Uma história da raça humana e seus dons

Uma história da raça humana e seus dons em

Vida aberta - Tratado Poético-Filosófico, de W. J. Solha

  

Por Alexandra Vieira de Almeida

 

Em Vida aberta - Tratado Poético-Filosófico, novo livro de poesia de W. J. Solha (Penalux, 2019), temos uma "metonimização" do mundo no espaço pequeno do livro.  Uma raridade de estruturação linguística que se encaminha do todo para a parte. Do múltiplo ao mínimo. Um único poema extenso e rítmico, com rimas fortes e originais, retrata a história da humanidade e seus dons a partir dos vários saberes criados pelo ser que batiza e sacraliza uma genealogia das espécies artísticas e filosóficas ao longo dos tempos, tempos esses que são rasurados e embaralhados pela pena acurada de W. J. Solha. Não poderia faltar aqui novamente, como em obras anteriores do escritor, a junção entre o coloquial/popular e o erudito, o antigo e o contemporâneo nos matizes que encabeçam os versos do autor por ora aqui apresentado.

A desconstrução dos tempos dá um tom de imprecisão à pena precisa de Solha, o que seria anterior é um reflexo do presente, assim como o que é presente não existiria sem o polo da tradição que causa repercussões a posteriori. Assim, os tempos se movem numa areia movediça e podem ser desdobrados e ressignificados pelas mãos do artista no trapézio inconstante das eras: "...máscara /de ouro, de Tutankâmon//é... posterior... ao... City Lights - branco e preto - de Chaplin,". Os tempos são subvertidos e invertidos pelas mãos magistrais do poeta Solha, que faz parte de uma longa tradição de poetas-filósofos, como foram os pré-socráticos, na antiguidade, e Nietzsche, na modernidade. A apresentação do livro percorre um veio incomum, onde comentários de vários autores importantes no cenário literário dão suas opiniões sobre esta obra excepcional de Solha.

Além dos comentários em prosa, temos versos para o livro de Solha feitos pelo poeta João Carlos Taveira, que fecha seu poema com chave-de-ouro: "Vamos, me diga, enquanto fecho o compêndio,/em que você, à maneira de Noé, colocou todos/os homens, bichos e delírios juntos e misturados/- rumo à nossa travessa travessia de existir". Numa travessia rosiana, Solha, como esse grande escritor mineiro, vai misturando num mix cultural fabuloso, os dialetos de várias regiões, sejam falares estrangeiros, como o italiano, o francês, o inglês, o espanhol e o latim, ao mesmo tempo, em que utiliza o linguajar coloquial de uma determinada parcela do Brasil, reconstruindo os Brasis como um centro cosmopolita, onde se reúnem todos os povos. Aqui, temos os diálogos com as artes, as diferentes linguagens e línguas, num espaço multicultural, em que trafegam os âmbitos da música, do cinema, da arquitetura, da escultura, da literatura, da pintura etc num pout-pourri linguístico, em que Solha nos revela toda sua originalidade.

Um trabalho de experimentação é enaltecido, com o aspecto da relação fonte-influência, onde os intercâmbios entre os artistas se tornam possíveis. Nesse novo livro de Solha, estamos diante de um poema teórico-analítico, onde a filosofia e o pensamento reflexivo tomam o seu devido lugar na história da poesia. Poesia e Filosofia são irmanadas num mesmo abraço de urdidura linguística, na qual espaços subjetivos e objetivos se conjugam. Os anacronismos comparecem entre as épocas, subvertendo o Zeitgeist, ou seja, os espíritos das épocas, em que temos a mistura das eras, as analogias possíveis e impossíveis em planos distintos de temporalidades. As obras-primas das artes são enaltecidas e reconfiguradas, numa parodização/elevação da tradição que nos antecedeu e que ainda está presente no contemporâneo. Ou seja, há uma negação da arte, pela antiarte, desconstrutora e demolidora do que é eterno nas artes, levando a um estado de evasão e transitoriedade.

Há também o criticismo com relação ao divino, ao sagrado, naquilo que não pode ser tocado contra a moral vigente das eras.  Assim, Solha faz a junção inusitada entre arte e crítica social: "...se as aves nós abatemos/pomos nos céus...aviões." Solha é um poliglota dos saberes, das místicas, das filosofias e das artes. Ele faz um apanhado geral das religiões também, reunindo os vários sagrados, como podemos ver no "Rigveda, Alcorão, Ilíada, Bíblia". Faz um verdadeiro compêndio das tradições religiosas. No livro de Solha, temos várias informações sendo transmitidas no seu teor de estranhamento poético, onde encontramos um globo dentro das páginas em branco. Encontramos analogias, um virtuosismo barroco da expressão, querendo galgar alturas inconquistáveis. Também temos o humor em meio à seriedade, quando retoma várias vezes o mote schopenhauriano: "E a Vontade é...meio maluca:/pra Leibniz e Newton mostrarem o que tinham na cabeça/tiveram de usar peruca!/Severino Dias de Oliveira teve de ser albino/e de se chamar Sivuca". No plano da erudição, com nomes importantes na nossa história, encontramos o linguajar popular, utilizando-se de palavras como "pra" e "pro", mais coloquiais.

O estrangeiro e o nacional também têm suas analogias, revelando-se, assim, suas semelhanças e diferenças neste caldeirão atmosférico do mundo: "coisa...pra umbanda,/como se dá se se apõe ao nome Carmem - como a de Bizet/o sobrenome Miranda." Assim, temos o jogo de espelhos, o espelho como metáfora do que é análogo, o simulacro e sua diferença em meio à repetição. Temos também a movência das letras no alfabeto mágico do Gutemberg/Solha, que recria uma impressão, uma escrita gráfica no cerne da literatura. Solha vai criando as palavras e dando sentido e coesão ao texto com seus diferentes significados: "Aí, /pode-se pôr b/o/i/n/g/s...e/m/p/o/r/t/a- a/v/i/õ/e/s,//V/i/e/i/r/a a e/s/c/r/e/v/e/r//O/s/S/e/r/t/õ/e/s,". Solha não vê novidade nas criações humanas que são retomadas e recriadas como se em vinho velho se colocassem novas garrafas, reconfigurando o passado. Só que, paradoxalmente, essa obra monumental de Solha é de uma intensa originalidade e genialidade.

Arte é techné, como no conceito grego, em que toda criação seja nas artes seja em outras áreas era considerada como artefato artístico. Vejamos Solha: "o tablet segue o caminho...do pergaminho" ou ainda "e a Apple -pra ser breve - tem,/na marca,/a mesma mordida na maçã de Eva/e Branca de Neve)". A tecnologia, apontando para seu viés artístico, também ganha sua dimensão criativa, poética. Tudo tem a mesma programação, há um gene artístico que permeia todos os campos dos saberes. Solha tem um olhar cinematográfico sobre as coisas, iluminando com sua câmara inventiva tudo que o rodeia e o que o antecedeu. Com intensas fotografias e flashes do real, Solha conduz o leitor por um itinerário mágico ao longo da história das civilizações.

A expressão "vida aberta" é a exposição de tudo pela parte/arte da escrita, reunindo num só escopo todos os saberes programados tanto no computador, como na memória lúcida e clara de Solha. Como nos rios que correm em vários países, do exterior, ao interior do Brasil, o rio é travessia, é arte caudalosa que propaga tudo no seu seio - cio. Em Vida aberta, temos a máquina do mundo sendo desvendada e descoberta, com suas engrenagens e dissabores. Outros significados são descortinados pela totalidade do mundo, desconstruindo as religiões estabelecidas que apresentam um Deus "tribal". Como em Blake, o céu e o inferno se reúnem, destruindo os ícones sagrados da raça humana. Além disso, Solha utiliza citações, como no excelente estilo machadiano, deslocando e subvertendo seus sentidos e dando ensejo a novos signos: "Navegar é preciso/mas/...impreciso." Como na arca de Noé, símbolo da totalidade do mundo, temos todo um universo ali na parte.

Portanto, as páginas em branco recepcionam o multilinguismo fantástico de Solha que nos dá um aprendizado da vida toda em seus detalhes e ao mesmo tempo universalidades. Solha joga com as palavras, dando-lhe ressignificações além do dicionário, não em seu estado neutro, mas diversificado. Solha critica figuras importantes, dessacralizando o mito. Mesmo revelando seu desencanto frente à máquina do mundo, Solha nos propõe o hálito da esperança em meio às guerras e hecatombes, traz as rosas em meio às balas. Assim, seu enredo de miscelânea vai do samba ao bíblico, da literatura ao histórico, impondo uma voz autoral cheia de energia e invenção. No meio da guerra, do campo de concentração, é preciso se iluminar do belo que reside no humano. O ser é traiçoeiro, o mal do homem é mostrado. A guerra é a escuridão, o fim do futuro, a falta de perspectiva. Resta ao poeta fazer a circularidade de seu texto grandioso, que retoma o início do extenso poema, reforçando a sua voz em meio ao caos do mundo.

 

 

"Vida aberta: tratado poético-filosófico". Autor: W. J. Solha. Editora Penalux, 2019. 106 págs., R$ 37,00.

Disponível em:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/vida-aberta

E-mail: [email protected]

 

 

A resenhista

Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: "40 poemas" e "Painel". "Oferta" é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro "Dormindo no Verbo", pela Editora Penalux.

 

Contato: [email protected]

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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