Lênin versus Kautsky: a questão da democracia

Os textos de Lênin partem do princípio, exposto claramente por Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado e em, Do socialismo utópico ao socialismo científico, de que “o Estado não é mais do que uma máquina de opressão de uma classe por outra.” (LENIN, 1971, p. 70).

Desenvolve-se então que, o Estado tem sua gênese da manifestação do antagonismo inconciliável entre as classes. Na medida em que essas contradições se desenvolveram e se tornaram irremediáveis, o Estado surgiu como um “mediador”. Dessa maneira, o Estado aparece para Lênin como a institucionalização da dominação de uma classe sobre outra, quer dizer, trata-se de uma ordem criada para legalizar e consolidar a submissão de uma classe por outra.

Nossa época caracteriza-se, essencialmente, por ter simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade se divide, fundamentalmente, em duas grandes classes diretamente contraditórias, a burguesia e o proletariado. [2] Se o Estado é uma ordem institucionalizada que freia e camufla o verdadeiro antagonismo entre as classes, resulta disso, em principio, que ele é o órgão da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante. Dessa forma, o Estado moderno (Democracia – parlamentarista) legitima a exploração do trabalho assalariado pelo capital. Portanto, o Estado na era do capital, só pode está a serviço da classe burguesa.

Partindo dessa premissa, Lênin argumenta que: “A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não está preso por nenhuma lei” (1971, p. 23). Para Lênin não basta que o proletariado organizado derrube a burguesia do controle do Estado e passe a exercer esse controle. Lênin enfatiza que a tarefa fundamental do proletariado é destruir por meio da violência a máquina burguesa do Estado. [3] Foi nesse sentido que, Marx e Engels no último prefácio do Manifesto do partido Comunista, que assinaram juntos, em 1872, tendo em conta a experiência da Comuna de Paris, enfatizaram que: “Não basta que a classe operária se apodere da máquina do Estado existente para fazê-la servir a seus próprios fins” (2002, p. 26).

Em O Estado e a Revolução, Lênin esclarece que:

Essa “força especial de repressão” do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma “força especial de repressão” da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a “abolição do Estado como Estado”. É nisso que consiste o “ato” de posse dos meios de produção em nome da sociedade. (1983, p. 22 – 23).

Essa passagem evidencia que o Estado burguês se caracteriza pela exploração da maioria por uma minoria. A revolução operária instaura a “ditadura do proletariado”, e a situação se inverte. Fala-se da “abolição do Estado como Estado”, exatamente devido a essa radical transformação. Para Lênin, a ditadura do proletariado, não pode ser outra coisa, que a morte, o aniquilamento, do Estado Burguês por meio da ação violenta do proletariado.

Vejamos agora, o que kautsky pensa acerca da ditadura do proletariado:

Literalmente, a palavra ditadura significa supressão da democracia. Mas acontece que, tomada à letra, esta palavra significa igualmente poder pessoal de um só indivíduo que não está preso por nenhuma lei. Poder pessoal que difere do despotismo no fato de não ser entendido como uma instituição de Estado permanente, mas como uma medida extrema de transição.

A expressão “ditadura do proletariado”, por conseqüência não de um só indivíduo, mas de uma única classe, prova que Marx não pensava aqui em ditadura no sentido literal da palavra.

Fala aqui não da forma de governo, mas do estado de coisas, que deve necessariamente produzir-se por toda a parte onde o proletariado conquistou o poder político (1979, p.30).

Kautsky começa sua argumentação investigando a definição da palavra “ditadura”. Em primeiro lugar, considera ditadura como poder de um só indivíduo ou classe. Além disso, salienta que ditadura é sinônimo de supressão da democracia. Esse argumento encerra uma questão extremamente importante: Qual é a relação existente entre a ditadura do proletariado e a democracia? Como vimos, em sua argumentação Kautsky declarou que são totalmente incompatíveis.

Na mesma perspectiva de Kautsky, Ruy Fausto, em Trotsky, a democracia e o totalitarismo, defende que a democracia é essencial para a construção do socialismo:

Só a democracia no plano global é uma garantia de democracia dentro do partido dominante, de novo, só a democracia pode senão garantir em absoluto, pelo menos oferecer alguma garantia, de que o inevitável arrefecimento do ethos revolucionário não degenere em puro e simples ethos burocrático. (...)

Se não havia democracia, e a revolução aparecera como única saída, de certo modo talvez como mal menor, é essencial que o poder revolucionário institua a democracia, nas melhores condições possíveis. (2004, p. 124)

E em A polêmica sobre o poder bolchevista, Fausto acrescentou que:

A essência dessas teses [se referindo a Lênin e Trotsky] é a recusa da democracia em nome de bem curioso “mecanismo proletário” (...) Assim, o poder bolchevista não aparece como uma ditadura do proletariado, nem mesmo com uma ditadura revolucionária. Tem-se lá uma ditadura reacionária sui generis, que deve ser condenada pelos socialistas, tanto por razões morais como por razões políticas (2001, p. 58 – 66).

Nesse ínterim é importante questionar, o que Kautsky e Fausto entendem por democracia? Qual o seu conceito de democracia?

Em um comentário sobre a experiência da Comuna de Paris, Kautsky enfatizou que “A primeira tarefa do novo regime revolucionário foi a consulta pelo sufrágio universal. A eleição, realizada com a maior liberdade, deu em todos os distritos de Paris e com raras exceções, grande maioria a favor da Comuna” (1979, p.32). Em outra passagem, se referindo a Revolução proletária, Kautsky evidenciou que: “Um regime que conta com o apoio das massas só empregará a força para defender a democracia, e não para aniquilá-la. Ele cometeria verdadeiro suicídio se quisesse destruir seu fundamento mais seguro: o sufrágio universal, fonte profunda de poderosa autoridade moral” (1979, p. 32).

As passagens citadas deixaram claro que ambos os autores partem do conceito de “democracia pura”. [4] Citam o sufrágio universal e a liberdade eleitoral, ou seja, entendem que no Estado burguês, todos os cidadãos têm os mesmos diretos e estão em igualdade diante do Estado. Assim, defendem que esse princípio deve ser mantido após a tomada do poder pelo proletariado. Em outras palavras, a “democracia pura” a qual Kautsky e Ruy Fausto se referem, retira do Estado o seu caráter de classe. E o Estado aparece então, como uma instituição acima da sociedade, que preza pelo “interesse comum”.

Os argumentos utilizados por Kautsky e por Fausto são fortemente combatidos por Lênin, ao ressaltar que: “enquanto existirem classes distintas, não se poderá falar de “democracia pura”, mas só de democracia de classe (diga-se entre parêntesis, “democracia pura” é não só uma fórmula de ignorante que nada entende da luta de classes nem da natureza do Estado)” (1971, p. 35). Em contrapartida as concepções de Kautsky e Fausto, Lênin trabalha com o conceito de “democracia de classe”. Ou seja, considera a democracia também como manifestação do Estado. Lênin enfatiza que Kautsky:

Não nota a natureza de classe do aparelho de Estado. Na democracia burguesa, por mil estratagemas, - tanto mais engenhosos e eficazes quanto mais a democracia pura estiver desenvolvida, - os capitalistas afastam as massas da participação na gestão do país, da liberdade de reunião, de imprensa, (...) Mil barreiras se opõem à participação das massas trabalhadoras no parlamento burguês (que, numa democracia burguesa, nunca resolve as maiores questões; estas são obstruídas pela Bolsa, pelos bancos). (1971, p. 43).

Lênin considera o Estado uma “forma especial de repressão”, de uma classe sobre outra. Repressão da classe dominante sobre a dominada, portanto, segundo ele, quando se fala em democracia deve-se questionar-se “democracia de qual classe?”. Lênin fez severas críticas à democracia burguesa, a fim de demonstrar que a igualdade formal, posta pelo sufrágio universal e pelas eleições livres é apenas aparência. Portanto, essa igualdade aparente não se concretiza em igualdade na essência. Na sociedade dividida em classes, burgueses e proletários não tem a mesma liberdade e não gozam da mesma igualdade.

Ainda é preciso tecer mais algumas importantes observações sobre o que Lênin pensou acerca da relação entre “ditadura do proletariado” e “democracia”. Para ele: “A ditadura do proletariado, período de transição para o comunismo, instituirá pela primeira vez uma democracia para o povo” (1983, p. 110) E continua:

Ao mesmo tempo em que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres, a do povo e não apenas da gente rica, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas. Devemos reprimir-lhes a atividade para libertar a humanidade da escravidão assalariada, devemos quebrar a sua resistência pela força; ora, é claro que onde há esmagamento, onde há violência, não há liberdade, não há democracia. (1983, p. 109).

Essa passagem esclarece claramente qual o significado da “ditadura do proletariado” na concepção leninista. Na realidade a aparente democracia do Estado moderno burguês é em sua essência uma ditadura burguesa, que reprime violentamente a classe trabalhadora, significa então, democracia para a classe capitalista e ditadura para os trabalhadores. [5] Nesse sentido, a “ditadura do proletariado”, isto é, a classe trabalhadora enquanto classe dominante deve instituir uma democracia para os operários e uma ditadura para os capitalistas. Para Lênin pressuposto a uma verdadeira “democracia” está o aniquilamento do Estado, e pressuposto ao Estado está à luta de classes. Portanto, enquanto houver uma sociedade dividida em classes não poderá haver democracia plena. Dessa maneira, fica bem claro o caráter de classe que o Estado representa. Portanto, para Lênin:

Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação à produção, só então é que “o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade”. Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa e cuja regra não sofrerá exceção alguma. (1983, p. 110).

Para Lênin democracia significa, sobretudo, igualdade de todos os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios de produção. Enquanto não for eliminada toda e qualquer forma de exploração de uma classe por outra não se pode falar em igualdade, nem em democracia de fato. Por fim, Lênin argumenta que o Estado proletário, isto é, a “ditadura do proletariado” definha na medida em que o antagonismo entre as classes desaparece. Quando as classes já não existirem, o Estado se torna uma entidade supérflua. A “democracia” seria exercida diretamente, por meio dos sovietes, ou seja, pelos próprios operários em seus conselhos.

O advento da revolução russa em 1917, suscitou importantes debates em torno de questões fundamentais para a construção do socialismo. Nesse ínterim, a polêmica entre Lênin e Kautsky é fundamental. Os argumentos de Lênin são mais consistentes, e retomam as teses de Marx e Engels desenvolvidas em o Manifesto do partido comunista: “Já vimos que o primeiro passo da revolução dos trabalhadores é a ascensão do proletariado à situação de classe dominante, ou seja, a conquista da democracia” (2005, p. 27). Nessa passagem os autores deixam claro que a democracia só é conquistada com a revolução, com a tomada do poder pelo proletariado , que se eleva, a partir de então, a classe dominante.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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