A RÚSSIA PREFERIRIA UMA EUROPA COM CONSTITUIÇÃO

O presidente francês fez uma aposta demasiado arriscada na Constituição europeia e a sua derrota coloca em dúvida o futuro do seu gabinete de centro-direita. Se Jacques Chirac vir a demitir-se, o presidente Vladimir Putin perderá um importante aliado na Velha Europa, um político cuja visão do papel do continente europeu no equilíbrio global é muito próxima da sua.

O Kremlin não deixou a prestar atenção a um importante pormenor que, de uma maneira ou de outra, esteve sempre presente em todas as intervenções de Jacques Chirac dedicadas à explicação das vantagens políticas da adopção da Constituição europeia. Na opinião do presidente francês, a Europa precisa de uma Lei Fundamental para fortalecer a União Europeia e, desta forma, defender os interesses do continente face ao poderio dos EUA. De facto, uma Europa mais integrada, com uma Constituição como denominador comum, poderá vir a ser muito mais receptiva às ideias da França, da Alemanha e da Espanha. O sentido desta nova aliança é recuperar o equilíbrio global de forças, que actualmente pende para o lado da América.

Em Março último os líderes destes quatro países reuniram-se em Paris para discutir, nomeadamente, o comportamento dos EUA na arena internacional. Na cimeira foi constatado que as críticas destes países à guerra no Iraque obtiveram nos últimos meses totais provas da sua justeza. Não obstante toda a publicidade ao "êxito" das eleições iraquianas, os EUA atolaram-se completamente neste país, sendo a retirada dos 150 mil militares americanos adiada por tempo indeterminado.

O cada vez menor brilho da "hiperpotência" (como na altura a América foi designada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Hubert Vedrine) parece estar a alterar o carácter da parceria entre a Europa e os EUA. Deixa de ser uma parceria atlântica universal, transformando-se numa parceria selectiva, quando os interesses das duas partes cada vez coincidem menos. Assim, os americanos não vêm com bons olhos os planos de criação de um sistema de defesa europeu fora da NATO, a ratificação por muitos países da Europa, incluindo a Rússia, do Protocolo de Quioto, bem como a reacção das capitais europeias às tentativas dos EUA de pôr em causa a autoridade do Tribunal Penal Internacional.

Como resultado, a ideia de Paris, Berlim e Moscovo sobre a criação de um contrapeso construtivo à orgulhosa linha política externa dos EUA, ideia para a qual Madrid está igualmente a ser atraída, ganha realidade pouco a pouco. A adopção da Constituição europeia poderia tornar esta ideia popular em todo o continente europeu, que se tornaria assim mais independente, menos vulnerável à influência norte-americana na política mundial.

Não devemos confundir este contrapeso com o anti-americanismo. Tal como qualquer democracia funciona melhor quando existe uma oposição saudável, assim também os EUA poderão sem dúvida retirar bastantes vantagens deste centro mundial de força alternativa (se ele de facto vier a formar-se) para a harmonização da sua política externa.

Penso que a Constituição poderia também de certa forma limitar o "entusiasmo" de alguns novos países-membros da UE em servir religiosamente os interesses americanos.

Assim, a Polónia, que já é chamada "cavalo de Tróia" dos americanos na Europa, talvez pensasse melhor antes de adquirir 48 caças-bombardeiros "F-16" por 3,5 mil milhões de dólares. Se Varsóvia pede ajuda militar aos americanos, para que procura então a assistência económica da UE? Se a Constituição europeia estivesse em vigor, esta questão poderia vir a colocar-se e a Polónia teria que responder a tais acusações.

Recordemos ainda uma outra circunstância: nos últimos meses a Polónia e os novos Estados-membros permitiram-se diversas "demarches" contra a Rússia. Estas acções, por mais diferentes que sejam, podem ser caracterizadas como "síndroma de irmão mais novo". Tendo-se libertado do controlo do "irmão mais velho" (a URSS), estes países não conseguiram até agora libertar-se do complexo de ressentimento histórico, característico daqueles anos. Os novos países-membros da Europa unida são movidos pelo desejo de acertar contas com a Rússia por todas as injustiças que foram obrigados a passar nos tempos soviéticos.

Ao mesmo tempo, a Velha Europa compreende que a alternativa anti-russa proposta pelos radicais pós-comunistas não é vantajosa para a própria União Europeia. Sem uma Rússia forte e influente ao lado, a Europa continua a ser uma ilha num oceano de instabilidade. Por isso, os novos acordos de "quatro espaços comuns" (economia, segurança interna e externa, ciência e cultura), assinados a 10 de Maio último em Moscovo, visam precisamente esta nova qualidade da interacção entre a Rússia e a Europa dos 25.

A Velha Europa e os novos países-membros divergem significativamente quanto à compreensão da importância e do papel da Rússia no continente europeu. Esta contradição causa menos danos à Rússia do que aos novos Estados-membros. Eles não conseguem encontrar o seu lugar na política europeia e tentam reforçar as suas posições com a ajuda dos EUA.

O tratado constitucional da Europa Unida, se vier a ser ratificado por todos os 25 países da União Europeia, poderia tornar mais fortes as posições daquelas forças europeias realistas que são a favor da parceria com a Rússia.

Vladimir Simonov observador político RIA "Novosti"

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