A Rússia que eu não conhecia

Tive contato, desde tenra idade, com a famosa literatura russa. Muito me enriqueci com as primeiras madrugadas dedicadas inteiramente à leitura de Dostoiévski, Tolstói, Pushkin e outros nomes que engrossavam as fileiras de livros com autores de nome complicado; e posso dizer, sem medo de cair em um exagero saudosista, que foram os meus primeiros amores. Nessa época, jovem bobo e inexperiente, eu não fazia ideia do que a antiga União Soviética representava em termos culturais.

Como um divisor de águas em minha adolescência, tive o meu primeiro contato com a literatura marxista ainda muito novo. E junto com os livros de Lenin e Bukharin que eu lia, vieram também os primeiros romancistas soviéticos. E é aqui que quero chegar. Maksim Gorki foi um dos primeiros a me encantar com um estilo dialético e revolucionário, conduzindo, através de delicadas palavras, violentos ataques a uma moral burguesa pré-revolução. Um ex-engraxate que utilizava de tão poderosa estética de insulto para, profundamente mergulhado em suas românticas convicções, atingir a uma velha Rússia onde a mera hipótese de que camponeses pobres e escanzelados se tornassem escritores e intelectuais era absurda. Gorki, precisamos compreender do ponto de vista literário, não enxergava a Rússia dos czáres como um Estado em si, mas sim como um algoz que por muito tempo interrompeu os seus sonhos e os de muitos que compunham o seu círculo.

Os elementos que constroem a estética da literatura soviética estão pelas ruas, pelas casas e pelas trincheiras, presentes mesmo em horrendas situações de guerra e sofrimento. É o extremo realismo, objeto de crítica e admiração; uma fonte inesgotável àquela geração de intelectuais. E Isáac Babel, autor soviético de origem judaica, escreveu sobre esses mesmos horrores de guerra. Em Konarmiya (traduzido e publicado no Brasil como "A Cavalaria Vermelha"), Babel nos leva à invasão soviética da Polônia, descrevendo, em ricos detalhes de observador atento, o sofrimento e o desespero das famílias em plena perda de pessoas próximas. Penetrava nas mais profundas lacunas da personalidade. Não na personalidade das vítimas, mas da testemunha ocular, personagem principal. Quem observa a barbárie não é mais o autor ou o personagem, mas sim o leitor, que por fim é conduzido a olhar para dentro de si mesmo.

Rica descrição física dos personagens, atenta às mais detalhadas características, como em Anna Karenina, de Tolstói; ou ainda, um profundo mergulho no psicológico de todo o enredo, nos colocando em posição de auto-crítica sincera, como em Crime e Castigo, de Dostoiévski. Talvez uma forte relação com a beleza do meio, como se os bosques fizessem parte dos protagonistas. Noites Brancas, Dostoiévski. Os elementos primários da literatura soviética vêm de origens anteriores, evidentemente. É possível encontrar tais características nas obras de Gorki, Maiakovski, Blok, Kirillov e outros. Não é disso que se trata. O ouro da literatura soviética está em seu rompimento de conceitos de littérature pour la littérature.

Enquanto no ocidente dos anos 60 nós tentávamos romper com a moral hipócrita e autoritária das ditaduras que desgraçavam o terceiro mundo, a literatura soviética já havia rompido com a trajetória da Rússia Czarista, dedicando-se a denunciar essa miserável página da história dos povos eslavos. A exemplo, talvez seja hora de retornarmos, mesmo que muito tardiamente, à corrente soviética da literatura e rompermos também com certos paradigmas que ainda se perpetuam por nossas terras; fantasmas que ainda são muito presentes na curta memória de nosso país.

André Rosa é jornalista e co-autor do livro Palavra é Arte (Cultura Editorial)

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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