O Todo Poderoso

O Todo Poderoso


Ele já apareceu em muitos filmes, está presente em milhares de ilustrações, mas ainda existem algumas divergências de como Ele é realmente. A imagem mais conhecida é daquele senhor já idoso, do tipo caucasiano,com longas barbas brancas, sempre sentado num trono, fazendo um tipo mais para emburrado do que para simpático.


Para facilitar a identificação, os mais antigos podem pensar na figura de Charlton Heston (1923/2008) em Os 10 Mandamentos, de Cecil B de Mille, de 1956. No filme, Charlton Heston (hoje muito mais lembrado pelo seu reacionarismo e como presidente do National Rifle Association) faz o papel de um porta-voz do Todo Poderoso, o profeta Moisés.


Lembrar Morgan Freeman como o Todo Poderoso não vale, porque foi apenas uma brincadeira de Hollywood.


Já com a imagem na cabeça, não devemos esquecer que atribuem a Ele crueldades imensas, como mandar destruir cidades inteiras pelo fogo e ordenar a um pai o sacrifício de seu filho, embora a favor nesse último caso, dizem que na hora final ele suspendeu o ato criminoso. Em outras versões, o mesmo personagem é apresentado como um poço de bondade, capaz de perdoar as maiores ofensas e de sacrificar o próprio filho em nome da felicidade dos outros.


Como Ele começou sua história em épocas muito remotas, escapou de ser classificado pela psicologia como um ciclotímico,capaz de passar de momentos de grande euforia - como, por exemplo, quando realizou sua obra prima, o universo - para outros de grande depressão, como quando resolveu inundar o mundo inteiro com uma grande enchente, o famoso Dilúvio.


A história dessa grande figura, que para efeitos práticos vamos chamar de Todo Poderoso, começou há milhares de anos, mas só passou a figurar na história da humanidade quando um grupo de escribas, que vivia nas proximidades do Mediterrâneo, saiu em busca de explicações para o mundo da época.


Como a ciência ainda engatinhava na ocasião, principalmente nas áreas da química e da biologia, estes escribas, pertencentes a tribos semitas, decidiram contar a história de uma maneira um pouco fantasiosa, até porque seus contemporâneos não eram muito dados à valorização da ciência.


Para dar mais credibilidade aos fatos que eles iriam narrar, trataram de se colocarem como herdeiros do Todo Poderoso, ou pelo menos pertencentes a um povo que teria sido eleito por Ele. Com isso, além de contar uma bela história, eles passariam a ter um elemento de distinção entre os outros povos que viviam nas regiões próximas.


Assim, sem grandes pretensões de racionalidade, começaram a dizer que o Todo Poderoso havia criado o universo, com apenas uma frase em latim Fiat Lux (mal sabiam eles, que a expressão viraria uma marca de caixa de fósforos no Brasil centenas de anos depois);que havia enfrentado e derrotado uma rebelião de um grupo de anjos chefiados por Lúcifer e que, cansado da pasmaceira que via num dos seus planetas, a Terra, decidiu criar um protótipo, um robô capaz de pensar e falar e que seria seu representante local. Com uma grande falta de inspiração, chamou o protótipo feito de barro de Adão. Mais adiante daria a ele uma companheira, chamada Eva, feita com uma costela do Adão. Mesmo perdendo uma parte da sua anatomia, Adão parece ter gostado da idéia.


Nunca explicaram porque o Todo Poderoso,com um universo inteiro a seu dispor, se interessou tanto pela Terra.  Após um silêncio de milhares de anos, o Todo Poderoso, depois que criou Adão e Eva, passou a dedicar tempo integral aos assuntos terrenos.  Logo, por uma razão mal explicada pelos que contaram a história, Ele se irritou com alguns hábitos das suas duas criaturas e as expulsou do lugar em que viviam.


A partir daí, os escribas semitasnão pararam mais de misturar os feitos do seu  magnífico personagem, com outras figuras, algumas reais e outras imaginárias do seu próprio povo, até que em determinado momento, o Todo Poderoso estava completamente inserido na vida do dia-a-dia dessas tribos que viviam na região onde hoje está a Palestina.


Quando o Império Romano deu de mão na região, criou-se uma cisão entre os que haviam contado até então a história do Todo Poderoso e seu povo eleito, reunida num livro que chamaram depois de o Velho Testamento e um grupo novo, que bem mais adiante - quase 300 anos depois desses eventos - começoua contar uma outra história que levou o nome de Novo Testamento.
Mas, vamos por partes. Como incomodava muito a presença dos romanos na região e como havia uma promessa explicita na história do Velho Testamento de que o Todo Poderoso voltaria a Terra para ajudar o seu povo, uma parte da população achava que tinha chegado esta hora. Outra, os Zelotes principalmente, pensaram que não era o momento de apelar para Todo Poderoso, que estava ausente há muitos séculos e partiram no pau para cima dos romanos. Como era de se esperar, foram derrotados.


A derrota favoreceu aqueles grupos que achavam que entrar na briga com os romanos não resolvia nada e que o melhor era esperar que o Todo Poderoso cumprisse suas promessas e ajudasse seu povo.


A história do que aconteceu foi contada inicialmente de forma oral e registrada em documentos muitos séculos após. É uma história assombrosa, na medida em que mostra os ardis que o Todo Poderoso usou para ajudar seu povo. Embora pudesse mandar um raio na cabeça do Imperador Romano (diga-se de passagem, já tinha feito pior mandando destruir Sodoma e Gomorra por muito menos) ou mandado uma inundação acabar com o Império Romano, (como já fizera na época de Noé), Ele armou um intrincado plano, que muitos historiadores hoje custam a acreditar que tenha sido possível.


Vamos a uma síntese do plano, segundo a versão dos chamados evangelhos, escritos muito depois:


1 ) O Todo Poderoso resolveu mandar seu filho à  Terra, para o que especificamente não se sabe. Genericamente, seria para salvar a humanidade, o que no primeiro momento poderia parecer expulsar os romanos que incomodavam o seu povo,

2) Como o  Todo Poderoso não era exatamente uma unidade, mas sim uma trindade, ele decidiu que uma das pontas do triângulo, identificado depois por uma pomba, iria engravidar uma senhora, mulher de um carpinteiro na Galiléia, que certamente pelo moralismo dos evangelistas, era virgem.  Mandou então alguém da sua guarda de segurança, um anjo chamado Gabriel para anunciar o evento para a futura mãe.

4) Realmente, algum tempo depois, nasceu o filho do Todo Poderoso, que vamos chamar apenas de o Filho, com letra maiúscula no início. Durante 30 anos, o Filho ficou incógnito nas terras dos semitas, até que de repente entrou em cena, fazendo um milagre atrás do outro, desde a banal transformação de água em vinho, até o mais difícil de todos, ressuscitar um cara morto há 3 dias, o Lázaro. Com tudo isso, chamou a atenção dos sacerdotes locais, que implicaram com a sua pretensão de se intitular o Filho do Todo Poderoso.

5) Preso pelos romanos, o chefão da época,Pôncio Pilatos,não o levou muito sério. Imaginou que seria mais um dos místicos que surgiam aos montes na região. Como ele já havia dito que seu reino não era da Terra, mas do Céu, o representante de Roma achou que não valia à pena condená-lo e propôs até a troca por um ladrão. Como a turba não aceitou, mandou seguir adiante o ritual que os romanos usavam com seus rebeldes.

6) Crucificado e morto, segundo disseram depois os evangelistas, Ele ressuscitou dos mortos e depois subiu aos céus. Na prática, o Filho não resolveu o problema que separava os romanos dos nativos, mas, ainda segundo seus biógrafos, deixou plantada uma semente que iria prosperar rapidamente: uma nova religião, não muito diferente das que já existiam, mas que, investindo nas camadas mais pobres da população só faria crescer.
Ressalte-se a bem da verdade histórica que esse investimento não significava nada revolucionário. O prêmio não seria nunca na terra, mas depois da morte, no céu. Como não havia testemunhas posteriores que confirmassem que o prêmio teria sido pago, ou não, a nova religião logo conquistou milhões de adeptos.


 A linha dura dos romanos perseguiu os adeptos da nova religião, até que alguém se deu conta que ela não ameaçava o império e podia ser usada a favor da elite dirigente do mundo romano. Em 325, no Concílio de Nicéia, o imperador Constantino tornou a nova religião oficial e a única aceita pelo Estado.


Esse Constantino não era, porém, uma flor que se cheirasse. Algumas de suas proezas foram: mandou matar o filho Crispus, o marido de sua irmã, o sobrinho e sufocou a mulher, Fausta, num banho super aquecido. Ou seja, a nova religião, agora oficial do império romano, começava sob os auspícios de um assassino.


Precisamente 1604 anos depois, em 1929, após superar cismas e heresias, a religião nascida lá na Palestina, ganhava um novo status. O ditador fascista Benito Mussolini deu um pedaço de Roma para que, aquela velha religião das tribos semitas, além de catedrais e igrejas espalhadas pelo mundo, tivesse também um Estado Nacional. Pelo tratado de Latrão, em troca do apoio aos fascistas, surgia o Vaticano, um Estado sem povo porque ninguém nasceu até hoje lá, mas com uma bandeira, um exército de brinquedo - a Guarda Suíça - muito dinheiro e o reconhecimento da maioria dos países.


Esta é a história, com alguns adendos e comentários do autor, que ouvi na minha infância e que, salvo algumas inevitáveis confusões que possam ter sido cometidas nesse texto, continua sendo contada para nossos filhos e netos.
Se non é vero ..é bene trovato, ou seja, se não é verdade, foi muito bem contada, a história.


Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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