Punição aos torturadores é necessidade democrática

Antônio Augusto

Os ministros Tarso Genro, da Justiça, e Paulo de Tarso Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, defenderam em 31 de julho, durante audiência pública no Ministério da Justiça a punição aos torturadores da ditadura. No dia seguinte, o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, se contrapôs à iniciativa. Ato no Clube Militar, em 7 de agosto, com a presença de notórios torturadores como o coronel Brilhante Ustra, atacou os ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi. Está no centro do debate nacional a punição aos torturadores, medida ainda não efetuada da normalização democrática.


A tortura da ditadura estabelecida em 1964 é a página mais trágica da História brasileira. Ocorreram mais de 400 assassinatos políticos cometidos pela repressão, 128 desaparecidos políticos. Calcula-se em 20 mil os brasileiros torturados por motivos políticos.


Os casos citados abaixo são apenas exemplos da rotina da tortura e da repressão, não relatam nem de longe o conjunto das ocorrências.


Já nos dias iniciais do golpe, sucederam-se as torturas e assassinatos, como a do dirigente sindical dos estivadores Astrogildo Pascoal Vianna, cujo corpo deu entrada no IML carioca em 8 de abril de 1964. A 17 de abril, o ferroviário José de Souza foi “suicidado” no DOPS (a polícia política) do Rio de Janeiro. Em 15 de agosto, o ex-pracinha da FEB Dilermano Mello do Nascimento também foi “suicidado” no intervalo dos interrogatórios de um Inquérito Policial-Militar (IPM), realizado na própria sede do Ministério da Justiça, igualmente no Rio de Janeiro.


Nos anos seguintes a repressão se intensificou a níveis inimagináveis.


O sargento Manoel Raimundo Soares, preso durante 152 dias em Porto Alegre, torturado diariamente, em agosto de 1966, teve seu corpo encontrado em estado de putrefação, com as mãos e os pés amarrados às costas, no Rio Jacuí. À época, o então ministro do Superior Tribunal Militar, marechal Olímpio Mourão Filho (o iniciador do golpe ao pôr em marcha a tropa em Juiz de Fora), assim se manifestou: “Trata-se de um crime terrível e de aspecto medieval, para cujos autores o Código penal exige rigorosa punição”. Apesar disso, a impunidade foi completa, como aconteceu ao longo de toda a ditadura.


Atrocidades intermináveis


No reinado do terror, a morte e a tortura se tornaram regra. Vieram os casos do secundarista Edson Luiz de Lima Souto, assassinado no restaurante do Calabouço, em 1967. Do secretário do Arcebispo D. Helder Câmara, em 1969, padre Antônio Henrique Pereira Neto. Seu corpo foi encontrado em matagal existente na cidade universitária de Recife, pendurado de cabeça para baixo, em uma árvore, com marcas evidentes de tortura: espancamento, queimaduras de cigarro, cortes profundos por todo o corpo, castração, e dois ferimentos produzidos por arma de fogo.


A lista só se multiplicaria. Em 1971, Stuart Angel foi assassinado, depois de massacrado, com o cano de um carro na boca, do qual escapava gás ao ser acelerado. O centro de torturas, nas dependências da Aeronáutica, tinha o macabro nome de “Paraíso”. O chefe das torturas, o brigadeiro Burnier, um louco que quase explodiu o gasômetro do Rio de Janeiro, o que acarretaria dezenas de milhares de mortes, sendo impedido graças à coragem do capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o capitão Sérgio Macaco, comandante do Parasar (tropa de elite da Aeronáutica destinada a salvamentos). Burnier queria usar o Parasar no atentado terrorista. O capitão Sérgio foi excluído da Aeronáutica por causa do episódio. Anistiado em 1979, não assinariam sua promoção a brigadeiro a que tinha direito até praticamente a sua morte, de câncer terminal em 1994. Tal o revanchismo existente em certos meios militares.


Stuart integra a lista de desaparecidos. Sua mãe, a estilista de moda Zuzu Angel, por denunciar o crime, morreu em 1976 num acidente bastante estranho. Diante das ameaças constantes que sofria, antecipou: ”Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”.


Dirigentes comunistas como David Capistrano da Costa (ex-deputado e herói da Guerra Civil Espanhola e da Resistência Francesa), Orlando Bonfim e José Montenegro de Lima, também estão entre os desaparecidos. Há indicações que estiveram em centros clandestinos da repressão e tiveram seus corpos esquartejados. Segundo denúncias, Bonfim e Montenegro acabaram de ser assassinados com injeções utilizadas para sacrificar cavalos.


Mário Alves, um dirigente e intelectual comunista, morreu empalado por um cassetete dentado de aço.


O ex-deputado trabalhista Rubens Paiva também é desaparecido, provavelmente esquartejado.


Outros presos, como Eduardo Leite (o Bacuri) e o ex-sargento João Lucas Alves, sofreram meses de torturas diárias, tiveram os olhos vazados, antes de se libertarem dos sofrimentos após serem assassinados.


Crianças eram torturadas na frente de pais, mulheres estupradas diante de companheiros.


A lista de atrocidades é interminável.


Por que é importante relembrá-la?


Na medida em que a tragédia é conhecida, criam-se condições para que não se repita.


Para demonstrar que tanta violência, a bestialidade inominável, foi política de Estado, a política da ditadura, a tortura: o pau-de-arara, os choques elétricos, afogamentos, a cadeira do dragão, a coroa de Cristo (instrumento de tortura que esmagava o crânio e perfurava o cérebro), andar sobre latas descalço, a geladeira, e ainda diversos outros modos de suplício.


O símbolo da ditadura, a ocupar o lugar dos símbolos nacionais, foi o onipresente pau-de-arara.


Direito à memória e à verdade


O ministro Tarso Genro sustenta que a tortura é um crime contra a Humanidade, imprescritível.


"Não pode haver reconciliação em torno de qualquer idéia de que não houve tortura no Brasil, de que Vladimir Herzog cometeu suicídio, de que Rubens Paiva nunca foi preso", afirma o ministro Paulo Vannuchi.


O titular da pasta dos Direitos Humanos toca duas outras questões fundamentais, as ações judiciais para declarar o reconhecimento da prática de tortura por conhecidos torturadores, e a abertura dos arquivos do terror da ditadura: “Não nos peçam para fazer reconciliação sem o direito à memória e à verdade. O tema terá que ser resolvido em algum momento. As ações estão em andamento, o Ministério Público Federal está propondo uma ação contra os comandantes dos centros de tortura. O que não se pode é querer resolver por interdição do debate um tema que o Judiciário levará adiante, as famílias continuarão trabalhando, assim como as entidades de direitos humanos”.


No dia 12 de agosto, ocorre nova audiência no Tribunal de Justiça de São Paulo, sobre a ação referente às torturas e assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Sua ex-companheira, a historiadora Angela Mendes de Almeida, e a irmã do jornalista, Regina Merlino, buscam o reconhecimento pela Justiça brasileira de que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista de setembro de 1970 a janeiro de 1974, é responsável pela morte de Merlino.


Durante a passagem de Brilhante Ustra pelo DOI-Codi paulista, situado na Rua Tutóia, ocorreram cerca de 40 assassinatos. Muitos dos mortos estão entre os desaparecidos. O centro de torturas por ele comandado promovia com freqüência seqüestros e ocultação de cadáveres. No seu período de comando, estima-se em mais de 500 o número de torturados na sucursal do inferno da Rua Tutóia.


Atuação do Ministério Público


O Ministério Público Federal em São Paulo promoveu, em maio de 2007, o Debate Sul-Americano sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes contra os Direitos Humanos. O encontro estabeleceu a histórica Carta de São Paulo, na qual se declara: “o crime de tortura é crime contra a Humanidade; o Estado Democrático de Direito, inaugurado no Brasil com a Constituição de 1988, é incompatível, com crimes contra a Humanidade; a Lei de Anistia não anistia crimes de torturadores”.


Ao contrário do Chile, Argentina, Uruguai e Peru, que puniram torturadores, o Brasil está atrasadíssimo na questão: os torturadores gozam aqui da mais completa impunidade. Na Argentina e no Uruguai ex-ditadores foram parar na prisão.


Mostra-se assim descabida a declaração do ministro Nelson Jobim de que os torturadores são abrangidos pela Lei de Anistia. Como declara o ministro Tarso Genro, “a anistia não foi um ponto de chegada, mas um ponto de partida do processo de reconciliação nacional”.


Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, “anistia não é amnésia. A tortura é crime de lesa-humanidade, imprescritível. A melhor forma de impedir barbáries futuras é não esquecer que no Brasil houve tortura”.


O que não se pode é aceitar a apologia da tortura, como fez o deputado Jair Bolsonaro, no ato do Clube Militar: “O grande erro foi ter torturado e não ter matado”. A liderança do PC do B ingressa no Conselho de Ética da Câmara com representação contra ele. Após os devidos trâmites, se garantida a ética, Bolsonaro merece a perda do mandato.


Durante o mesmo ato pode também se avaliar o saudosismo da tortura e da ditadura no discurso do advogado Antônio José Ribas Paiva, apresentado como “consultor jurídico da União Democrática Ruralista (UDR)”: “Vivemos sob a ditadura do crime organizado”. Acrescentou que “o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, o ministro Paulo Vannuchi, e o assessor especial da presidência, Marco Aurélio Garcia, deveriam ser investigados por apoio ao narcotráfico”.


O presidente do Clube Militar, general Gilberto Figueiredo, chamou de “imoral” a iniciativa dos ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi. E que os ministros deveriam se preocupar “com a gravíssima suspeita de envolvimento, de alguns deles, com as FARC”.


Declarações desse teor não são apenas folclóricas, como se poderia pensar dado seu disparate. Presente ao ato estavam o atual comandante Militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira, e os ex-ministros do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, de Sarney, e Zenildo Zoroastro de Lucena, de Collor.


Ao ato se aplica o mesmo que o ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, do governo Fernando Henrique, escreveu na Folha de S. Paulo, de outro ato, realizado em 2006: ”O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi, órgão de repressão do exército, durante os piores anos da ditadura militar, de 1971 a 1974, acaba de ser homenageado com um banquete por mais de 400 pessoas, das quais 200 oficiais de alta patente da reserva - entre eles, 70 generais. O fato é gravíssimo e alarmante”.


Prosseguia o ex-ministro: “Causou-me surpresa ter notícia de que algumas pessoas que me pareciam dissociadas dos métodos de tortura lá estavam no regabofe, a homenagear e a solidarizar-se com o herói da tortura, coronel Ustra.” E concluía: “ele,na realidade, emporcalhou com o sangue de suas vítimas a farda que devera honrar”.


Ivan Seixas era um rapaz de 16 anos, quando foi torturado junto com o pai, Joaquim Alencar de Seixas, no DOI-Codi comandado pelo coronel Brilhante Ustra. Ele presenciou o assassinato do pai, na tortura, em 16/4/1971. Hoje é ativista das entidades de Direitos Humanos. Para ele, “o julgamento dos torturadores e assassinos é simplesmente uma questão de Justiça. O Estado de Direito democrático deve deixar sua marca na História do país e se impor ao regime de medo e terror que infelicitou o Brasil por longos 21 anos. O país merece”.

Antônio Augusto é jornalista

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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