As conseqüências dos planos qüinqüenais para organização do cinema na URSS.

Diogo Carvalho[1]

14166.jpegA NEP teve sucesso no que diz respeito à reorganização da economia soviética, porém, ela nunca foi uma unanimidade entre os bolcheviques. Muitos bolcheviques viam as aberturas propiciadas pela NEP como elementos de degeneração do comunismo. Para alguns historiadores, o fim da NEP foi à maior transformação que a sociedade soviética experimentou ao longo de sua história: "Talvez, a mais importante mudança na história soviética tenha sido o fim da NEP" (KENEZ, 2003, pag114).

O modelo econômico adotado após a NEP ficou conhecido como Plano Qüinqüenal, que grosso modo planificou todas as atividades produtivas da sociedade soviética, coletivizou forçadamente as terras e investiu pesado na indústria de base. Mesmo aquelas pequenas iniciativas privadas permitidas durante a NEP, passaram ao controle estatal e seus funcionários foram obrigados a cumprir um rigoroso plano de metas, cuja duração era de 5 anos. 

Com a vigência dos planos qüinqüenais as instituições que organizavam a cultura na URSS ficaram subordinadas aos seus planos de metas. No que tange a produção fílmica isso propiciou que um número expressivo de filmes fosse realizado. Este dado demonstra que para a URSS o cinema era um elemento estratégico na propaganda do regime, pois o cinema é uma atividade cultural que requer extensos recursos para sua produção.

Foi neste período que as primeiras fábricas de matérias-primas para a indústria fílmica começaram a sua produção. Em 1931 a primeira fábrica de matéria-prima especifica para a fabricação de filmes foi aberta. Lentamente a URSS foi libertando-se de sua dependência externa para produção fílmica. Ao longo de 1930' fábricas dos mais variados componentes da indústria cinematográfica também iniciaram sua produção. Câmeras, projetores, lâmpadas, passaram a ser fabricados na URSS. No inicio da produção a qualidade destes equipamentos não era muito boa, mas foi ficando melhor com o aprimoramento das técnicas de manufatura.  

Apesar de o cinema fazer parte dos projetos de industrialização e planificação da economia soviética propostas nos planos qüinqüenais, os números relacionados à quantidade de filmes produzidos por ano, apontam, que nem sempre, esta produção foi maior do que a quantidade de filmes produzidos durante a NEP. A planificação não levou necessariamente ao aumento da produção, na maioria dos (anos) o efeito foi o inverso. Em 1937 as metas de produção planejaram realizar 62 filmes, porém só conseguiram completar 24, menos da metade do que havia sido planejado.  

1931

26

1932

28

1933

15

1934

39

1935

21

1936

30

1937

24

1938

26

1939

35

1940

21

1941

39

                                        Tabela 1[2].

Os números acima evidenciam que um conjunto de fatores - planificação da produção e policiamento ideológico-estético - fez com que a produção de filmes durante 1930's caísse bastante. Durante toda a década de 30 a produção não recuperou o ritmo na década anterior (KENEZ, 2003), em muitos casos as perdas foram mais de 50%. Os diretores, impossibilitados de experimentar artisticamente ficaram muito reticentes em realizar novas películas, Kenez (2003) supõe que houve até uma hesitação em produzir e desenvolver novos filmes. As criticas aos diretores que eram acusados de experimentalismo, desvios ideológicos e influências burguesas, foram tão coléricas que eles ficaram receosos em construir novas peças fílmicas, pois a responsabilidades assumidas ao assinar a direção de determinada película se tornou imensa, em alguns casos, corria-se risco de vida por isso.

Em novembro de 1929, o jornal especializado em cinema Kino i zhizn' publicou um editorial alertando para uma nova ofensiva dos inimigos de classe. Segundo o editorial estes inimigos estavam utilizando os cinema para propagar elementos pequenos burgueses, anti-marxistas, além de vulgarizar o materialismo ao mecanizá-lo. Infelizmente o editorial não cita diretamente quais diretores foram responsáveis por filmes que se enquadravam nestas características.  

Ao analisar os números de filmes produzidos em 1933, Kenez (2003) conclui que os números voltaram a subir, isso inclusive pode ser observado na tabela acima.

Então, o número começou a subir novamente, mas nunca atingiram os níveis da década anterior. Os críticos deixaram muito claro aos diretores o que eles não queriam. Eles eram muito mais hesitantes no desenvolvimento de prescrição para a nova arte. Sua resposta aos filmes tornou-se imprevisível. (KENEZ, 2003, pag.108)

Neste mesmo período, com a radicalização da censura e do planejamento - plano qüinqüenal - a era de ouro do cinema soviético, caracterizada, sobretudo pela heterogeneidade chegou ao fim.  O reconhecimento, a fama e a influência que os grandes diretores soviéticos conquistaram no ocidente arrefeceram. Curiosamente não foram só estes fatores que contribuíram para que estes diretores perdessem prestigio no ocidente. A entrada do som no cinema também aguçou esta situação, pois transformou radicalmente as famosas e propagadas técnicas de montagem russa (KENEZ, 2003).

Outro fator que levou a queda na produção cinematográfica foi à concentração de poder. Com a reformulação dos estúdios, a sua estrutura passou a refletir o modelo de gestão social, cuja burocracia detinha um poder decisório muito abrangente.

Com a transformação da Sovkino em Soiuzkino, um dos seus diretores Boris Shumiatskii acumulou poderes que até então não existiam na estrutura cinematográfica soviética.

Alguns sovietólogos atribuem a Shumiatskii grande parte da culpa pelo baixo número de filmes produzidos neste período. Ele ficou no controle da Soiuzkino por oito longos anos. Nestes anos ele sugeria os temas que deveriam ser filmados pelos grandes diretores e ainda fiscalizava individualmente o andamento dos projetos. Quando não estava satisfeito, intervinha pessoalmente na formulação dos roteiros e scripts. Era considerado o principal censor, pois tinha poderes suficientes para brecar qualquer projeto, em qualquer estágio de produção.

Além destes problemas relativos à concentração de poder, ele tinha sérios entraves pessoais com diretores como: Kuleshov, Vertov, Eisenstein. Inclusive em um dos seus livros Kinematografia Millionov[3] (Cinematografia para Milhões, URSS, 1934), Shumiatskii teceu críticas as teorias fílmicas destes cineastas. Para este dirigente, os diretores da era de ouro do cinema soviético apresentavam características da pequena burguesia em seus filmes. Contra Vertov, ele foi ainda mais especifico: disse que nos filmes deste famoso e brilhante diretor, eram perceptíveis aspectos do niilismo, misturados a um capitalismo moribundo.

Apesar de criticar alguns artistas imputando-os a pecha de capitalista, Shumiatskii era aficionado pela eficiência e qualidade técnica da indústria fílmica hollywoodiana. Ele chegou a viajar para os EUA para estudar a organização da indústria fílmica deste país. Shumiatskii elaborou planos, que nunca se materializaram, de criar um estúdio enorme aos moldes de Hollywood, que seria localizado na Criméia.   

 O interessante é que estas viagens foram realizadas em uma época onde o intercâmbio cultural entre o oeste e os soviéticos não era estimulado, e sim combatido.     

É difícil dizer até que ponto a personalidade de Shumiatskii[4] influenciou seu comportamento, ou ele estava sendo marionetado por alguém, ou alguma estrutura de poder superior a ele. Devemos lembrar que durante o stalinismo os colaboradores mais próximos de Stalin também estavam sob forte pressão. Em vários casos, os parentes destes colaboradores foram presos em Gulags. Para Stalin, isto era uma garantia de que seus homens mais próximos teriam uma conduta ilibada. Talvez, o exemplo mais famoso deste tipo coerção, tenha sido o de Molotov. Bolchevique da velha guarda, Molotov teve sua mulher presa durante cinco anos, mesmo tendo neste período, ocupado cargos importantíssimos na burocracia soviética, inclusive o de Ministro das Relações Exteriores. 

Com este tipo de conjuntura persecutória, a quantidade de filmes produzidos pelos cineastas da velha guarda, e que tinham problemas de relacionamento com Shumiatskii não alcançou o ritmo da década de 1920's. Vertov entre os anos de 1924 e 1929 produziu 9 filmes, enquanto durante toda década de 1930' ele só realizou 5 filmes. 

Com o acumulo de poder por parte de Shumiatskii não demorou muito tempo para que a homologação oficial da doutrina do realismo socialista impactasse diretamente na história da organização do cinema soviético. Em 1935 o Partido organizou outra conferência, desta vez com o nome de Conference Of Film-Makers. Neste evento diversos diretores fizeram uma espécie de autocrítica coletiva e acusaram-se uns aos outros. Kenez (2003) sugere que isto aconteceu porque alguns diretores foram coagidos a realizar estas ações. Dentre os que sofreram os ataques mais viscerais, estavam Eisenstein e Kuleshov.

Ironicamente este período de reestruturação da indústria cinematográfica ficou conhecido na época na URSS como perestroika. Outro marco que evidenciou este processo de centralização dos estúdios se deu em 1933 com o estabelecimento do Diretório Chefe da Indústria de Filmes e Fotos (GUKF). O nome desta organização foi simplificado em 1937 e passou a se chamar Diretório Chefe para Indústria Fílmica (GUK), cuja subordinação foi destinada pelo Partido ao recém criado Comissariado Para Todas as Artes, dirigido pelo velho Proletkultista, Valerian Pletnev. (KENEZ, 2003). As particularidades do cinema logo levariam a criação de uma instituição, no mais alto nível da hierarquia política soviética, que regulamentasse especificamente o cinema. Finalmente em Março de 1938 foi criado o Comissariado para Cinematografia, órgão pertencente ao Conselho dos Comissariados, portanto, com status de ministério.    

Aproveitando-se da inclusão do cinema na planificação da economia soviética, Shumiatskii fundou diversos estúdios pela URSS. Estes estúdios eram enormes, alguns autores se referem a este processo como gigantomania da produção fílmica.

Os Estúdios de Leningrado e Moscou eram os maiores estúdios do mundo nesta época. Porém a enormidade destes estúdios dificultava a iluminação dos filmes, pois exigia que os diretores utilizassem lâmpadas de alta intensidade, material que ainda não estava sendo produzido pelos soviéticos. Isso fez com que, alguns filmes produzidos durante esta época aparentassem uma coloração cinzenta, e em alguns casos, a falta de luz propiciava ao telespectador, a sensação de que estes filmes tinham sido filmados fora de foco. É nessa onda de gigantomania que será fundado em 1935 o Mosfilm.  Que se tornou o mais importante estúdio soviético, e que até a atualidade é o maior estúdio da Europa.

Outro elemento que foi impulsionado pelos planos qüinqüenais foi à questão da audiência do público. Neste período, o número de salas passou de 7331 em 1928 para 29,274 em 1940. Este número merece uma ressalva, pois nesta conta também foram contabilizados os projetores destinados as vilas e cidades pequenas do interior. Nesta mesma época o número de Tickets triplicou atingindo a cifra de 900 milhões antes da guerra (KENEZ, 2003).

Como explicar que números tão baixos de filmes produzidos tenham tido audiências expressivas? Talvez a resposta esteja na concepção de entretenimento e de fuga da realidade que o espectador sente ao ir para o cinema. Na URSS, outros atrativos além dos filmes faziam com que as pessoas fossem aos cinemas. Pequenas orquestras, Buffet e outras peculiaridades tornavam os cinemas um local de ampla sociabilidade. Muitos cidadãos soviéticos viam o mesmo filme diversas vezes "Muitas pessoas foram ver os mesmos filmes varias e varias vezes." (KENEZ, 2003, pag.120). Pois como já falamos, URSS na década de 1930', apesar de contar com uma crescente indústria cinematográfica não conseguia produzir um número significativo de filmes.

Notas

1. Historiador. Mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. Bolsista CAPES. e-mail: [email protected]

2. 2010 é o ano da Rússia na França e da França na Rússia.  Ambos os governos realizaram diversas ações cujo objetivo foi o de propagar entre os dois países as manifestações histórico-culturais produzidas nestes estados.  Na área cinematográfica uma destas ações foi o site KINOGLAZ, que compilou uma série de informações sobre o cinema Russo. Dentre estas informações, os organizadores do site listaram o número de filmes produzidos por ano na União Soviética. Para mais informações ver:

http://www.kinoglaz.fr/index.php?lang=ru

3. Para mais informações ver: TAYLOR, R; CHRISTIE, I. (ORG).  The Film Factory: Russian and Soviet Cinema In Documents 1896-1939. Ed. Routledge. London and New York, 1994, p.358-359.

4. Apesar de contribuir enormemente com o stalinismo, paradoxalmente, Shumiatskii foi morto em 1938 acusado de conspiração contra o Estado Soviético.

Referências Bibliográficas.

KENEZ, P. Cinema and Soviet Society: from the revolution to death of Stalin. Ed. I.B. Tauris & Co, LTD, New York, 2009.

TAYLOR, R; CHRISTIE, I. (ORG).  The Film Factory: Russian and Soviet Cinema In Documents 1896-1939. Ed. Routledge. London and New York, 1994.


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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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