Aminetu Haidar: Um testemunho de dignidade

Carmelo Ramírez (*)

(artigo de Opinião publicado no periódico “CANARIAS7” ( http://www.canarias7.es/articulo.cfm?Id=156588 )

Las Palmas de Gran Canaria

A greve de fome levada a cabo por Aminetu Haidar no aeroporto de Guacimeta, na ilha canária de Lanzarote, durante 32 dias, depois da sua expulsão ilegal pelo Governo de Marrocos de El Aaiun no passado dia 14 de Novembro de 2009, colocou no centro das atenções a nível internacional o conflito do Sahara Ocidental, a última das colónias africanas por descolonizar.

Ao longo dos 32 dias de greve os diferentes meios de comunicação fizeram luz sobre a dramática situação que sofre este povo desde há 34 anos, data em que foi firmado o Acordo Tripartido de Madrid, através do qual, o Governo de Espanha, atraiçoando o Povo Saharaui, permitiu a ilegal ocupação militar do Sahara Ocidental pelos exércitos de Marrocos e da Mauritânia.

Durante estes 32 dias, os meios de comunicação puseram em relevo o seguinte:

— O Governo de Marrocos impõe seus critérios e seus caprichos no Sahara Ocidental, com a permissividade dos organismos internacionais (ONU e UE) e das grandes potências (França, EUA., Espanha …). Um exemplo claro foi a expulsão ilegal de Aminetu Haidar do Aeroporto de El Aaiun para Lanzarote, em contravenção com as Leis Internacionais de Liberdade de movimento das pessoas e confiscando o seu passaporte, acto inadmissível num Estado de Direito.

— O Governo de Marrocos viola sistematicamente e de maneira permanente os Direitos Humanos no Sahara Ocidental, reprimindo a população Saharaui e impondo um clima de medo e de terror. Estas violações, denunciadas por organismos internacionais e organizações defensoras dos Direitos Humanos, materializam-se em encarceramentos dos activistas saharauis, torturas, ameaças e roubo e destruição de casas e pertences, violações de homens e mulheres, espancamento e abandono em locais desabitados ou aterros , pressão sobre crianças e jovens e um muito longo etc…

— Actualmente, Marrocos detém encarcerados 60 defensores saharauis de Direitos Humanos e a 7 deles aplicou a jurisdição militar, o que significa que podem ser condenados à morte ou a pesadas condenações, sem terem cometido qualquer tipo de delito.

— O Governo de Marrocos impede o acesso aos Territórios Ocupados a observadores internacionais para verificar as violações dos Direitos Humanos e obstaculiza o trabalho das delegações oficiais, como é o caso da Comissão Ad Hoc do Parlamento Europeu, cujo informe ainda não foi publicado apesar da visita se ter efectuado nos primeiros meses do ano de 2009.

— A espoliação das riquezas naturais do Sahara Ocidental, sejam os recursos pesqueiros, os fosfatos, a areia ou os minerais, é uma constante que o Governo de Marrocos vem realizando há décadas, violando com essa exploração os direitos do povo saharaui, detentor desses recursos, segundo o parecer jurídico Corell das Nações Unidas de 2002.

— O Governo de Marrocos impede a celebração do Referendo de Autodeterminação, com todas as opções acordadas (nota: integração, autonomia e independência), ludibriando as resoluções do Conselho de Segurança da ONU e impondo uma situação de ocupação de facto, absolutamente ilegítima e ilegal.

A greve de fome de Aminetu Haidar teve a virtude de mobilizar a opinião pública internacional, instituições como a ONU ou a União Europeia, Governos, organizações políticas e sindicais, instituições Locais e Regionais, colectivos de todo tipo, a personalidades como prémios Nóbel, actores e actrizes, cantores, escritores e intelectuais de todo o mundo, alarmados pelo seu estado de saúde e pela situação da população saharaui que sofre directamente a repressão do Governo de Marrocos.

O extraordinário desta acção foi ter conseguido converter um acontecimento pontual de dimensões reduzidas, como foi a ilegal expulsão de el Aaiun, num acontecimento de dimensão internacional, com um impacte mediático inimaginável, que colocou o dossiê do Sahara Ocidental na primeira linha durante os 32 dias de greve de fome, desmascarando a verdadeira natureza do regime marroquino, absolutamente antidemocrático, de cariz medieval, e que não hesita em aplicar a violência e o terror sobre una população civil indefesa e isolada.

Em que contexto se desenvolveu esta greve de fome?

s Em primeiro lugar, num contexto de escalada brutal na repressão dos Direitos Humanos sobre a população saharaui por parte do Governo de Marrocos, que se traduz em factos como:

— Os recentes e reiterados discursos do Rei Mohamed VI, chamando traidores “aos que não defendam a integridade territorial”.

— A aplicação da Jurisdição Militar aos 7 activistas saharauis detidos em Casablanca, acusados de traição e que podem ser condenados à morte, sem terem cometido delito de qualquer espécie.

— A confiscação de documentos de viagem, passaportes, aos activistas saharauis para impedir a sua liberdade de movimentos, para que, assim, não possam sair para o exterior.

— O incremento da repressão nos territórios ocupados com prisões, torturas, espancamentos e detenções arbitrárias de activistas saharauis.

s Em segundo lugar, no bloqueio à celebração do Referendo de Autodeterminação que possibilite ao Povo Saharaui decidir o seu futuro livremente e com todas as garantias democráticas. Este incumprimento por parte do Governo de Marrocos das resoluções da ONU de maneira reiterada e permanente coloca a região do Magreb numa perigosa encruzilhada se a Comunidade Internacional não pressionar o Governo Marroquino e lhe imponha o cumprimento da realização do Referendo de Autodeterminação e o termo da violação dos Direitos Humanos.

s Em terceiro lugar, o Governo de Marrocos trata de impor como “única saída possível” um estatuto de Autonomia para o Sahara Ocidental. Esta fórmula altera a natureza do conflito já que se trata de um assunto de descolonização e implica a aceitação de antemão da soberania marroquina do território. Esta proposta não foi aceite pela ONU nem pela Comunidade Internacional, à excepção da França. Apesar disso, o Governo de Marrocos mobilizou os seus lobbistas para fazerem propaganda da mesma, como “a única solução real para o conflito”. As opiniões e artigos de gente como Felipe González, Moratinos, Duran i LLeida, Olarte, Máximo Cajal ou Arístegui fazem parte desta estratégia marroquina de justificar a anexação unilateral e ilegal do território do Sahara Ocidental.

s Em quarto lugar, o Governo de Marrocos socorre-se de temas sensíveis como o terrorismo, a emigração irregular ou o tráfico de drogas para vender-se aos países da Europa e Estados Unidos como o guardião do Norte de África e o garante da segurança. Em troca, pede apoio na ocupação do Sahara, acordos económicos e a “homologação democrática e progressista” da sua acção de governo.

Toda esta estratégia medida, calculada, planificada pelo regime marroquino foi posta em causa com a Greve de Fome de Aminetu Haidar. O triunfo da greve, com o seu regresso sem condições a El Aaiun, acaba com o mito da impunidade do rei marroquino e do seu autoritarismo.

O papel jogado pela Espanha neste conflito foi contraditório:

— Por um lado, foi exemplar a reacção da sociedade espanhola, suas organizações sociais, de solidariedade, partidos políticos, sindicatos, instituições locais e regionais, personalidades do mundo do cinema, da cultura, da arte, da música, da informação, etc. que apoiaram Aminetu Haidar nos seus 32 dias de greve, deslocaram-se a Lanzarote e impulsionaram mobilizações de todo tipo em toda a geografia espanhola.

— Por outro lado, foi lamentável o papel jogado pelo Governo, ao serviço da estratégia marroquina, colaborando na expulsão de Marrocos, oferecendo fórmulas como a nacionalidade ou o estatuto de refugiada política que condenavam Aminetu a nunca mais regressar a El Aaiun, permitindo que os ministros marroquinos lançassem ameaças contra a sociedade espanhola no nosso próprio território e evitando a todo o momento condenar a violação dos Direitos Humanos pelo Governo de Marrocos.

O Governo de França, por seu lado, justificou e defendeu as acções de Marrocos sem se importar nada com a violação dos Direitos Humanos ou o incumprimento dos acordos da ONU. Além disso, reiterou a sua posição de defesa da autonomia marroquina do Sahara Ocidental vulnerando os acordos internacionais e os direitos do Povo Saharaui.

O regresso de Aminetu a sua casa afirma o triunfo da dignidade, da tenacidade desta mulher sobre a manipulação, a violência e a intolerância do regime marroquino.

Como foi possível este triunfo? Como é que um a mulher só e indefesa conseguiu vergar uma ditadura tão feroz como a que representa o Governo de Marrocos e o seu Rei?

Há que considerar algumas questões:

1) Tanto o Governo de Marrocos como o de Espanha não calcularam a integridade e a capacidade de luta de Aminetu Haidar, uma mulher de forte personalidade, de sólidos princípios, forjada na adversidade, que sofreu no cárcere todo o tipo de torturas e humilhações, mas que jamais se dobrou à tirania que representa o Rei de Marrocos.

2) Aminetu Haidar é uma militante, activista pelo respeito aos Direitos Humanos do seu povo, lutadora pelo Direito de Autodeterminação do Povo Saharaui, que decidiu consagrar a sua vida à luta por esses princípios, que ama profundamente o seu povo e que sofre na sua própria carne o opróbrio, as humilhações e os abusos que o Governo de Marrocos realiza no Sahara Ocidental. Arriscar a sua vida com a greve de fome é um acto de valentia e de determinação ante a intransigência marroquina e a permissividade da ONU e da União Europeia.

3) Os 34 anos de luta do povo saharaui, da RASD, da Frente Polisario e do Movimento de Solidariedade criaram um estado de opinião latente que se mobilizou com a greve de fome e que se manteve militantemente durante os 32 dias, com iniciativas, acções, mobilizações e declarações em todos os lugares e meios sociais, territoriais e institucionais. E essa onda de mobilização e solidariedade voltará, talvez ainda com maior força e vigor, caso Marrocos continue com a política de factos consumados.

4) A plataforma de apoio a Aminetu Haidar, que acompanhou os 32 dias de greve, jogou também um papel muito importante na mobilização da opinião pública e em levar mediaticamente o tema a todos os lugares do planeta.

O grupo de meios de comunicação e de jornalistas jogou um papel chave neste conflito e opôs-se às campanhas de intoxicação do Rei de Marrocos e seus Ministros.

5) A causa saharaui é a causa da justiça, da defesa dos interesses dum povo indefeso, que sofre desde há 34 anos a repressão marroquina. É a causa dos fracos e desapossados, da defesa dos Direitos Humanos, da legalidade internacional e da aspiração deste povo a viver livremente num território que lhe pertence e que lhe foi arrebatado pela violência. Estes princípios éticos conseguiram convencer a opinião pública mundial ao identificar-se com Aminetu Haidar e com a sua greve de fome.

Este é o triunfo da ética e da razão sobre a hipocrisia e a mentira.

6) Também a imagem de uma mulher, débil e indefesa, vítima da brutalidade do Estado Marroquino, que através de métodos pacíficos como a greve de fome, reivindica o seu direito a regressar a sua casa e a juntar-se aos seus filhos teve um enorme impacte na consciência social, na opinião pública, contribuindo decisivamente para a sua mobilização. Tudo isto, juntamente com a dimensão internacional de Aminetu, reiteradamente galardoada pela sua defesa dos Direitos Humanos no Sahara Ocidental.

Transcorrido mais de um mês desde o termo da greve de fome e o regresso de Aminetu a El Aaiun o Governo de Marrocos continua a persistir na sua falhada estratégia:

— A policia sitiou a casa de Aminetu, impedindo a sua liberdade de movimento e o acesso dos saharauis para a saudarem.

— Continua o comportamento brutal do Governo de Marrocos: repressão, espancamentos, detenções e torturas à população civil saharaui.

— Impede a celebração do Referendo de Autodeterminação e continua a querer impor o seu requentado estatuto de autonomia para a região.

— Confisca os documentos de viagem e os passaportes aos activistas de Direitos Humanos, assim como nega a renovação dos mesmos, procurando impedir a sua saída do território.

— Ameaça aplicar com dureza máxima a legislação militar aos 7 encarcerados de Casablanca (nota: Idagja Lachgare, a única mulher do grupo, foi posta em liberdade condicional dado o seu precário estado de saúde físico e mental).

— Impede o acesso ao território a observadores internacionais e organizações defensoras dos Direitos Humanos.

— Trata de conseguir contrapartidas políticas e económicas com a União Europeia e com os Estados Unidos.

Ante tudo isto, e depois de 34 anos, há que continuar a afirmar que a única solução estável, duradoura e pacífica passa por duas questões absolutamente inegociáveis e irrenunciáveis:

1) O exercício pelo Povo Saharaui do Referendo de Autodeterminação, livre e democrático, que possibilite a sua opção a conseguir um Estado livre e independente.

2) O fim imediato da violação dos Direitos Humanos por parte do Governo de Marrocos no Sahara Ocidental com a liberdade para todos os presos políticos saharauis e o esclarecimento sobre o paradeiro dos desaparecidos, assim como o termo da espoliação das riquezas naturais do território.

Qualquer outra fórmula que se afaste destas posições situa-se à margem da legalidade internacional e estará condenada ao fracasso.

O triunfo de Aminetu Haidar é o triunfo de todo o povo saharaui, é a homenagem aos mártires que desapareceram lutando por estas ideias, é a convicção de que com militantes da talha moral de Aminetu e dos activistas que estão nos cárceres de Marrocos, o Povo Saharaui, a Frente Polisario, alcançará a sua independência e a sua liberdade, mais cedo do que tarde. O regresso de Aminetu Haidar a El Aaiun trouxe a esperança a todo o povo saharaui e reforçou a convicção de que existe um antes e depois desta vitória extraordinária de justiça, ética e direitos inalienáveis do povo saharaui.

(*) Carmelo Ramírez Marrero

Presidente da Federación Estatal de Instituciones Solidarias con el Sáhara (FEDISSAH)

Artigo traduzido e divulgado pela

Associação de Amizade Portugal – Sahara Ocidental

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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