Para começar, o líder da maioria, o Republicano John Boehner não é Christian Bale. Para nem falar de Jeremy Renner. Mas trapaceiro, sim, isso ele é.
Praticamente ninguém fora dos EUA lembra que Boehner começou a urdir a trapaça que se converteria em sua marca registrada há nada menos de três anos. Foi extorsão espetacular que bem poderia ter sido planejada por alguma máfia. Boehner ameaçou forçar os EUA ao calote da própria dívida, se o governo Obama não se rendesse e fizesse alguns pesados cortes no orçamento. Tipo "Obedeça, ou sua casa será incendiada."
Agora parece que a trapaça - como no filme - já não continuará a render (e não por que Boehner tenha sido "interceptado" pelo FBI). O Líder da Maioria, de fato, se autointerceptou; e reapareceu no Congresso dos EUA com nova proposta para o teto da dívida dos EUA.
A lei foi aprovada, basicamente graças aos votos dos Democratas (199 Republicanos votaram contra a proposta de Boehner). Apesar de terem sido alertados pelo próprio Boehner, de que "não vamos conseguir fazer história sozinhos", os Republicanos enfureceram-se. E, como se podia prever, a imprensa-empresa norte-americana enlouqueceu de ira por conta da "rendição" (quando falavam de Boehner) e da "vitória" (quando falavam do presidente Obama), como se se tratasse da final da disputa de snowboard halfpipe em Sochi (quando Shaun White, nascido nos EUA, perdeu para Iouri 'iPod' Podladtchikov, nascido na Rússia).
Previsivelmente, a máfia - a gangue dos grupelhos de direita disfarçados em 'organizações' como Fundo dos Conservadores do Senado [orig. Senate Conservatives Fund (SNC)], e patriotas do Tea Party e de Freedomworks - quer, e o que mais quereria?! - a cabeça de Boehner. O homem cometeu pecado imperdoável: liquidou o "governo mínimo" e não vai "impedir o gasto massivo e a dívida que estão destruindo nosso país", segundo o SNC.
Siga o dinheiro
É verdade que ele tem o carisma de restos de salada esquecidos na geladeira, mas Boehner é trapaceiro bem informado. Mudou seu plano de jogo por duas simples razões.
#1 (e mais importante): para tranquilizar o dinheiro grosso de Wall Street, que abomina agitação política.
#2 é mais turva. Boehner calculou que, por extensão tranquilizaria também o Partido Republicano, que obedece aos Patrões do Universo e seus especialíssimos interesses, mas foi sequestrado pelos fanáticos doidos estilo Tea Party. O problema, contudo, persiste; até líderes do partido como Paul Ryan e Cathy McMorris Rodgers - que redigiram a resposta (terminalmente tediosa) à fala de Obama sobre o Estado da Nação - apoiaram os insurgentes.
Numa linha, para resumir: a trapaça inicial de Boehner foi ruim para os negócios. Basta ouvir, para ter certeza, o que a diretora de investimentos e gerente de crédito da Moody's Investors Service, Anne Van Praagh, disse sobre a nova proposta de Boehner: "Mais falta de consenso teria tido consequências potencialmente negativas para o mercado e para a economia."
E o dinheiro grosso, é claro, foi absolutamente atendido. Aqueles investidores que estão pesadamente 'comprados' na dívida vinham observando atentamente os papéis do Tesouro dos EUA, que subiam desde fevereiro. Mensagem: O Congresso dos EUA não vai ser doido de não aumentar a tempo o limite de endividamento, e não deixará que esse monstro de $17 trilhões continue a crescer e crescer sem cobertura.
Mas... porque essa loucura, sim, só aumenta, e com o Congresso dos EUA já alcançando o pico negativo de menos de 10% de aprovação da população... nada, afinal, poderia ser dado por resolvido; até que Boehner mudou sua proposta.
Seja como for, não há garantia de que a trapaça original não volte à pauta. Afinal, o Partido Republicano é hoje considerado pelos progressistas, em todos os EUA, e, até, por conservadores civilizados e esclarecidos, como o Partido do "Não".
Não a qualquer coisa que Obama queira ou diga - principalmente o Obamacare. Não à reforma da imigração. Não a uma estratégia nacional de segurança que faça algum (qualquer) sentido. Não a todas as minorias, para nem falar uma maioria absolutamente crucial: as mulheres (para muitos Republicanos, o estupro é "legítimo"). Esse essencialmente é o território dos machos impotentes e furiosos. Nem surpreende que estejam derrotados. Eles sabem que perderam. O problema é que só sabem responder com ódio e violência, seja qual for a questão.
Pois mesmo assim, com sorte, quantidades astronômicas de dinheiro e manipulação pesada nos veículos da imprensa-empresa, além de estoque infindável de mentiras sistemáticas, eles têm ainda chance de conservar a maioria do Senado nas eleições parlamentares de meio de mandato, em novembro. É fácil esquecer que, apesar da manha calibrada, o governo Obama já entrou em modo de pato manco.
O governo Obama tem meios para seduzir os Republicanos insurgentes; por exemplo, se mantiver o orçamento do Pentágono como item à parte do orçamento, não controlável pelo Congresso, só para permitir que o dinheiro para o Pentágono cresça e cresça até o ano fiscal de 2016, quando La Hillaryator (Hillary Clinton + Terminator) provavelmente estará trabalhando para a segunda vinda de Athena, dessa vez para capturar a Casa Branca.
Que ninguém se iluda: o show - e a trapaça - continuarão. E só acabam quando os Machos Brancos e Furiosos[1] quiserem que acabem. Filme chato? Ora! Sempre se pode assistir à Trapaça-filme em DVD, ou à segunda temporada de House of Cards no canal NetFlix! ****
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* Orig. American Hustle, filme de 2013. No Brasil, "A Trapaça" (detalhes em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-205330/). Em Portugal, "Golpada Americana" (em http://cinema.sapo.pt/filme/american-hustle) [NTs].
[1] Vide http://www.truth-out.org/opinion/item/20177-the-rage-of-the-angry-white-male-continues-its-incendiary-battle-against-gender-and-racial-equality
13/2/2014, Pepe Escobar, Russia Today - http://rt.com/op-edge/american-hustle-869/
Se, pelo menos, o Congresso dos EUA fosse tão divertido de assistir quanto A Trapaça, o filme (em Portugal, Golpada Americana).*