CHEGOU A ALTURA DE VOLTAR A OUVIR A VOZ DE SOLJENITSINE

Poder-se-ia afirmar que este profeta russo caiu no esquecimento total, se não fossem os resultados das recentes eleições parlamentares na Rússia, decorridas em 7 de Dezembro. O resultado do escrutínio revelou que todas as ideias que o escritor formulou nos últimos anos e que têm sido rejeitadas a pés juntos pela opinião pública liberal da América, Europa e até da Rússia, ou seja, aquilo que parecia tão inconveniente para estes meios políticos, foi recebido de braços abertos pelos eleitores russos. Pode-se afirmar ainda que o povo votou a favor das ideias de Soljenitsine. Será que chegou uma época em que é necessário voltar a dar ouvidos a este homem corajoso?

No século XX, houve apenas três pensadores que sugeriram projectos globais do papel da Rússia na civilização mundial.

O místico Nikolai Fiodorov apresentou uma concepção de "insurreição dos pais falecidos", entendendo que só objectivos de grandeza sem precedentes devem constituir os alicerces do progresso estável da Rússia. O seu projecto, que visa aprender a gerir os átomos e a centrar todos os esforços da sociedade no projecto de transformação das pessoas em seres imortais, pareceu demasiadamente exótico e utópico para conquistar as pessoas.

A segunda concepção global, ou seja, sobre a mudança radical do regime social, foi apresentada, ou melhor dizendo, foi transferida para o solo russo por Vladimir Lénine. Os comunistas guiados por esta ideia chegaram ao poder na Rússia em 1917. Ao longo de muitas décadas, esta teoria foi considerada como a única correcta até ter chegado um momento em que o carácter utópico do comunismo se tornou evidente para todos. A desintegração da União Soviética foi disto mais uma prova convincente.

O escritor Aleksandr Soljenitsine foi o terceiro filósofo que se atreveu a apresentar mais um projecto deste género, tendo exposto as suas ideias no livro "Como É Melhor Para Nós Organizar a Rússia". O livro foi publicado na Rússia em 1990, ainda durante o regime comunista, poucos anos antes do regresso de Soljenitsine da emigração na América. Apesar de ter sido lançado com tiragens de vários milhões de exemplares, o livro passou quase despercebido entre o público russo. Os críticos rotularam o escritor de diletante ingénuo, que só sabe arranjar soluções fáceis para um conjunto de problemas complicadíssimos, cada um dos quais parece não ter solução.

No entanto, os treze anos decorridos desde a publicação do livro confirmaram a justiça de muitos dos postulados de Soljenitsine.

Lamentavelmente, a situação na Rússia continua a ser extremamente difícil. A crise económica continua por ultrapassar, vegetando milhões de pessoas numa autêntica miséria. Muitas famílias desintegraram-se, provocando uma redução terrível da taxa de natalidade. Por outro lado, aumentou o número de crianças desamparadas. A Rússia ainda está a correr um grande risco de desintegração, o que significará o fim da sua história como país.

Na visão de Soljenitsine, a verdade está na superfície. A moral dos russos baseia-se numa ideia nacional sobre a justiça social, constituindo esta concepção os alicerces do equilíbrio da Nação. No momento em que os russos se sentem enganados e abandonados à mercê do destino, começam a entrar numa depressão muito profunda, deixando de participar totalmente na vida social. Neste momento, as pessoas decidem aplicar todos os seus esforços para tentarem sobreviver sozinhos.

Daí torna-se evidente que o culto dos bens materiais e a exploração civilizada do homem pelo homem são inaceitáveis para a Nação russa. O capitalismo à ocidental não é aplicável no terreno nacional. Uma sociedade em que só os mais fortes conseguem sobreviver e onde as pessoas se transformam em matéria-prima para um "consumo cultural mútuo" não tem futuro na Rússia. Isto quer dizer que as bases da civilização ocidental, que assentam num acordo colectivo sobre a democracia sensata e que demonstraram a sua alta eficiência no Ocidente, na Rússia só podem originar problemas sociais. Segundo Soljenitsine, a competitividade entre as pessoas é prejudicial para a sociedade, que passa a ser dominada por "máquinas biológicas" e em que as pessoas se transformam em abutres e presas. Esta situação só leva à autodestruição imanente da Nação.

Neste contexto há que lançar palavras de ordem simples e claras que possam ser aceites pela maioria da população, por exemplo, o retorno de todos os russos, residentes nas antigas repúblicas soviéticas, para a sua pátria natural, ou, ainda, a ideia sobre a hipótese de conceder crédito com taxas de juro baixas, porque as pessoas e a Nação, de um modo geral, devem estar acima do dinheiro. O lucro em geral não pode ser o ideal nacional em nenhuma parte do mundo, afirma o escritor.

A democracia, na forma como é concebida hoje pelos adeptos das concepções liberais, é nociva para a Rússia, escreve Soljenitsine. Mais ainda: não é apenas nociva, como também é perigosa. É muito perigoso aplicar os princípios democráticos a todas estruturas de Estado. Se tal acontecer, o Estado perderá inevitavelmente a sua capacidade de administrar, sendo insignificantes os benefícios desta deriva.

Nos princípios dos anos noventa, estas ideias de Soljenitsine eram uma espécie de voz a clamar no deserto. Os liberais russos começaram as reformas económicas radicais, que deixaram totalmente perplexos e desnorteados milhões de pessoas.

A derrota dos partidos de direita "Yabloko" e União das Forças de Direita nas eleições parlamentares de Dezembro de 2003 demonstra que Soljenitsine tinha razão: os eleitores rejeitaram a ideia de construir o futuro com base nos postulados da "parceria liberal". A opinião pública russa não aceita o princípio de desenvolvimento de acordo com o qual alguns grupos e estruturas sociais dinâmicas, como por exemplo, os oligarcas ou as corporações petrolíferas, conseguirão arrancar a Nação da crise e da pobreza.

Se a derrota eleitoral dos comunistas ainda pode ser explicada pelo comportamento agressivo do partido pró-presidencial "Rússia Unida" nos órgãos de comunicação social, sobretudo, na TV, este argumento não pode ser aplicado aos partidos de direita que, na realidade, controlam a maior parte dos "medias" russos e sabem perfeitamente como actuar perante as câmaras. As pessoas ouviram e compreenderam muito bem a sua posição, rejeitando-a. É esta a causa do seu fiasco. Entre os vencedores figuram os partidos, como, por exemplo, o bloco "Pátria", cujas concepções são semelhantes às de Soljenitsine, sobretudo no capítulo da criação duma sociedade de justiça social e de controlo, em vez duma sociedade de iguais oportunidades.

A "justiça" é entendida como o predomínio dos interesses nacionais sobre os das empresas e a subordinação do egoísmo capitalista aos interesses da sociedade. Pelos vistos, os ideais de Soljenitsine coincidiram com os programas dos partidos políticos vencedores, cujos líderes, provavelmente, nem sequer leram as obras do escritor.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, foi o único que assinalou o 10.º aniversário do lançamento do livro "Como é Melhor para Nós Organizar a Rússia", tendo visitado, há três anos, o escritor na sua herdade de Troitsko-Likovo. Nessa altura parecia que se tratava duma simples visita de cortesia.

Hoje é claro que não era bem assim.

As posições políticas de Soljenitsine e do Presidente Putin são parecidas, estando ambos convencidos de que o futuro da Rússia pertence a todos os russos, e não a um grupo de eleitos. É necessário criar estruturas de administração local através das quais as pessoas consigam, finalmente, realizar o seu sonho secular - dirigirem elas próprias o seu país.

Nesta questão Soljenitsine assemelha-se ao grande reformador russo dos princípios do século XX, Piotr Stolipin, cujas reformas foram interrompidas, primeiro, pela Primeira Guerra Mundial e, depois, pela Revolução Socialista de 1917 e a guerra civil de 1918-1920.

Contudo, o tempo vai passando. As guerras mundiais e as revoluções já pertencem ao passado, continuando, porém a luta ideológica a martirizar a Rússia. É preciso acabar com estas hostilidades inúteis porque esta é a única solução para todos.

Anatoli KOROLEV, analista político da RIA "Novosti" © RIAN

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