LIVRO 7, 27 ANOS DEPOIS

“A livraria era aqui”, dizemo-nos, enquanto caminhamos na Sete de Setembro. Dizemos isto não nos referindo à livraria da Sete de Setembro 329 de hoje. Mas a de antes, números recuados na mesma rua.

E recuando-a assim, números atrás, recuamo-la também no tempo, para 1970. Ela ficava numa loja, à direita de quem vem da Conde da Boa Vista, numa lojinha pequena, densa, de livros e de gente, por trás do que é hoje uma loja de frios. Ou seria por trás de uma lanchonete, no térreo do mesmo edifício onde está a loja de queijos, à margem de um corredor? Se a memória física confunde a sua exata localização, a memória humana é mais precisa.

Chegávamos aos sábados, à espera de O Pasquim. Tarcísio fazia-nos beber, sem muitos rogos, copinhos e mais copinhos de batida de limão, enquanto o jornal não aparecia. Por Deus, seria difícil uma espera mais venturosa. Cachaça, Lukács, limão, Proust, Hemingway e açúcar. Mais cachaça Beaudelaire, limão Manuel Bandeira e açúcar Scott Fitzerald. E Hess, e Brecht, misturas que só de lembrar fazem voltar à boca o seu travo. Gildo Marçal, antes de ser lukacsiano em São Paulo, dizia-nos que Lukács fora injusto com os existencialistas. Os que não sabíamos francês sempre achávamos que Sartre era um nome oxítono, Sartrê (e quanto charme nos lábios aspirando, Sartrê, fechando a última vogal, com um r bem gutural, “à francesa”).

O Velho e o Mar era a maior novela que alguém já escrevera (perdoem a nossa ignorância), e Este Lado do Paraíso subia-nos à garganta como o próprio inferno em que vivíamos. De repente O Pasquim chegava, e rumávamos para o bar em frente, na certeza de que “intelectual não vai à praia, bebe”.

Tarcísio deve ter começado a nos fazer seus clientes quando O Pasquim começou a atrasar. Mas isto é só uma suspeita. O certo é que passamos a comprar livros, como um sistema, semanalmente, a partir da Livro 7, a pequena, onde esperávamos O Pasquim. Antes, boa parte de nossa cultura humanística era fruto do que chamávamos, num eufemismo, de expropriação, ou dizendo de outra maneira, de empréstimos ocultados aos olhos dos bibliotecários. Tarcísio nos abriu a um só tempo os livros com cheiro de papel novo e o crédito, a nós, que não possuíamos nenhum na praça. Depois, com a chegada do primeiro emprego, e o término de cursos e mestrados nas faculdades, quando a quitação de nossas dívidas deixou de ser uma dúvida, a sua Livraria cresceu, adiantou-se nos números da Sete de Setembro, a ponto de atingir em 1993 o lugar de a maior livraria do Brasil.

É uma pena que neste espaço não caiba o desenvolvimento de sua história, que tanto tem a ver com a nossa própria, de formação e encontros, nesses 27 anos. Sabemos hoje que a sua livraria passa por dificuldades. Será que na lógica do mercado só exista saída pelo mercado? Algo assim como um círculo, que parte do ponto onde faltam livros porque faltam compradores, e encerra-se no ponto onde faltam compradores porque faltam livros? A nós, que não somos especialistas, ocorrem-nos coisas como, se para um show de música interdita-se uma ponte, quantas pontes deveríamos levantar para manter a maior livraria da cidade? Nessa pergunta acorrem-nos valores que não têm vez no mercado, como dever, lembrança-referência do Recife, formação do espírito. Todos bens – como dizê-los? – intangíveis.

Seria bom, até para a nossa auto-estima, de que tanto se fala, que fortalecêssemos a nossa maior livraria.

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Author`s name Pravda.Ru Jornal
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