Cimeira de Paris

A "troika" europeia constituída pela França, Alemanha e Rússia à qual o mundo já se habituou transforma-se em "quarteto". O Presidente Jacques Chirac convidou para a cimeira a ser realizada a 18 de Março em Paris não só o chanceler Gerhard Schroeder e o Presidente Vladimir Putin, mas também o chefe do Governo da Espanha, José Rodrigues Zapatero.

Nos últimos anos a "troika" tinha-se reunido ao som das explosões no Iraque, como um grupo de correligionários que condenavam a guerra e estavam preocupados com o desprezo manifestado pelos EUA pelas normas do direito internacional. Sob este ponto de vista a actual participação da Espanha no encontro de Paris afigura-se plenamente lógica. A chegada ao poder do novo governo socialista mudou bruscamente a atitude de Madrid para com a campanha iraquiana, fazendo voltar a casa o contingente militar espanhol no Iraque e abrindo a porta do clube da "troika" europeia ao primeiro-ministro Zapatero.

Há quem esteja inclinado a considerar este clube como antiamericano. Creio que seria mais exacto falar sobre o desejo dos seus participantes de restabelecer o equilíbrio mundial violado pelo emprego egoísta do poder militar por parte dos Estados Unidos. A doutrina messiânica de George Bush inquieta a Velha Europa, que não estaria contra de se unir à Rússia em busca do contrapeso político capaz de suster as ambições globais dos EUA. Em qualquer dos casos, é evidente que a actual cimeira quadripartida decorrerá numa atmosfera visivelmente diferente do que as anteriores. Em Paris encontrar-se-ão os líderes cujas críticas à guerra iraquiana e, num sentido mais amplo, ao comportamento dos EUA na arena mundial se revelaram plenamente justas no decurso dos acontecimentos dos últimos meses. Apesar do "êxito" amplamente propagandeado das eleições no Iraque, os EUA atolaram-se profundamente neste país e já não se vislumbra qualquer possibilidade da retirada dos 150 mil militares americanos deste país.

Nenhum dos quatro líderes, inclusive Putin, pode imaginar que nestas condições George Bush se atreva a gastar o seu segundo mandato com mais uma aventura militar. As suas ameaças à Síria e ao Irão são uma coisa e a possibilidade real de enviar tropas para estes países é outra bem diferente.

Esta erosão visível do estatuto da "hiperpotência" - foi assim que o ministro francês dos Negócios Estrangeiros Hubert Védrine chamou há tempos aos Estados Unidos - parece mudar hoje o carácter da parceria entre a Europa e os EUA. Ela transforma-se cada vez mais numa parceria selectiva, em que os interesses das partes nem sempre coincidem. Assim, não obstante a enérgica oposição de Washington, a União Europeia tenciona levantar o embargo ao fornecimento de material bélico à China introduzido há 15 anos dos acontecimentos na Praça da Paz Celestial em Pequim. Também não suscitam especial alegria aos EUA os planos de criação de um sistema de defesa europeia independente da NATO, a ratificação do Protocolo de Kyoto por muitos países da Europa, inclusive pela Rússia, bem como a resistência das capitais europeias às tentativas de Washington de minimizar a autoridade do Tribunal Penal Internacional.

Em consequência, adquire gradualmente consistência a ideia de Paris, Berlim e Moscovo, para a qual é atraída hoje também Madrid, de criar um contrapeso construtivo à política externa dos EUA.

No entanto, não devemos confundir este contrapeso com o antiamericanismo. Tal como qualquer democracia funciona melhor quando há oposição, também para a harmonização da política externa dos Estados Unidos poderá ser muito útil o carácter alternativo dos centros mundiais de força se estes últimos adquirirem contornos mais nítidos.

A agenda do encontro de trabalho quadripartido em Paris é bastante ampla e será determinada em muito pela improvisação dos seus participantes. Por enquanto só se sabe que entre os possíveis temas da cimeira constam o papel da ONU no mundo contemporâneo, a regularização política no Iraque e no Médio Oriente, bem como a situação em torno dos programas nucleares do Irão e da Coreia do Norte. Por seu lado, Vladimir Putin tenciona discutir as questões da ampliação das relações da Rússia com a União Europeia e, depois da conclusão da cimeira, efectuar conversações bilaterais com Jacques Chirac. No debate entre os quatro líderes sobre o problema do Iraque estará invisivelmente presente o primeiro-ministro da Itália. Ao anunciar nas vésperas do encontro a sua intenção de iniciar em Setembro próximo a retirada de 3 mil soldados italianos do Iraque, Silvio Berlusconi voltou a confirmar a ideia que passa pela cabeça de um crescente número de membros da coligação americano-britânica, ou seja, o preço doméstico da lealdade aos Estados Unidos na campanha iraquiana torna-se insuportavelmente elevado. Anteriormente já se haviam recusado a pagá-lo a Espanha, a Holanda, a Polónia, a Ucrânia e mais alguns países que começaram a retirar os seus contingentes ou declararam a respectiva intenção.

A decisão tomada por Berlusconi com vista às eleições parlamentares de 2006 desfere um golpe sobre os esforços da administração de Bush de internacionalizar a responsabilidade pelos resultados da campanha iraquiana. Ela volta a testemunhar que na Grande Europa se intensificam os ânimos de independência, para não dizer de crescente oposição a Washington. Os EUA compreendem perfeitamente de onde sopra o vento. Os participantes da cimeira quadripartida em Paris deter-se-ão evidentemente com satisfação no significativo acontecimento dos últimos dias, isto é, no facto de os EUA terem dado uma volta de 180 graus na questão do programa nuclear do Irão. Ao longo de muitos meses Moscovo, Paris e Berlim insistiram na solução puramente diplomática do problema, enquanto os EUA continuaram a ameaçar o Irão de seguir o destino do Iraque. No entanto, depois da recente viagem do Presidente George Bush pelos países europeus Washington declarou ter mudado acentuadamente a sua posição. Com uma generosidade inesperada, os EUA propuseram ao Irão vantagens económicas em troca da renúncia à criação de armas nucleares, que o Irão supostamente estaria a efectuar. Entre estas vantagens há até um verdadeiro presente, isto é, a promessa de não se opor à entrada do Irão na Organização Mundial do Comércio, embora os EUA tivessem resistido a isso durante toda uma década.

A secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, acentuou que Washington "deseja apoiar os europeus e não recompensar os iranianos". Na realidade, a posição unânime dos europeus, inclusive da Rússia, obrigou Washington a trocar nas relações com o Irão o "chicote" pelo "pão doce". Gostaríamos de ver neste facto um bom prenúncio. A equipa de Bush responsável pela política externa e dirigida por Rice parece começar a dar-se conta da necessidade de actuar, nas situações críticas, em uníssono com a Grande Europa, inclusive com a Rússia. Estas regras de jogo são impostas pelo mundo verdadeiramente novo que surgiu depois da guerra do Iraque, pouco auspiciosa para os EUA.

O Presidente Vladimir Putin juntar-se-á aos três altos interlocutores, inclusivamente para discutir o estado das relações da Rússia com a União Europeia. De um modo geral, estas relações têm grandes perspectivas. As partes declaram estar dispostas a desenvolver os quatro assim chamados "espaços comuns", ou seja, na esfera da economia, da segurança interna e externa e nas áreas da ciência e cultura. No entanto, os acontecimentos na Geórgia, Ucrânia e Moldávia manifestaram algo diferente, ou seja, a tendência dos funcionários europeus de apoiar as forças políticas no espaço pós-soviético em função do grau em que estes se distanciam da Rússia. Na realidade, a burocracia de Bruxelas coloca perante Tbilissi, Kiev e Chisinau um falso dilema: ou vocês estão com o Ocidente (têm-se em vista a UE e a NATO) ou com a Rússia.

Esta atitude não convém notoriamente a Vladimir Putin. Parece que ela satisfaz pouco também a França, a Alemanha e outros países da Velha Europa, à qual não agradam os ânimos russófobos trazidos para União Europeia alargada pelos novos membros como a Polónia e os países do Báltico. A cimeira de Paris mostrará em que grau a Velha Europa é capaz de assumir o papel de "pára-raios" contra estes ânimos anti-russos.

No ano do 60.º aniversário da Vitória dos exércitos aliados sobre o inimigo nazista, as tentativas da burocracia de Bruxelas e dos novos membros radicais da UE de criar novas linhas divisórias no Continente Europeu parecem não só arcaicas mas também sacrílegas.

Vladimir Simonov observador político RIA "Novosti"

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