Brasil-África: aproximações

 Adelto Gonçalves (*)

No Brasil colônia muitas línguas indígenas eram faladas, ao lado do idioma português, mas quantas línguas africanas foram igualmente faladas? É um mistério que continua a desafiar os pesquisadores, pois, a rigor, nada ainda se sabe, não só porque faltam documentos lingüísticos como os papéis oficiais relativos ao tráfico que repousam especialmente no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, acrescentam pouco nesse assunto.

Até porque havia uma preocupação daqueles que comandavam as rotas do tráfico em confundir as origens dos diversos grupos africanos que eram encaminhados ao Brasil.

Desvendar esse mistério e, ao mesmo tempo, destruir os muitos equívocos que se foram acumulando na historiografia recente tem sido a preocupação de Yeda Pessoa de Castro, doutora em Línguas Africanas, a única em sua especialidade no Brasil, professora na Universidade do Estado da Bahia, que já lecionou em universidades da Nigéria e do Caribe, e autora de um livro que já se tornou um clássico na matéria, Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001).

Parte desse livro vem, agora, reproduzida como um ensaio autônomo em Brasil-Africa: como se o mar fosse mentira, de Rita Chaves, Carmen Secco e Tania Macêdo (organizadoras). Nesse ensaio, “Redescobrindo as línguas africanas”, a autora observa que, antes de tudo, está na hora de se admitir que o africano adquiriu o português como segunda língua no Brasil e foi o principal responsável pela difusão da língua portuguesa em território brasileiro.

E, mais importante, é fundamental identificar quais foram esses africanos e em que medida contribuíram para solidificar a vitória da “unidade” da língua portuguesa no Brasil por meio das diferenças que afastaram o português do Brasil do português de Portugal.

E aqui Yeda Pessoa de Castro avança contra um equívoco histórico que se tem perpetuado em livros e até num filme de Cacá Diegues da década de 1980: o de atribuir aos moradores do quilombo de Palmares, destruído ao final do século XVII na capitania de Pernambuco por “aventureiros paulistas”, a fala ioruba, numa época em que não há registro de seus falantes no Brasil. Para a estudiosa, teriam sido bantos as línguas faladas em Palmares.

O que mais intriga, porém, como lembra Yeda Pessoa de Castro, é que, se o Brasil possui a maior população de descendência negra fora do continente africano, por que não existe hoje um crioulo brasileiro como segunda língua ou como língua nacional, semelhante às que emergiram em outras ex-colônias americanas, como o Curaçao, ou mesmo em Cabo Verde? Uma hipótese que a autora aventa é a proximidade do sistema lingüístico das línguas banto e kwa com o português brasileiro, o que teria permitido a continuidade do tipo prosódico de base vocálica do português arcaico na modalidade brasileira, afastando-o, portanto, da pronúncia atual, muito consonantal, do português europeu.

Em outras palavras: o português do Brasil, diz a autora, naquilo em que ele se afastou, na fonologia, do português de Portugal é, a priori, o resultado de um compromisso entre duas forças dinamicamente opostas e complementares, ou seja, por um lado uma imantação dos sistemas fônicos africanos em direção ao sistema do português e, em sentido inverso, um movimento do português em direção aos sistemas fônicos africanos, sobre uma matriz indígena preexistente e mais localizada no Brasil.

Outro ensaio que se destaca no livro é o de Marcelo Bittencourt, “As relações Angola-Brasil: referências e contatos”, em que o autor, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e professor de História da África na mesma instituição, deixa de lado o tráfico de escravos, tão estudado nos últimos tempos – o que não significa que não haja mais o que estudar; pelo contrário –, para apontar outros momentos na História em que se estabeleceram contatos ou referências entre essas duas margens do Atlântico. Uma dessas conexões Bittencourt aponta para o discurso luso-tropicalista do antropólogo pernambucano Gilberto Freyre, utilizado pelo salazarismo para desestabilizar a movimentação de pequenos grupos urbanos com pretensões anticoloniais, especialmente em Angola.

Diz o ensaísta que, em fins da década de 1940, em Angola, com o crescimento da produção de café, surgiram muitas oportunidades de crescimento, que seriam aproveitadas por colonos brancos, oriundos da metrópole, de baixa escolaridade, o que numa pretensa política “multirracial” defendida pelo salazarismo aproximaria as possibilidades entre brancos, negros e mestiços.

Em 1950, diz o autor, quase a metade dos brancos em Angola nunca freqüentara a escola e menos de 17% tinham ido além da quarta classe, mas, mesmo assim, as oportunidades de trabalho “teimavam” em não aparecer para negros e mestiços, impedindo o nascimento de uma burguesia negra ou mestiça, ou seja, apressando a derrocada do colonialismo que se daria na década de 1970.

Entre os novos caminhos da história comum entre os dois países, o ensaísta ressalta o atual boom na produção de trabalhos acadêmicos sobre temas africanos no Brasil, com a abertura de disciplinas ligadas à temática africana nos departamentos de História e Ciências Sociais, além da descoberta do Brasil comoalternativa acadêmica por muitos estudantes africanos, especialmente angolanos. Este articulista, por exemplo, orienta atualmente um trabalho de conclusão de curso na área de Jornalismo do Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), de Santos-SP, em que as alunas Vera Oscar, Carolina Ferreira e Elys Santiago procuram fazer um levantamento da inserção de jornalistas negras nos meios de comunicação do Estado de São Paulo, o que, ao que se saiba, é uma pesquisa inédita.

No ensaio “História, estrutura social de privilégios e ações afirmativas no Brasil”, Edson Borges, mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo e professor do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, defende medidas mais incisivas – educacionais, saúde, econômicas, distributivas, políticas, jurídicas e sociais – que possam produzir resultados a curto e médio prazo, beneficiando a sociedade como um todo, em vez da importação de modelos de ações afirmativas de contextos históricos diferentes como os Estados Unidos e África do Sul, já que a mestiçagem tornou praticamente impossível qualquer tentativa de classificação racial.

O autor destaca a iniciativa em 2003 do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de tornar obrigatória nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, cujo conteúdo programático inclui o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional.

Em resumo, Brasil/África: como se o mar fosse mentira reúne ainda, na primeira parte, dois textos curtos do embaixador Alberto da Costa e Silva e do compositor Martinho da Vila sobre a memória musical e a presença africana na música brasileira. Na segunda parte, encontram-se os artigos de caráter ensaístico, dos quais destacamos aqui três, em que estudiosos de várias áreas oferecem novos pontos de vista para o diálogo Brasil-Africa. Na terceira parte, a literatura surge de forma mais direta, com os poetas que têm na cultura africana a referência para os seus trabalhos.

Todos esses trabalhos mostram que vivemos, portanto, um momento de amplas possibilidades de intercâmbio entre o Brasil e os países africanos de expressão portuguesa – e não apenas comerciais –, como exemplo é este próprio livro, um lançamento conjunto da Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e das Edições Chá de Caxinde, de Luanda, com o apoio da Odebrecht Angola, Lda., ramo angolano de uma empresa brasileira presente há largos anos na África.

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BRASIL/ÁFRICA: COMO SE O MAR FOSSE MENTIRA, de Rita Chaves, Carmen Secco e Tania Macêdo (organizadoras). São Paulo: Editora da Universidade Paulista (Unesp). Luanda: Edições Chá de Caxinde. 453 págs., 2006, R$ 55,00. E-mail: [email protected]

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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