Antonio Vieira e o V Império

Antonio Vieira e o V Império

Adelto Gonçalves (*)

I

Quatorze anos depois de ter sido lançada pela Edusp/Editora da Unicamp, Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira, tese de doutoramento de Alcir Pécora na área de Teoria Literária defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo em abril de 1990, ganha uma segunda edição, dentro das comemorações dos 400 anos do nascimento do jesuíta Antonio Vieira (1608-1697), o “imperador da língua portuguesa”, segundo a definição que lhe deu Fernando Pessoa (1888-1935).

Como reconhece o autor, o texto, escrito rigorosamente dentro dos padrões acadêmicos a que foi destinado originalmente, não recebeu à época da primeira edição qualquer alteração para torná-lo mais palatável ao leitor médio. Tampouco agora o autor se abalou em expiar o pecado anterior, como confessa, “deixando à luz do tempo a evidência transparente dos seus defeitos originais”. Mas, antes de defeitos, o que se reconhece desde logo são as marcas do tempo, como uma excessiva influência de O Espelho de Próspero – Cultura e Idéias nas Américas (São Paulo, Companhia das Letras, 1988), livro que, lançado à época no Brasil, grande recepção encontrou nos meios acadêmicos. Nada disso, porém, é condenável; pelo contrário.

Presenças também marcantes na tese são as idéias de Étienne Gilson (1884-1978), filósofa francesa tomista e historiadora da Filosofia, especialmente da Filosofia Medieval, muito popular na França, mas que, embora dona de vasta obra, pouco foi traduzida em português (só recentemente, em 2006, a Editora Martins Fontes, de São Paulo, publicou O Espírito da Filosofia Medieval, em tradução de Eduardo Brandão). Também as idéias do professor João Adolfo Hansen, professor titular de Literatura Brasileira da FFLCH/USP e autor de A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia no século XVII (Cotia-SP, Ateliê, 2004) e de numerosos estudos sobre o padre Vieira e o Barroco luso-brasileiro, são constantes nas argumentações de Pécora, que teve como seu orientador o professor João Luís Lafetá (1946-1996).

Autor do prefácio deste livro, o professor Hansen observa que Pécora mostra magnificamente que, “sendo theatrum sacrum, o sermão de Vieira é teatro doutrinariamente ortodoxo porque é teatro politicamente prático quando dramatiza os atos do entendimento, de memória e da vontade do Ditado”.

II

Em resumo, o estudo de Pécora se concentra nas alegorias sacramentais produzidas por Vieira, o maior pregador do seu tempo, que as aplica, sob a forma do modelo eucarístico, à máquina da natureza, ao discurso da história, à Igreja universal, à Companhia de Jesus, à monarquia nacional cristã e ao próprio Dom Sebastião (1554-1578), 16º rei de Portugal e o sétimo da dinastia de Avis, o chamado Encoberto.

Em conjunto, segundo Pécora, tais empregos montam um magnífico teatro discursivo, extensivo a tudo que há ou ocorre — desde os fatos das Escrituras e das vidas dos santos, profetas e patriarcas da Igreja até os signos da história de Portugal; da hierarquia das leis universais àquela das ordens políticas, em que o rei é cabeça e síntese do corpo místico do Estado — que demonstra ostensivamente a presença divina infinita nos limites e ocasiões da cena terrena finita. Os sermões de Vieira faziam parte, basicamente, do melhor arsenal da reforma católica, que cuidava de orquestrar imagens espetaculares -- grande arte, portanto -- contra a iconoclastia

É de lembrar que os sermões de Vieira sobreviveram até os nossos dias graças à ordem que lhe deu para revisá-los e publicá-los o geral dos jesuítas, Gian Paolo Oliva , um dos homens mais cultos da corte papal em Roma. Como observa Pécora, desde o início, a grande qualidade dos sermões – portanto, escritos prioritariamente para serem ouvidos -- esteve implicada no cuidado com que os jesuítas e outros grandes da época, como a rainha Cristina da Suécia, tiveram em protegê-los -- por vezes do próprio Vieira, mais interessado em continuar os seus escritos proféticos, os quais não se comparam em qualidade retórica ou poética aos sermões.

III

Como explica Pécora, para o entendimento histórico da prática oratória de Vieira é fundamental a identificação da dupla natureza do rei no Portugal seiscentista – como homem e como representação de Deus na Terra. E como isso é usado para legitimar a ação da Companhia de Jesus e seu projeto de tutela do Estado português.

Aliás, o recurso à mitificação e à identificação da nação com a ação divina está na gênese do Estado português com o chamado “milagre de Ourique”, que teria ocorrido na decisiva batalha em 1139, no Alentejo, em que as tropas de D.Afonso Henriques, mesmo inferiorizadas numericamente, derrotaram os mouros. Reza a lenda que, naquele dia, consagrado a Santiago, o futuro soberano português teve uma visão de Jesus Cristo e dos anjos, garantindo-lhe a vitória em combate. O entusiasmo que lhe adveio dessa vitória é o que teria resultado na criação do Estado nacional luso, reservando a Portugal um destino de soberania que seria negado a Galiza, terra-irmã até hoje subjugada a Castela e conformada ao Estado espanhol.

Essa idéia é reavivada nos séculos XVI e XVII, à época em que Portugal estava outra vez sob o jugo de Castela, depois da desastrosa campanha do rei D. Sebastião em terras africanas e a derrota em Alçácer-Quibir que levou ao seu desaparecimento. Para Pécora, é legítimo localizar-se em Vieira a idéia de um rei desejado e encoberto, tão cara à época da Restauração (1640), de que ele vai ser, sem dúvida, o intérprete máximo.

Embora a tradição do Encoberto remonte às “Trovas” do sapateiro de Trancoso, Gonçalo Annnes, escritas por volta de 1530-1540, a sua figura só se coloca de maneira adequada em Vieira, “quando a comunhão com o Ser de Deus aparece mediada por um Predestinado capaz de conduzir a história do homem a um ajuste com a verdade que Deus designa para ela”.

Mais adiante, Pécora lembra que o Estado sacramentado não o é sem que a vontade coletiva se ordene em um corpo hierárquico cujo modelo é monárquico. Com isso, diz, a eleição coletiva da nação se concentra sobre a sucessão dinástica. “Em seu interior, justamente Antonio Vieira prevê a geração do rei a quem caberá, por efeito do olhar da divindade e síntese da vontade comum, comandar com seus atos visíveis o desempenho das profecias relativas à conversão universal – o que, para ele, significaria, sobretudo, o estabelecimento do Estado de paz universal a que se deu o nome de V Império”, acrescenta, sem deixar de ressaltar, mais adiante, que, para Vieira, Portugal, por sua expansão no mundo, teria um papel fundamental no estabelecimento desse conjunto harmônico das nações, a derradeira utopia universal.

Essa idéia sempre encantou os poetas portugueses, a ponto de Fernando Pessoa retomá-la no começo do século XX no poema épico-nacionalista “Mensagem”, a uma época em que, depois do ultimatum inglês de 1890 que significou a subjugação explícita e às claras de Portugal a Inglaterra, já não havia o que celebrar, a não ser mitificar um passado cuja grandeza foi concretamente uma ficção, no dizer do pensador português Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade (Lisboa, Dom Quixote, 1992, p. 19).

Portanto, para conhecer melhor a história do que foi esse império de pobres – para citar outra vez Eduardo Lourenço (pág.40) – que se alastrou pelos quatro cantos do mundo, é fundamental entender o pensamento de Antonio Vieira. Afinal, sem se aprofundar nele não há como entender a atual relação dos portugueses com Portugal nem tampouco como compreender a presença do Brasil e dos brasileiros hoje no mundo. Nesse sentido, a contribuição deste estudo de Alcir Pécora é imprescindível e inestimável.

IV

Alcir Pécora é professor livre-docente de literatura na Unicamp, onde leciona desde 1977. Autor de estudos sobre literatura colonial brasileira e, em particular, do sermonário do padre Vieira, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos no Brasil e no exterior. Entre suas publicações, destacam-se: Máquina de Gêneros (Edusp, 2001); As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002); e Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003). Organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000/ 2001), além das antologias A Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos (Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira. É ainda organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst pela Editora Globo, de São Paulo.

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TEATRO DO SACRAMENTO: A UNIDADE TEOLÓGICO-RETÓRICO-POLÍTICA DOS SERMÕES DE ANTONIO VIEIRA, de Alcir Pécora. 2ª ed. Campinas: Editora da Unicamp. São Paulo: Edusp – Editora da Universidade de São Paulo, 288 págs., 2008, R$ 78,00.

E-mail: [email protected]

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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