visível

Русские долго запрягают, но быстро едут
("Os russos demoram para selar o cavalo. Mas depois que montam, andam depressa.")
Ditado russo


Ao longo dos últimos dias, os eventos na Ucrânia entraram em fantástica aceleração e houve vários eventos simultâneos. Vou tentar apontá-los um a um.

Assim sendo... E o Kremlin? De fato, acho que começo a discernir o que me parece ser uma estratégia de resposta em várias camadas, que o Kremlin porá em andamento, todas as camadas simultaneamente:

1) No plano da legislação vigente:

Ao retirar Yanuk do país e permitir que se refugiasse na Rússia, o Kremlin deixou claro que o presidente legitimamente eleito da Ucrânia estará fisicamente disponível para desafiar qualquer e todas as decisões do novo governo, do Parlamento controlado pelos insurgentes e do governo nacionalista fascista. É evidente que Yanuk está politicamente morto, mas, em termos da legislação vigente, continua a ser extremamente poderoso e ator importante que tem de ser mantido vivo.

2) No plano ucraniano:

O (agora ex-) governador da Carcóvia, Mikhail Dobkin, fez "discreta" viagem à Rússia e voltou com a decisão de renunciar ao cargo de governador, para concorrer à presidência. À primeira vista, a ideia de participar de eleições controladas pelos fascistas pode parecer estúpida, mas repense: em primeiro lugar, no caso totalmente improvável de uma eleição que seja pelo menos 50% decente, ele quase com certeza será eleito (a maioria dos ucranianos não apoia os fascistas). Segundo, se a eleição for 'manejada', Dobkin, candidato, poderá questioná-la. Terceiro, pelo simples fato de concorrer, ele pode forçar a imprensa controlada pelos fascistas (sobretudo a TV) a dar-lhe tempo de televisão no ar para responder à propaganda nacionalista fascista. Assim, tudo considerado, é movimento astuto.

3) Na Crimeia - nível político:

Para a Crimeia, eu diria que é assunto resolvido: em maio, se tornará estado independente. Esse estado terá alternativas abertas para ele. Se, por algum milagre inesperado e basicamente impossível, Dobkin for eleito presidente, a Crimeia pode aceitar um statu quo ante [lat. "estado em que as coisas estavam antes"], mas com o claro entendimento de que aquele será arranjo federativo do qual a Crimeia poderá separar-se a qualquer momento. Se algum dos doidos nacionalistas for 'eleito', nesse caso a Crimeia romperá todos seus laços com a Ucrânia e se unirá à União Econômica com Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão e Armênia, como estado independente.

4) Na Crimeia - nível de segurança:

A Rússia usará a força para defender a Crimeia se for necessário. A solução preferível é ajudar as autoridades locais a defenderem-se, elas mesmas, fornecendo fundos, armas (se necessárias), expertise (se necessária), inteligência (se necessária), etc.  Mas em praticamente todos os caso, nada disso será necessário, simplesmente porque tudo isso pode ser fornecido pela Frota do Mar Negro, com base ali mesmo. No máximo, os ucranianos nacionalistas podem mandar para lá as gangues de bandidos que já usaram em Kiev. 

Por outro lado, a Frota do Mar Negro pode mobilizar a 810ª Brigada Independente de Infantaria Naval, o 382º Batalhão Independente de Infantaria Naval e, até, o 102º Destacamento independente Spetsnaz da Marina [emblema, na imagem], o que significa algo entre 1.300-1.400 soldados de elite, todos eles oficiais super treinados, com longa experiência de combates, apoiados por artilharia, força aérea, blindados, etc. De fato, minha expectativa é que as autoridades locais e as forças policiais (inclusive os Berkut da polícia antitumulto local e as milícias populares de defesa) serão suficientes para conter qualquer 'visitante' da insurgência que apareça por lá, sem precisar de qualquer ajuda da Frota do Mar Negro. Em resumo: a insurgência ucraniana jamais controlará a Crimeia.

5) Leste da Ucrânia:

É onde as coisas ficam muito mais nebulosas. Meu palpite é que o Kremlin está adotando uma atitude de "esperar para ver" em relação ao leste da Ucrânia, esperando pelo que aconteça num nível local. O princípio básico por trás da política do Kremlin é "só ajudamos os que se ajudem eles mesmos e façam por merecer nossa ajuda". A Crimeia é exemplo perfeito dessa abordagem. Fato é que os nacionalistas têm forte presença em Carcóvia, Dniepropetrovsk ou Poltava. Assim sendo, o desenlace aí é muito mais difícil e delicado de antever.

6) Restante da Ucrânia:

Aqui, entendo que a política correta é autoevidente: primeiro, deixar que os doidos lutem entre eles até aplacarem o coração. Eles que comandem a já arruinada economia real; eles que descubram até onde conseguem sobreviver movidos só a hinos nacionalistas e gritos de "Бий жидів та москалів - Україна для українців" (Fora, judeus e russos, Ucrânia para os ucranianos). A União Europeia e os EUA que compareçam com os $35 bilhões para pagar por mais essa 'revolução colorida' e evitar um calote; e, depois, eles que deem jeito de administrar esse novo regime "popular pró-ocidente". 

Então, quando o dinheiro deles acabar, é esperar que recorram ao Kremlin e peçam ajuda. Aí, basicamente, se tratará de 'comprar a parte deles para tirá-los do negócio', item a item, fábrica a fábrica, político a político, oligarca a oligarca, região por região.  A Rússia NADA deve a esses nazistas odiadores de russos. E nada lhes dará gratuitamente. Os nacionalistas ucranianos tentarão retaliar, sobretudo com ataques aos gasodutos russos que atravessam a Ucrânia, mas essa é estratégia inviável: ferirá, em primeiro lugar e mais fundo, a Europa; e, afinal, a Rússia construir dois gasodutos que não passam pela Ucrânia. Eventualmente, a Ucrânia acabaria por romper com o ocidente.

Quanto à China, já está processando judicialmente o novo regime por quebra de contratos comerciais (ou, pelo menos, já há notícias disso, em algum dos noticiários que ouvi). A China seguirá a Rússia, nesse caso.

7) Violência previsível no leste da Ucrânia:

A menos que ocorra um milagre, haverá muita violência nas províncias do leste da Ucrânia. No ponto em que estão as coisas hoje, não vejo qualquer intervenção militar russa para proteger a população falante de russo, que terá de defender-se, ela mesma. A Rússia garantirá (a) apoio político, (b) financeiro e, possivelmente, quantidade limitada de (c) apoio secreto.

Por hora, pelo menos, é isso. É possível que eu tenha de corrigir/refinar essa análise.

Quanto a EUA/OTAN, não acredito que intervirão militarmente. Haverá MUITA propaganda anti-Rússia, muita propaganda pró-nacionalistas fascistas, milhões de dólares norte-americanos continuarão a encher as burras dos líderes do golpe, mas, mais cedo ou mais tarde, os EUA e seus fantoches europeus terão de se conformar ante a evidência de que fracassaram: não expulsaram da Crimeia a Frota do Mar Negro; e a Crimeia se encaminhará na direção da Rússia: será o tiro pela culatra, da 'revolução colorida' que EUA e União Europeia inventaram em Kiev.

Mas em nenhum caso EUA/EU reconhecerão qualquer tipo de autoridade pró-Rússia em nenhuma parte da Ucrânia. Por isso é possível que o país rache, como a Geórgia ou as duas Coreias. OK. Absolutamente não tirará o sono nem da Crimeia nem da Rússia - EUA/EU que tenham sua própria versão do Kosovo, só para variar :-)

O que lhes parece? O que escrevi faz sentido?
Muito obrigado e saudações.
[assina] The Saker

 

 


[1] Sobre isso ver http://es.wikipedia.org/wiki/Congreso_del_Pueblo_T%C3%A1rtaro_de_Crimea [NTs].

 

27/2/2014, The Saker, The Vineyard of the Saker
http://vineyardsaker.blogspot.com.br/2014/02/the-kremlins-response-to-events-in.html


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey