Montezuma, o lampadário de Lisboa

Adelto Gonçalves (*)

I

Com exceção do suplemento Das Artes, Das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, que vem publicando todas as semanas seus artigos póstumos, partiu do Brasil -- mais especificamente de Goiânia, no cerrado do Centro-Oeste -- a primeira homenagem à memória de Joaquim de Montezuma de Carvalho (1928-2008), falecido a 6 de março. E veio em forma de poema, “Joaquim de Montezuma de Carvalho, o lampadário de Lisboa”, de autoria de Gabriel Nascente (1950), que faz parte do livro A poesia de Gabriel Nascente em Portugal, que reúne ainda dois textos do pensador português e um deste articulista sobre a arte do poeta goiano, todos publicados no Primeiro de Janeiro, além de parte da correspondência trocada entre ambos nos últimos

anos.

Embora não tenha conhecido pessoalmente Montezuma de Carvalho, Nascente solidificou sua amizade com o escritor português a partir de uma correspondência epistolográfica assídua nos últimos tempos. Avesso à correspondência digital pela Internet, assim como Nascente, Montezuma, como fazia com a maioria de seus amigos, engordava suas cartas com fotocópias de textos e ilustrações que, geralmente, “descobria” em suas pesquisas no Arquivo Histórico Militar, de Lisboa, em frente à Estação de Santa Apolônia, que fica a escassos 200 metros da Rua dos Remédios, na Alfama, onde morava.

Em junho de 2007, foi com grande entusiasmo que Montezuma recebeu o livro Viagem às criptas de Dante, que traz um longo poema de Nascente, além de apresentar na contracapa um trecho do artigo com que o crítico recebeu o livro anterior do poeta, a antologia Inventário Poético (Goiânia, Editora Alternativa, 2005). “A chispa de Dante tocou este poeta do interior do Brasil”, diz Montezuma logo nas primeiras linhas da recensão que fez ao livro, considerando-o “um poemário de grande poder sugestivo e fruto de um talento recriador”.

O que também chamou a atenção de Montezuma, além da beleza dos versos, foi a referência no Canto Segundo ao lago Bulicame:

(…) É certo, eu me ia; e, me indo,

naquele lago -- o Bulicame, fumegante --

após o Cocito, gelado, um susto tive,

ao ouvir de Farinata, tão agros vaticínios,

de minha volta à luz dos páramos. (...).

Lembrando-se logo de Boliqueime, a terra algarvia do atual presidente da República portuguesa, o professor doutor Aníbal Cavaco Silva, Montezuma deslocou-se ao sempre à mão Arquivo Histórico Militar. Haveria alguma relação entre o Bulicame de Dante e o Boliqueime (ou Boliquême, que assim também se escreveu por algum tempo)? Encontrou uma pista no Dicionário Corográfico de Portugal Continental e Insular, de Américo Costa, v.3, de 1932, ligando bulicame a “olhos d´água”.

Depois, num dicionário da lingua italiana, constatou que bulicàre significa o bulir da água. Logo, concluiu que, se os genoveses, sicilianos e venezianos nos séculos XIII, XIV e XV andavam em contínua faina de pesca de atum e baleia nas costas do Algarve, principalmente em Lagos, Boliqueime foi nome dado pelos italianos à aldeia portuguesa.

Depois, constatou que Nascente buscou inspiração no Canto Décimo Quarto da Divina Comédia, que constitui o sétimo círculo do “Inferno”, onde habitam os homens violentos:

(…) Qual do Bulicame sai um regato cuja água

as meretrizes dividem entre si, tal aquele rio

descia através da areia do terceiro girão. (…).

II

De livro em livro, constatou que Boliqueime e Bulicame são a mesma coisa. E intuiu o que ninguém, ao que se saiba, antes assinalara: a origem italiana (antes da existência da Itália como nação organizada) do povoado algarvio. Foi o que escreveu no ensaio “O Buliqueime de Dante e o de Aníbal Cavaco Silva… e a sombra de Maquiavel”, publicado no suplemento Das Artes, Das Letras O Primeiro de Janeiro, de 25/6/2007, a uma época em que Montezuma já se encontrava mal de saúde, com saídas constantes de casa para fazer exames médicos ou ir ao hospital, como me confidenciou por telefone a 25/7/2007, uma quarta-feira, data de nossa última conversa.

O poemário, porém, tanto o entusiasmara que voltaria ao assunto, com o ensaio “Viagem às Criptas de Dante com Gabriel Nascente, Teixeira de Pascoaes, Murilo Mendes, Ludovico Silva, Fidel Castro, Frei Betto…”, publicado a 10/9/2007, no qual diz que se trata de “um poema a causar calafrios”. Afirma: “Vejo-o como uma condensação superior da Divina Comédia de Dante (1265-1321), o vasto poema sacro a descrever Inferno, Purgatório e Paraíso, os três territórios dogmáticos da religião católica e não só (a pulsar também com os evangelistas das religiões reformadas após Lutero e outros, com os muçulmanos e alguns mais geógrafos do nosso além-morte)”.

E acrescenta: “Ele substantivou o seu denso e agônico poema com a receita proposta por Dante, não a de usarem quaisquer palavras mas só aquelas com o poder musical de reproduzirem as imagens malignas ou benignas do outro-mundo. Gabriel Nascente, decerto sem o saber mas com o talento inato do artista de o saber, seguiu os passos de Dante no Canto XXXII do Inferno, a indicarem a necessidade de se encontrarem rimas ásperas e roncas como símile das realidades”.

Transcreve-se aqui estes rasgados elogios não só para dar a dimensão da importância do trabalho poético de Gabriel Nascente -- nem sempre reconhecido no eixo intelectual de Rio de Janeiro e São Paulo -- como para oferecer ao leitor, que não teve ainda a oportunidade de conhecer um pouco da obra de Montezuma, uma amostra de seu estilo barroco, que muito faz lembrar o do padre Antônio Vieira (1608-1697), na mesma explosão de idéias e imagens que só mesmo aqueles autores extremamente eruditos são capazes de produzir.

III

Montezuma de Carvalho nasceu na freguesia de Almedina, em Coimbra, em cuja Faculdade Direito se licenciou. Filho do filósofo Joaquim de Carvalho (1892-1958), com o diploma debaixo do braço, mudou-se para Angola e Moçambique onde exerceu funções nos registros e na magistratura (Nova Lisboa, Inhambane e Lourenço Marques) até 1976, quando retornou a Portugal para exercer a advocacia em Lisboa.

Em 1951, ainda estudante, tomou a iniciativa de homenagear o poeta Teixeira de Pascoaes (1877-1952), publicando o livro coletivo A Teixeira de Pascoaes, a exemplo do que fez recentemente em relação a Eugénio de Andrade (1923-2005), com textos de autores que convidou para a tarefa. Os textos também foram publicados no suplemento Das Artes, Das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro e, depois, transformados no livro A Jeito de Homenagem a Eugénio de Andrade (Porto, Fólio Edições, 2004).

Em 1957, lançou em Angola Epistolário Ibérico: Cartas de Pascoaes e Unamuno. Em 1958, organizou os livros Joaquim de Carvalho no Brasil e Miscelânea de Estudos a Joaquim de Carvalho. Fundou, ainda, na Figueira da Foz, a Biblioteca-Museu Joaquim de Carvalho e a Sala Joaquim de Carvalho, esta última ligada à Biblioteca Municipal.

De 1958 a 1965, financiado pelo município de Nova Lisboa, Angola, organizou e publicou os quatro tomos do Panorama das Literaturas das Américas, de 1900 à Actualidade, obra até hoje sem equivalente na sua dimensão global e na qualidade de seus colaboradores diretos. Em 1965, apresentou os escritores luso-brasileiros nascidos no século XX na obra francesa Ecrivains Contemporaine (Paris, Ed. Mazenod). Em 1963, fez parte do júri internacional que atribuiu ao mexicano Octavio Paz o Grande Prix de Poésie, prêmio belga.

No Brasil, colaborou especialmente nos diários O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e A Tribuna, de Santos. Colaborou ainda em numerosas revistas do Brasil e da Argentina. Sua última colaboração saiu na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, nº 53, out.-dez.2007, pp.169-179, o artigo “Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição”, que, provavelmente, não chegou a ver, já que só nos últimos dias a instituição distribuiu para seus colaboradores os seus três últimos números.

Publicou e organizou numerosos livros, entre os quais Sor Juana Inês de la Cruz e o Padre Antônio Vieira (1998) e Cervantes em Portugal (2005). Em 2004, a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra deu à estampa Drummond e os portugueses -- Drummon (D) Tezuma: correspondências entre Carlos Drummond de Andrade e Joaquim de Montezuma de Carvalho, organizado por Maria Aparecida Ribeiro e Eliane Vasconcelos.

IV

Diante dos elogios de Montezuma a Gabriel Nascente, está claro que nada mais é necessário acrescentar aos dois livros aqui resenhados. Por isso, melhor aproveitar o espaço com a reprodução de um trecho do poema de nove cantos “Joaquim de Montezuma de Carvalho, o lampadário de Lisboa” que Nascente fez em homenagem póstuma ao pensador português:

(…)Ó grande Montezuma de Carvalho, o maquinista

das grandes expressões neo-revolucionárias -- a guiares

o trem de textos pelas vagas do louco tempo:

uí, uíí, uííí… A bordo desse périplo, vultos

imortais viajam, em elos de amizade terreal --

Borges, Bandeira, Paz, Drummond, Cortázar, Gabito,

e outros íncolas da eternidade.

Tu não és ficção, nem metáfora lorquiana (que se

sangra entre touradas, pelas cáveas da lua).

És Pã, zagal dos vocábulos.

A palavra é o teu bordão. Ó alvenel de frases,

que engendras livros aos sopros da grei

Camoniana dos Garret , dos Junqueira, dos

Queiroz, dos Pessoa, dos Andrade e dos Quental.

Enfezado, tufão, cospes

Suavidades impressionistas. (…)

(…) Ah, Portugal, ufanas-te deste luso-coimbrão-letrado

Que arranca o sol das estalactites da alma. (…).

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A POESIA DE GABRIEL NASCENTE EM PORTUGAL (ensaios críticos ), de Joaquim de Montezuma de Carvalho. Goiânia, Editora Kelps, 112

págs., 2008.

VIAGEM ÀS CRIPTAS DE DANTE (poema), de Gabriel Nascente. Goiânia: Editora Kelps, 56 págs., 2007.

E-mail: [email protected]

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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