A República de sempre: Lima Barreto e a crônica das ruas

Adelto Gonçalves (*)

I

Quem está assustado com o nível de sentina a que chegou a politicalha nacional por estes dias não deveria deixar de ler os dois volumes de Toda Crônica (Rio de Janeiro: Agir, 2004), que trazem as colaborações de Lima Barreto (1881-1922) na imprensa do Rio de Janeiro de 1890 a 1922. Vai descobrir que, há um século, o cronista já via a política como “um ajuntamento de piratas mais ou menos diplomados que exploram a desgraça e a miséria dos humildes”.

Se fosse hoje, provavelmente, Lima Barreto teria substituído a condescendente maneira como se referiu aos “mais ou menos diplomados”, tal o número de semialfabetizados diplomados nas artes da esperteza e da enganação que pululam nos altos cargos da nação. Pelo menos nesse quesito para alguma coisa serviu a democracia de fancaria em que caímos.

Na crônica em que descreve a política da república de então – publicada em 19/10/1918 na revista A.B.C. –, o escritor, a quem não se pode chamar de monarquista, confessa ter saudade do império, embora tivesse vivido apenas os oito primeiros anos de sua vida de pobre sob aquele regime político. Dizia que pelo menos, na época do imperador, “os homens tinham elevação moral e mesmo, em alguns, havia desinteresse”.

Para quem colocasse em dúvida o que escrevia, talvez imaginando que estivesse idealizando o passado, o cronista garantia que não era mentira que a política ao tempo do império tivera alguma grandeza e beleza. “As fórmulas eram mais ou menos respeitadas”, dizia para, logo em seguida, assegurar que o que movia os políticos daqueles tempos não era a ambição do dinheiro, mas a de glória e de nome. “Tanto assim que muitos que passaram pelas maiores posições morreram pobríssimos e sua descendência só tem de fortuna o nome que recebeu”, dizia. Quem conhece hoje algum ex-ministro ou ex-deputado que esteja em má situação financeira?

Para Lima Barreto, a república, trazendo à tona dos poderes públicos a borra do Brasil, transformara completamente os nossos costumes administrativos e todos os “arrivistas” se fizeram políticos para enriquecer. “A república do Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e para que não haja divergências, há a “verba secreta”, os reservados deste ou daquele ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência”, escrevia.

Se o leitor vê nessas palavras alguma semelhança com os “atos secretos” do Senado brasileiro denunciados nos últimos dias, não há, portanto, do que se espantar se há senadores e altos funcionários públicos que “esquecem” de declarar no formulário do imposto de renda residências suntuosas de milhões de reais e o fisco, ao que se saiba, nada fiscaliza, embora seja implacável com os assalariados que, por sua vez, só pagam porque, nestes tempos de informática, já não há como escapar. Ao menos, para estes coitados.

II

Apesar do que diz o justamente indignado Lima Barreto, esse estado de coisas não é invenção republicana – porque, ao tempo do Brasil colonial, já era “o pobre porque era pobre” que tudo pagava, como se pode ler nas “Cartas Chilenas”, de Critilo, alter ego do ouvidor e poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). E quem conhece a verdadeira história da conjuração mineira de 1789 sabe que quem arquitetou a revolta que não eclodiu foram ex-arrematantes de contratos de entradas que haviam colocado na algibeira a arrecadação dos tributos que faziam em nome da coroa, obviamente, com a conivência (bem remunerada) do capitão-general e outros graúdos do governo da capitania.

Por isso, apesar da advertência de Lima Barreto, há que se dar um pouco de desconto à idealização que ele fazia do império, mero prolongamento do regime colonial. Porque, afinal, a “comilança” de que o cronista se queixava vem de tempos imemoriais. Dizia o cronista: “Comem” os juristas, “comem” os filósofos, “comem” os médicos, “comem” os advogados, “comem” os poetas, “comem” os romancistas, “comem” os engenheiros, “comem” os jornalistas: o Brasil é uma vasta “comilança”.

Era a política da corrupção, quando não a do arrocho, constatava Lima Barreto. “Não se admite mais a independência de pensamento ou de espírito. Quando não se consegue, por dinheiro, abafa-se”, acrescentava, sem deixar de assinalar, em outra crônica, publicada em 24/6/1911 na revista A Estação Teatral, que essa rapinagem não se dava apenas no campo rasteiro da política, mas também nas relações literárias que, como hoje, também passavam pelo compadrio, pelas “panelinhas”, enfim, um regime de débitos e créditos afetivos (às vezes, também pecuniários) de que o acadêmico Coelho Neto (1864-1934) seria o principal representante.

Bem situado na república das letras, o beletrista Coelho Neto, “o último dos helenos”, era tudo o que Lima Barreto odiava. Diretor do Teatro Municipal e conselheiro de editores, fazia da literatura caminho para arranjar empregos rendosos ou lugares na representação nacional para si e para seus amigos. Para piorar, Coelho Neto era ainda o grande promotor do futebol – torcedor do Fluminense e pai dos jogadores Mano e Preguinho –, esporte bretão que o cronista Lima Barreto considerava a degradação da cultura brasileira, além de difusor do racismo, já que, por aqueles tempos, só brancos entravam em campo.

III

Uma crônica que faz o que hoje se diria crítica da mídia é “Os nossos jornais”, publicada em 18/10/1911 na Gazeta da Tarde, em que Lima Barreto reclama da “indigência desoladora” que era a reportagem dos ministérios nos jornais cariocas. Queixava-se ainda do espaço exagerado que se dava às futilidades sociais que “tomam colunas e, às vezes, páginas”.

Outra coisa que não agradava ao cronista era a importância que os jornais atribuíam aos fatos policiais. “(...) não ocorre um incêndio vagabundo que não mereça as famosas três colunas – padrão de reportagem inteligente”, dizia. Para ele, os jornais desprezavam tudo o mais que formava a base da grande imprensa brasileira. “Não há as informações internacionais, não há os furos sensacionais na política, nas letras e na administração. A colaboração é uma miséria”.

Lima Barreto lamentava ainda que os donos dos jornais, embora vivessem na Europa ou levassem vida nababesca no Rio de Janeiro, não gostassem de pagar a colaboração – o que, aliás, diga-se de passagem, não mudou muito. “E, quando a pagam, fazem-no forçados por empenhos, ou obrigados pela necessidade de agradar à colônia portuguesa, em se tratando de escritores lusos”, dizia, referindo-se especificamente a O País, órgão ligado à burguesia portuguesa do Rio de Janeiro, que dava espaço a autores lusos. Mas a crítica estendia-se aos demais jornais, como Correio da Manhã, Imprensa e Jornal do Commercio.

Segundo Lima Barreto, do ponto de vista jornalístico, as folhas da tarde – A Notícia e a Gazeta da Tarde – não eram muito melhores. “Há muito que suprimir nos nossos jornais e há muito que criar”, garantia.

IV

O segundo volume, que reúne crônicas publicadas em revistas e jornais entre 1919 e 1922, marca a etapa decisiva da breve e tumultuada vida de Lima Barreto. Foi no começo de 1919, quando tinha 37 anos, que o escritor se aposentou por invalidez da Secretaria de Guerra em conseqüência de uma série de internações hospitalares provocadas por alcoolismo. A essa época, porém, se não era um nome nacional, pelo menos merecia muito respeito na república das letras.

No começo de 1919, fora publicado o romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, lançado pela Revista do Brasil, por iniciativa de Monteiro Lobato (1882-1948). E saía à luz de maneira profissional, sob o selo de uma editora bem conceituada. No prefácio que escreveu para o segundo volume, Beatriz Resende destaca que, a essa época, Lima Barreto passou a escrever para a revista Careta, recebendo salário fixo pelo trabalho, remuneração que constituiria importante complemento para seu precário equilíbrio financeiro.

Como a informação não vem abonada por nenhum documento de arquivo, é provável que não passe de mera ilação, pois, a levar-se em conta a precariedade das relações profissionais que marca a imprensa brasileira até hoje, essa remuneração deveria ser ínfima, se é que alguma vez tenha existido.

Fosse como fosse, o certo é que, sem a obrigação de comparecer à repartição pública, Lima Barreto parece que fez da escrita um refúgio que lhe servia não só para preencher o tempo ocioso como estimular a sua participação no debate público, aumentando o tom de suas críticas àqueles que se movimentavam na cena política, que pouco se diferenciavam, em seus maus costumes e práticas nefastas, dos corruptos que pululam no Brasil de hoje. Com uma diferença: comparados com os de hoje, aqueles seriam meros batedores de carteira.

Em uma dessas crônicas, “A nossa situação”, publicada na revista A.B.C, em 1920, ao fazer uma espécie de balanço dos 30 anos da República, o escritor condenava “a incapacidade dos dirigentes para guiar a massa da população na direção de um relativo bem-estar, a sua profunda desonestidade, os baixos ideais de sua política que, em presença de propinas e gorjetas, lucros ou quais seja em moeda, não trepidam em lançar na miséria, na mendicância, no alcouce, na taverna os seus patrícios, mesmo a atirá-los à aventura de uma guerra, quando o pourboire, estrangeiro em geral, é de encher os olhos”. Quer dizer: tirando um ou outro substantivo, esta seria uma frase à medida para os mandões dessa mesma República, 89 anos mais tarde, pois nunca como agora o pourboire – gorjeta, em francês – fez tanto sucesso.

Fazendo parte da legião de deserdados da terra brasileira, Lima Barreto não se distinguia em nada daqueles homens humildes que enchiam as ruas e os botequins do Rio de Janeiro e do Brasil, com uma diferença notável: a sua erudição, que o fazia citar autores que nem mesmo os freqüentadores das sessões da Academia Brasileira de Letras certamente haviam lido, e sua capacidade de analisar com lucidez os fatos da República dos Bruzundangas, nome-paródia que dava ao Brasil.

Pobre, não conseguiria casar e constituir família. Solitário, embora vivesse com o pai e irmãos no subúrbio de Todos os Santos, parece que não soube como lidar com a tragédia de uma vida de dificuldades. Ao final do ano de 1921, no dia seguinte ao do Natal, deu entrada no Hospício Nacional, depois de outra recaída no vício. É desse dia a foto que lhe tiraram, de fisionomia descomposta, precocemente envelhecida, que ficou guardada nos arquivos públicos por tantos anos e que, de maneira inédita, é reproduzida no segundo volume de Toda Crônica de uma página do livro de registro de entrada de pacientes no Hospício Nacional.

Beatriz Resende observa ainda que, obrigado a permanecer mais tempo em casa por razões de saúde, Lima Barreto ocupara-se em organizar seus manuscritos que serviriam mais tarde para facilitar o trabalho de seu biógrafo Francisco de Assis Barbosa (1914-1991) e daqueles que cuidariam da publicação de sua obra póstuma, M. Cavalcanti Proença (1905-1966) e Antonio Houaiss (1915-1999). Pela recolha das crônicas, percebe-se o cuidado de Lima Barreto não só com a sua obra ainda inédita – ou dispersa em publicações de vida efêmera – como a correta avaliação que tinha de sua importância para a história literária do País.

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TODA CRÔNICA, de Lima Barreto. Apresentação e notas de Beatriz Resende, organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir Editora, v.I (1890-1919), 587 págs.; v. II (1919-1922), 596 págs., 2004.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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