Os espelhos da história

O livro mais recente de Eduardo Galeano, "Espelhos - uma história quase universal", é lançado em português durante a Feira do Livro de Porto Alegre. No dia 19 de outubro, Galeano recebeu, em Montevidéu, o prêmio Bartolomé Hidalgo, quando participou de uma conversa pública sobre o tema do livro. Publicamos aqui o resumo desta conversa.

No dia 19 de outubro deste ano, Galeano recebeu, em Montevidéu, o prêmio Bartolomé Hidalgo, na Feira Internacional do Livro. Na ocasião, Galeano fez uma longa conversa pública sobre o tema de “Espejos”, obra na qual ele se propõe a falar do que não é falado, a contar o que não é contado. O jornal uruguaio La Republica publicou um resumo da fala de Galeano, que reproduzimos aqui.

EDUARDO GALEANO

Redação - Carta Maior

Eduardo Galeano lança nesta quinta-feira (13), em Porto Alegre, a edição brasileira de seu mais recente livro, “Espejos” (Espelhos), publicada pela Editora L&PM. O escritor uruguaio participa de uma sessão de autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre e depois participa de um debate no auditório Dante Barone, da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.


No dia 19 de outubro deste ano, Galeano recebeu, em Montevidéu, o prêmio Bartolomé Hidalgo, na Feira Internacional do Livro. Na ocasião, Galeano fez uma longa conversa pública sobre o tema de “Espejos”, obra na qual ele se propõe a falar do que não é falado, a contar o que não é contado. O jornal uruguaio La Republica publicou um resumo da fala de Galeano, que reproduzimos aqui.


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"Eu queria compartilhar com vocês alguns dos relatos do último livro que cometi, que se chama “Espelhos” e que está armado sobre seiscentos relatos – não vou ler os 600, que ninguém entre em pânico, ninguém vá embora, não há perigo. Vou fazer uma seleção de uns poucos textos que considero reveladores do que o livro quis ser ou fazer: (muito modestamente), contar nada mais do que a história do mundo até onde se podia chegar.


E isso através de pequenas histórias, não só por sua extensão, mas também porque sempre me ocorre de olhar o universo pelo olho da fechadura, ou seja, redescobrir as grandezas desde o mais pequeno. Viajando desde essas coisas mais pequenas em direção às coisas que, verdadeiramente, têm grandeza (que não são as coisas mais grandes), e recontando a realidade desde o ponto de vista dos que estiveram lá, mas não foram lembrados porque a história oficial os suprimiu.


Há um primeiro relato que vou ler agora que, de alguma maneira, sintetiza toda a intenção do livro e que se chama “O herói”. Diz assim: “Como teria sido a guerra de Tróia contada desde o ponto de vista de um soldado anônimo; um grego a pé, ignorado pelos deuses e desejado só pelos abutres que sobrevoam as batalhas”.


Um camponês metido a guerreiro, cantado por ninguém, esculpido por ninguém. Um homem qualquer obrigado a matar e sem o menor interesse de morrer pelos olhos de Helena.


Teria pressentido esse soldado o que Eurípedes confirmou depois? Que Helena nunca esteve em Tróia; que apenas sua sombra esteve ali.


Que ocorreram dez anos de matanças por uma túnica vazia.


E se esse soldado sobreviveu, o que recordou?
Quem sabe! Talvez o cheiro. O cheiro da dor e somente isso.
Três mil anos depois da queda de Tróia, os correspondentes de guerra Robert Fisk e Fran Sevilla nos contas que as guerras doem.
Eles já estiveram em várias delas, as sofreram por dentro e conhecem esse cheiro de podridão quente, doce, pegajosa, que se mete por todos os poros e se instala no corpo. É uma náusea que jamais nos abandonará.


O livro se propõe falar do não falado, contar o não contado. Tenta responder algumas perguntas que zombem na minha cabeça, a maioria delas há anos – e que provavelmente seguirão zumbindo -, mas que aqui encontraram uma primeira tentativa de resposta como esta pergunta que eu me fiz quando, faz já algum tempo, tive a sorte de ver as pinturas rupestres na caverna de Altamira. As pinturas rupestres mais famosas do mundo em Altamira.


Eu as vi estendido em uma mesa de pedra e olhando para o teto – porque estavam pintadas no texto da caverna – e então me fiz uma pergunta, que é a pergunta que está aqui no texto, que vou ler agora: “Estas figuras estão ali pintadas nas paredes e nos tetos das cavernas: bisões, alces, ursos, cavalos, águias, mulheres, homens...não têm idade. Nasceram há milhares e milhares de anos, mas nascem de novo cada vez que alguém as olha. Como puderam eles, nossos remotos avós, pintar de maneira tão delicada? Como puderam eles, esses brutos que lutavam com as mãos contra animais ferozes, criar figuras tão cheias de graça? Como puderam eles rabiscar essas linhas voadoras que escapam da rocha e ganham o ar? Como puderam eles...ou eram elas...ou eram elas?


Repeti essas perguntas durante muitos anos. Fui lendo os livros que iam aparecendo sobre o tema e comprovei que a pergunta não era muito freqüente porque a ninguém ocorria a possibilidade de que as pinturas pré-históricas fundadoras da beleza no mundo fossem obra de mulheres.


E isso não tem nada de raro, porque as mulheres têm sido transformadas em ninguém pela história oficial e maltratadas pela história real.


Estamos acostumados a condenar com toda razão as atrocidades cometidas pelos fundamentalistas islâmicos contra as mulheres, mas não estamos tão acostumados a inteirar-nos, por exemplo, de que a Igreja Católica – que me formou; eu tive uma infância muito católica – proibiu durante sete séculos e meio, até bem pouco tempo (até mil novecentos e vinte e pouco), que as mulheres cantassem nos templos. E proibiu porque as vozes das filhas de Eva sujavam a pureza do ar.


Tampouco estamos acostumados a inteirar-nos de que a revolução laica por excelência - a Revolução Francesa que chegou para fundar a igualdade de direitos no mundo - proclamou lá por 1793 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas quando uma militante revolucionária, chamada Olímpia de Gouche, propôs uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, a Revolução Francesa cortou-lhe a cabeça na guilhotina.


Em outra pergunta que marquei aqui, porque há muitas histórias de mulheres, mas para resolvê-la com uma mais...
Quando eu era menino, havia...creio que ainda há uma rua chamada Concepción Arenal e eu queria saber quem era Concepción Arenal. Ninguém me explicava, ninguém sabia quem era ela. Assim, não tive outro remédio que investigar por minha própria conta e escrevi o seguinte sobre ela: “Passou a vida lutando com alma e vida, contra o inferno das prisões e pela dignidade das mulheres presas nas cadeias, disfarçadas de lares”.


Contra o costume de absolver generalizando, ela clamava “ao pão, pão, ao vinho, vinho”. Quando a culpa é de todos, é de ninguém, dizia.


E assim ganhou uns quantos inimigos e, ainda que seu prestígio já fosse indiscutível, seu país custava a acreditar – e não só em seu país, em sua época também.


Por volta de 1840, Concepción Arenal assistiu aos cursos da Faculdade de Direito, disfarçada de homem. Escondia o peito com um duplo corpete. Por volta de mil oitocentos e cinqüenta e poucos seguia disfarçando-se de homem para poder freqüentar as tertúlias madrilenhas onde se debatiam temas impróprios em horas impróprias;


Já por volta de 1870, uma famosa organização inglesa, a Sociedade Howard para a reforma das prisões, nomeou-a representante na Espanha e o documento de sua nomeação foi expedido em nome de “Sir” Concepción Arenal. Quarenta anos depois, outra galega, como Concepción, Emilia Pardo Bazán, foi a primeira mulher catedrática em uma universidade espanhola.


Nenhum aluno se dignava a escutá-la. Dava aulas para ninguém...


Algum amigo, desses perversos que todos temos (e que nunca faltam), me disse: “Por que não para de se incomodar com as mulheres se o sistema já te ofereceu em uma bandeja a Margaret Thatcher, a Condoleezza Rice e agora a Sara Paling que parece ser a pior de todas”.


A questão não é se as mulheres são melhores que os homens, mas sim que o caminho para a igualdade de direitos tem sido muito duro e ainda está pela metade. Os direitos não se presenteiam, se conquistam, e não me parece demais recordar que a igualdade de direitos que as mulheres ainda não conquistaram, mas que evidentemente já avançaram nesta direção, tem sido o resultado do trabalho de muitas mulheres que se engajaram nesta luta.


Tampouco acredito que os negros sejam melhores que os brancos, mas acredito que o mundo está doente de racismo e por isso me parece muito positivo que Obama seja um candidato com boas possibilidades de conquistar a presidência dos Estados Unidos, não porque eu compartilhe tudo o que ele diz, especialmente o que diz quando anuncia que o Irã é o pior inimigo da humanidade, ou quando ameaça invadir o Paquistão, ou quando emprega a linguagem de McCain a tal ponto que causa aborrecimento escutar o mesmo de um lado e de outro.


Mas é um fato positivo pela simples razão de que é a primeira vez que isso ocorre. E ocorre em um país muito racista, gravemente enfermo de racismo. Para começar com outra pergunta: Adão e Eva eram negros?


A viagem humana pelo mundo começou na África. Foi a partir desta região que nossos avós empreenderam a conquista do planeta. Os diversos caminhos fundaram os diversos destinos e o Sol se ocupou de reparti-los em cores. Agora, as mulheres e os homens arco-íris da terra, temos mais cores que o arco-íris do céu, mas somos todos africanos emigrados...somos todos africanos emigrados.


Até os brancos branquíssimos vieram da África. Talvez nos neguemos a recordar nossa origem comum porque o racismo produz amnésia ou que porque nos é impossível acreditar que naqueles tempos remotos o mundo inteiro era nosso reino, um imenso mapa sem fronteiras, e nossas pernas eram o único passaporte exigido.


Quando digo que Obama é importante – sobretudo em um país como os Estados Unidos – estou me referindo a coisas que ocorreram há, digamos, quinze minutos, porque, em termos históricos, por exemplo em 1943, que é logo ali, o Pentágono proibiu as transfusões de "sangue negro". Os EUA tinham entrado na guerra e não queriam que se fizesse por injeção a mescla de raças proibida na cama. O presidente da Cruz Vermelha era o cientista que tinha tornado possível o desenvolvimento do plasma com suas investigações, tinha tornado possível a conservação do sangue. O homem que salvou milhões de vida disse que ele se negava a cumprir a ordem porque era um disparate, o sangre negro não existia. “Todo o sangue é vermelho, pelo menos o que eu conheço”. Ele foi demitido. Chamava-se Charles Drew e era negro. Era negro.


Passaram-se os anos, pouco tempo depois ele morreu. Agora, há pouco tempo, a Cruz Vermelha dos Estados Unidos resolveu adotar seu nome. Charles Drew não ficou sabendo. Eu não acredito muito nisso, perdão é assim, te peço perdão, sobretudo quando o crime está tão distante, mas quase em nenhum caso também. Palavras para a realidade e sua memória.


O século XX que nasceu anunciando “paz e justiça” morreu banhado em sangue e deixou um mundo muito mais injusto do que aquele que havia encontrado. O século XXI, que também nasceu anunciando “paz e justiça”, está seguindo os passos do século anterior.


Na minha infância, eu estava convencido de que tudo o que se perdia na Terra ia para a Lula, mas...os astronautas não encontraram na Lua sonhos perigosos, nem promessas traídas, nem esperanças frustradas...Se não estão na Lua, onde estão?


Será que não se perderam na Terra? Será que se esconderam na Terra e estão esperando...esperando por nós, os humanos.


Darwin nos informou que somos primos dos macacos, não dos anjos. Depois soubemos que vínhamos da selva africana e que nenhuma cegonha havia nos trazido no bico desde Paris, e não faz muito ficamos sabendo que nossos genes são quase iguais aos genes dos ratos...já não sabemos se somos obras-primas de Deus ou uma má piada do diabo.


Nós, os humanos; os exterminadores de tudo; os caçadores do próximo; os criadores da bomba atômica, da bomba de hidrogênio e da bomba de nêutrons que é a mais saudável de todas porque liquida as pessoas, mas deixa intactas as coisas.


Os únicos animais que inventam máquinas, os únicos que vivem a serviço das máquinas que inventam.


Os únicos que devoram sua casa; os únicos que envenenam a água que lhes dá de beber e a terra que lhes dá de comer; os únicos capazes de alugar-se ou vender-se ou de alugar ou vender os seus semelhantes. Os únicos que matam por prazer; os únicos que torturam; os únicos que violam e também...e também os únicos que riem.


Os únicos que sonham despertos; os únicos que fazem seda da baba da lagarta; os que convertem lixo em formosura; os que descobrem cores que o arco-íris não conhece; os que dão novas músicas às vozes do mundo e criam palavras para que a realidade e sua memória não sejam mudas.


OS ÍNDIOS ERAM CEGOS?
Quando eu estava na escola, a professor nos explicou que Vasco Núñez de Balboa tinha sido o primeiro homem a ver os dois oceanos, a ver os dois mares de uma só vez, o Pacífico e o Atlântico, desde uma montanha no Panamá; o primeiro homem.


Eu levantei e a mão e disse: - Senhorita, senhorita...
- Sim?
- Os índios eram cegos?
- Fora!
Foi minha primeira expulsão.
Quem foram os primeiros a nomear o milho, a batata, o tomate, o chocolate, as montanhas e os rios da América?
Hernán Cortez? Francisco Pizarro?
Os que viviam ali eram mudos?
Os peregrinos do My Flower escutaram...Deus dizia que a América era a terra prometida.


Os que viviam ali eram surdos?
Depois, os netos daqueles peregrinos do norte se apoderaram do nome e de todas as demais coisas. Agora, americanos são eles; nós, que vivemos nas outras Américas, o que somos?


Os chamados índios – por um erro geográfico notório de Colombo – preferem chamar-se a si mesmo de nativos, que é uma maneira muito mais formosa de dizer quem são. Eles foram muito maltratados e seguem sendo por uma conquista que continua, século após século, nas terras da América.


Podemos citar ainda um par de exemplos próximos: a maior avenida do Uruguai leva o nome de Fructuoso Rivera que assassinou os últimos charruas, e a estátua mais alta da Argentina é a do general Roca que exterminou os índios da Patagônia.


Milhares de mortos sem sepultura perambulam pelo Pampa argentino. São os desaparecidos da última ditadura militar. A ditadura do general Videla aplicou em escala jamais vista o desaparecimento como arma de guerra. Aplicou, mas não inventou...


Um século antes, o general Roca havia usado contra os índios esta obra-prima da crueldade que obriga a cada morto morrer várias vezes e que condena seus entes queridos a enlouquecerem perseguindo sua sombra fugitiva.


Na Argentina, como em toda América, os índios foram os primeiros desaparecidos. Desapareceram antes de aparecer.


O general Roca chamou a invasão das terras indígenas de “Conquista do deserto”. A Patagônia era um espaço vazio, um reino do nada habitado por ninguém. E os índios seguiram desaparecendo depois.
Os que se submeteram e renunciaram à terra e a tudo foram chamados “índios reduzidos”. Reduzidos até desaparecer.


O CIDADÃO JOSÉ ARTIGAS
O país teve educação laica e gratuita antes da Inglaterra; voto feminino antes da França; jornada de trabalho de 8 horas antes dos Estados Unidos e Lei do Divórcio antes da Espanha.


O presidente José Batlle (don Pepe) nacionalizou os Serviços Públicos, separou a Igreja do Estado; mudou os nomes do calendário. A Semana Santa ainda se chama, entre nós, Semana do Turismo, como se Jesus tivesse tido a má sorte de morrer em uma data assim.


A “arquitetura da morte” é uma especialidade militar. Em 1977, a ditadura uruguaia erigiu um monumento funerário em memória de José Artigas.


Este enorme despropósito foi um cárcere de luxo – foi e segue sendo – construído na Praça...um cárcere de luxo.
Havia fundadas suspeitas de que o herói podia escapar um século e meio depois de sua morte. Para decorar o mausoléu e dissimular a intenção, a ditadura militar buscou frases do prócer, mas o homem que havia feito a primeira Reforma Agrária da Europa, meio século antes que Lincoln, um século antes que Zapata; o general que se fazia chamar “cidadão Artigas”, tinha dito que “os mais infelizes devem ser os mais privilegiados”; que jamais iria “vender nosso rico patrimônio ao baixo preço da necessidade” e que “sua autoridade emanava do povo e cessava diante do povo”.


Os militares não encontraram nenhuma frase que não fosse perigosa. Então, decidiram que Artigas era mudo, e nas paredes de mármore negro não há mais do que datas e nomes.


Há mais de meio século, o Uruguai não ganha um Campeonato Mundial de futebol, mas durante a ditadura militar compensou e conquistou outros duvidosos troféus: foi o país que, proporcionalmente, teve o maior número de presos políticos e torturados.


A prisão com o maior número de presos foi chamada de “Liberdade”. Como rendendo homenagem ao seu nome, palavras presas fugiram de suas grades; escorreram por elas os poemas que os presos escreviam em minúsculos papéis de enrolar cigarros...como este.


Às vezes chove e te quero. Às vezes sai Sol e te quero. A prisão é às vezes...sempre te quero.


Tradução: Katarina Peixoto

Carta Maior

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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