Crises ou Processo?

“Herdou um governo marcado por um bonapartismo político, um neoliberalismo econômico subordinado e uma corrupção compulsiva, que penetrava todos os poros da sociedade política. Herdou um acentuado processo de desindustrialização, uma recessão intensificada e uma privatização dilapidadora do capital produtivo estatal. (...) Desde o início, o Governo (...) foi marcado por uma dualidade que tem pautado sua atuação como traço distintivo de seu governo: sua aceitação e assimilação pelos interesses da ‘ordem’* só seria possível se abraçasse o ‘projeto de modernização’ da fase anterior.

(...) praticou, (...), aquela ambigüidade que o caracterizou desde o início de seu governo: quanto mais fala no ‘social’, na miséria e sofrimento de milhões de compatriotas, conforme a peça final do discurso em que anunciou seu plano econômico, mais implementa um projeto com traços de continuidade do projeto anterior: critica a fome e concede mais de um bilhão de dólares aos usineiros; fala em um projeto autônomo e independente, mas dá continuidade às privatizações escandalosas (...) em vez de um imposto para o capital financeiro, tributa o assalariado que recebe pelos bancos.

Propaga um ‘reformismo social’ para os assalariados, que se exaure no plano meramente discursivo e realiza, de fato, um programa ‘modernizador’ para os proprietários do capital, quando se analisa a concretude de sua política econômica. Na sua primeira variante, reencontra-se, no plano simbólico, com o seu passado, na segunda, que é a essencial, insere-se no universo e no fluxo dos interesses dominantes. E assim vai levando seu governo. (...) propõe crescimento da economia — como se ela fosse o antídoto essencial contra a miséria — mas intensifica a privatização;

Fala de combate à fome através de um assistencialismo estatal minguado, mas nem longinquamente toca no padrão de acumulação que gera uma sociabilidade atravessada pela pauperização absoluta. Nada sobre uma reorganização do sistema de produção e consumo, para começar a erradicar na raiz a miséria, nada sobre a implementação de uma política salarial que coibisse a superexploração daqueles assalariados que estão empregados; nada sobre transformações estruturais no mundo agrário; nada sobre tributação efetiva sobre os ganhos de capital; nada sobre uma mudança de curso, com um mínimo de ousadia, na questão da dívida externa; nada sobre a preservação e o fortalecimento do capital produtivo estatal, imprescindível para que um país de terceiro mundo industrializado e intermediário, como o nosso, não desapareça de vez do mapa econômico.

(...) Numa contextualidade marcada por agudas e profundas mudanças tecnológicas e produtivas, que reconfiguram agudamente a divisão internacional do trabalho, não se encontra nada sobre os contornos básicos de um projeto econômico alternativo que não aceite uma globalização imposta pela lógica do capital forâneo, integradora para fora e desintegradora para dentro. Falar seriamente em transformar estruturalmente o país sem contemplar em alguma dimensão estas questões é puro exercício de retórica, eivada de sentido manipulatório.”

Bonito texto, não? Mais interessante seria, creio eu, atentar para a data dele. Este texto foi escrito em 1993 por Ricardo Antunes, professor de Sociologia da Unicamp, e fala sobre o governo Itamar. Qualquer semelhança com um certo governo PTista atual pode não ser mera coincidência. Aliás, aceitar que tantos fatores possam co-incidir, que possam incidir da mesmíssima forma e simultaneamente sobre o mesmo espaço — o território brasileiro —, seria mais do que ingenuidade. Quando se reconhece que existe um determinado padrão de atuação nas decisões governamentais que revestem a nossa história política recente — principalmente em se tratando da (des)política econômica que vem se arrastando desde o (des)governo Collor — é hora de atentar não para os períodos de ‘crises’ que são alardeados pela grande mídia (principalmente a Global fetichizada, videofinanceira e cooptada por intere$$es externos), mas sim para um processo que vem se desenrolando ao longo de um período que começa com o primeiro Fernando, o Loco.

O governo Lula têm sido não apenas, como alardeiam alguns profetas do Apocalipse político brasileiro, o governo marcado pela continuidade do programa de integração do Brasil ao novo (e eternamente novo, pois novas formas de exploração dos mais fracos pelos mais fortes sempre poderão ser criadas, descobertas ou re-descobertas) sistema mundial do capitalismo, sistema que é autofágico (autodestrutivo) por natureza, mas muito mais importante do que isso, há uma outra faceta que não me parece estar sendo devidamente observada:

Para a opinião pública o que vem sendo sinalizado, nesses últimos dois anos em que Palloci e Dirceu governam e Lula posa de Rainha Mãe soltando gafes a torto e a direito, ‘rebaixando’ — como perfeitamente colocado por Frederico Füllgraf na Caros Amigos de outubro desse ano — ‘o ministério a time de várzea e nomeando um ‘capitão’ (“não tenho tempo de ficar me reunindo com cada ministro”)’, é que a eleição de um representante de esquerda está se provando pior do que a eleição de um representante da direita, FHC, com seus tucanos a tira-colo e lambendo as botas do ACM e da cambada do PFL.

Pode-se considerar que Lula esteja sendo pior do que FHC assim como este foi pior do que Itamar que por sua vez nada mais fez do que continuar a pasmaceira que havia sido implementada por Collor, como mostra o texto acima. Não é a figura, pessoal, de cada um dos ‘ex’ ou do atual presidente que é “pior” do que outra, na verdade eles são apenas fantoches, imagens que precisam ocupar um cargo, até que um determinado processo pelo qual o Brasil está passando esteja de acordo com os desígnios do grande capital (coisa que nunca vai acontecer). A rejeição de Lula se confunde, na opinião pública, com uma rejeição à esquerda, com uma campanha de descrédito das esquerdas em geral — porque é muito mais fácil pensar em bloco do que realmente raciocinar e discriminar as diversas formas de manifestações que tanto a ‘esquerda’ quanto a ‘direita’ possam manifestar — que, enfim, leva a um crescimento sem precedentes da direita. Essa fórmula é conhecida, é a melhor maneira de calcular o avanço sem precedentes que terá a direita no Brasil já a partir deste ano e que nem de longe se mostrará ainda como será daqui a dois anos.

Lula e seu (des)governo estão abrindo caminho para a eleição de algum monstro, alguma cria de oligarquia ou parente do Reichstuhl. Se para ministros da fazenda e economia podemos, sem a menor cerimônia, colocar crias do FMI, de George Soros ou do Banco Mundial, não vejo porquê, na insânia política kamikaze dos trópicos, não podemos daqui a dois anos eleger um Armínio Fraga, um Pedro Malan ou monstro que o valha para a presidência. Já colocamos um ex-ministro da economia na presidência uma vez, vimos no que deu e, tanto não aprendemos que, apesar de todos os seus crimes, ele permanece solto e goza de algum prestígio.

Dessa forma, a menos que uma grande reviravolta — que exige colhões que até agora não vi no mundo político brasileiro — tenha início, daqui a onze anos algum estudante de sociologia vai ler este meu texto, cortar alguns nomes, como eu fiz com o texto acima, e reeditar num jornal ou revista eletrônica, se até lá não arranjarem formas de nos barrarem por aqui pelo virtual também. Mostrando que não é o tempo que se repete, Deleuze, lendo Nietzsche, já nos mostrou que só existe o ‘eterno retorno da diferença’, mas por isso mesmo é necessário abrir os olhos para o fato de estarmos diante de um processo, um processo de sucateamento do capital estatal, de crescimento do desemprego estrutural, de desestabilização e ‘abertura’ da economia — que começou com o papo furado do aventureiro de Alagoas sobre uma tal ‘flexibilização’, lembram do termo da moda na época? — e que o governo Lula não teve e, pelo visto não terá os colhões necessários para bater de frente. * As aspas são minhas.

Renato Kress é escritor, co-editor da revista Consciência.Net e estudante de sociologia no Rio de Janeiro. Lançou em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência, que começara a escrever dois anos antes. Contato: [email protected]

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