Os professores e o crime (II) *

- Muito bom dia, doutora. Bons olhos a vejam.

Por desejar uma aparência bem-humorada, e assim, a partir do desejo, alcançar de fato essa graça, Gusmão entra com a alma aberta, desarmado, pronto a dizer o que lhe vier à cabeça. Mal sabe que esse estar bem com o mundo, passando ao largo de suas asperezas, deixa o corpo em risco de algum desconforto.

- Bom dia. Professor....

- Gusmão, doutora. – E senta-se. – Este seu criado.

- O senhor é sempre assim, professor?

- Assim como, doutora?

- Contente, despachado.

- Com exceção do dinheiro, tudo pra mim vai bem, doutora.

- Ótimo. – E sem transição, com crueldade: - A que horas o senhor chegou no dia do crime?

- Hem? Ah, como sempre. Antes das sete horas.

- Para um matemático, o senhor está sendo pouco exato.

- É que eu não marquei a hora, doutora. E eu não sou matemático, sou apenas um professor. Mas ponha aí então: o professor chegou num instante do intervalo compreendido entre 6 e 7 horas. Intervalo aberto à esquerda e à direita. – E abrindo um sorriso: - A doutora entendeu?

- Não.

- É simples: eu cheguei depois das 6 e antes das 7 horas. Entendeu?

- Claro. Por coincidência, professor, esse é o intervalo em que a aluna foi morta.

- Foi? Muito interessante. – E caindo em si: - Eu não sabia. Mas doutora, existem outros que também chegam nesse intervalo de tempo.

- Quem?

- O professor Santiago, por exemplo. O professor Cássio também. O professor Antônio Luís. – E elevando a voz: - O por-tei-ro...

- Eu sei.

- Exato. É isso. Mais alguma coisa?

- Sente-se, professor. Nós só estamos começando. O senhor chegou e foi para onde?

- Pra onde? Pra sala da coordenação! Direto, como sempre eu faço.

- E a sala já estava aberta, mestre?

- A senhora não me pega. Estava, doutora. A sala fica sempre com a porta encostada. Aqui a anarquia é tão grande, que já perderam a chave.

- Entendo... E quem o senhor encontrou lá? Já havia alguém?

- Ninguém. Somente eu e Deus.

- Ao passar no térreo, o senhor viu alguém?

- Eu não me lembro. Mas acho que uns dois ou três alunos, conversando.

- Meninos ou meninas?

- Nisso eu não presto atenção, doutora. Não existem aluno e aluna. Pra mim, é um conjunto finito de endiabrados.

- O senhor agora está sendo excessivamente matemático.

- Por quê? Fique à vontade, doutora.

- Eu sei que o senhor tem uma atenção especial para as alunas.

- Ah, sim. É claro. E a senhora queria que fosse por aluno? Tenha dó. Depois iam dizer que eu tenho horror à fruta.

- Isto não é uma brincadeira, professor.

- E eu sei.

- Eu quero lembrar ao senhor ... – A delegada ia dizer que aquela entrevista, aparentemente informal, já era parte de um formal processo, que as declarações do mestre poderiam ser usadas contra ele, que ele já reunia, em seu comportamento, e por seu comportamento, fortes indícios de suspeita. Mas a inteligência pôs um freio no impulso. E, apesar da raiva, dulcificou a voz: - Mestre, por favor. Entenda bem... O senhor alguma vez saiu com a vítima?

- Quem? Eu? Nunca. Que é isso, doutora? Ela era uma criança! Pelo amor de Deus, fêmea, pra mim, só a partir de um metro e sessenta.

- Mais uma vez o senhor está sendo pouco exato.

- Por quê?

- Porque o senhor gosta de aluna bonita.

- Sim, mas quem?... Siim, mas não me babo diante de criancinha.

Ao ouvir “babo”, ao ouvir “criancinha”, mais uma vez a delegada teve um movimento de repulsa.

- Perfeitamente... Como o senhor faz?

- Doutora, eu sou um homem normal. Eu não tenho problema. – E com o orgulho de um exibicionista, que se descobre ante uma mulher: - Tocou, pegou. Tocou, dou partida. Eu sou um carro zero.

- Eu não estou interessada em seu desempenho, professor. O que eu estou perguntando é como o senhor faz para namorar as alunas bonitas.

- Doutora, isto é uma acusação. Eu nunca namorei nenhuma aluna.

- O senhor sai com elas, vai pro barzinho.... O senhor nega?

- Não, mas ... isso não é namorar, doutora.

- É “ficar”, mestre?

- Não, mas... devagar com o andor. Eu sou um professor com mais de 20 anos de ensino, não vou me passar pra, pra...

- Claro. O senhor vende provas, mestre?

- Naão ... Espere aí, de que é que eu estou sendo acusado? A senhora quer dizer que só porque eu poderia ter vendido uns testes, só por isso eu sou um tarado? Devagar, doutora.

- Mas vender provas, o senhor confirma.

- Não sei ... E daí? O que a senhora conclui? Desculpe, mas a senhora devia ter um método, doutora. Se for pra levantar o que tá errado aqui no colégio, a senhora vai ficar mais perdida do que cego em tiroteio. O que é que a senhora quer? Achar um criminoso, não é? E qual é o crime, é vender teste? É paquerar? É beijar a bochecha de uma aluna? Se for por aí...

- Obrigada por me ensinar como eu devo proceder, mestre. Embora eu não lhe possa pagar na mesma moeda, agradeço. Eu não saberia.

- Exato. A senhora não sabe o que é isto. O professor tem que viver, sabe, doutora? Professor também vai ao supermercado. Se falta o salário, de alguma forma a gente tem que se compensar.

- Claro. Mestre, se o senhor estivesse em meu lugar, o que o senhor faria?

- Bom ... De cara, eu prendia logo o porteiro. Baixava-lhe o pau pra ele confessar logo. Aí, se não fosse ele, ele ia contar direitinho quem foi que chegou cedo no dia.

- Aí eu chegaria ao senhor. Como eu faria?

- Certo. – E arregalando os olhos: - Mas não fui eu, doutora. A sua pista está errada. Estava. Não fui eu, com certeza. Então a senhora tem que saber quem mais chegou, além de mim. Qualquer outro é bem mais provável. Pode ser até alguém que tenha pulado o muro por trás do colégio. Por aí.

- Certo. Agora volte ao seu lugar. Você, Gusmão, sabe de algum comportamento imoral... não é isso. É, você desconfia de alguém?

- Não. Se eu soubesse, eu já teria falado.

- Tente. Mesmo que seja uma suspeita de longe ...

- Olhe, eu suspeitaria do professor Antônio Luís. Esse professor quer ser muito certinho. E aqui, doutora, aliás, nem aqui nem na China existe santinho. O sujeito que prega moral é o de pior espécie. Procure o santo. – E levantando-se: - Posso ir?

- Sim. Chame o próximo.

O professor Gusmão sai contente. “Que surra, que surra eu dei nessa delegada”. A delegada, por sua vez, olha com desprezo os fundos arriados das calças do mestre. “Se eu o pego...”, seu rosto parece dizer.

Entra o professor Santiago. Fica em pé, em silêncio, olhando a delegada.

- Por favor, sente-se.

- Obrigado.

- Nome e disciplina.

- Santiago Melo da Silva. Ensino português.

- Ah! Pois não. Professor, como é a sua relação com os alunos?

- Eu diria que é uma relação entre boa e ótima.

- Ótima, mestre?

- Às vezes, até excelente.

- Que bom, finalmente um professor ...

- Professor como deve ser, não é, doutora? Todos os dias, eu me repito as palavras de Rui Barbosa: “a suprema satisfação da linguagem humana está no ensino da mocidade”.

- Entendo. – E a delegada, ainda que sem o querer, começa a ficar irônica: - É um sacerdócio... Mestre, e a recompensa por esse devotamento?

- Com diz?

- Dinheiro, mestre. Dinheiro, o senhor recebe de bom a ótimo?

- É claro que não. O dinheiro é de ruim a péssimo. Às vezes, para falar a verdade, nem o possuo, doutora.

- Como o senhor faz então?

- Como se diz na gíria, eu me viro. Peço emprestado, trabalho na rede pública ... é isso.

- Juntando tudo, é nada.

- Quase isso.

- Perfeito, mestre. O senhor é casado?

- Sim.

- Tem filhos?

- Não.

- Como é a relação com a sua esposa?

- Boa.

- Pra quem?

- Para os dois, é claro.

- Ela trabalha fora?

- Não.

- Então não deve ser boa para ela.

- Pelo contrário. Para ela é melhor: eu trabalho, ela consome.

- Perfeito, Mestre. O senhor casaria de novo com a mesma pessoa?

- Eu? Isto é assunto privado, doutora.

- Entendo... mas seria tão simples responder, não ou sim...

- Então, sim.

- Perfeitamente. Vamos então ao que o senhor não pode deixar de responder: o senhor troca bilhetes com alunas?

- Bilhetes, como assim?

- Bilhetes, mestre. Comunicação, correspondência curta...

- Claro, eu sei. Não. Nunca.

- Eu estou informada de que o senhor troca correspondência com algumas alunas. É melhor dizer a verdade.

- É mentira, é mentira de quem disse. Isto é uma calúnia, doutora. Eu nunca troquei bilhete com aluna.

- Há testemunhos disso.

- É falso. Prove!

- Na prova mesmo, mestre. Nas provas, há provas.

- Nas minhas provas? Isto é de mais. Quer dizer que andam bisbilhotando o que eu escrevo nas minhas provas? Isto é violação de privacidade, doutora.

- Engana-se, mestre. A sua atividade é pública. Ver suas provas é no máximo uma curiosidade.

- Para quê, doutora? O que é que há de errado nelas? Quem se der ao trabalho, vai perder o seu tempo. Eu escrevo umas bobagens, é uma crítica, é um estímulo...

- Sei. O senhor nunca escreveu ... bobagens à aluna morta?

- A Cristina? Evidentemente, não. Nunca.

- Precisa de algum estímulo para lembrar, mestre?

- Não, não e não. Nunca, pode estar certa.

- Perfeitamente. – E depois de uma pausa: - Mestre, como o senhor descreveria Cristina?

O professor olha para o chão. Evita os olhos da delegada. E com a voz embargada:

- É difícil para mim, doutora. Eu lhe digo apenas que ela era uma aluna muito talentosa.

- Como assim, mestre?

- Precoce, doutora. Havia nela uma precocidade.

- Em quê?

- Em tudo. Nas composições dela, nas perguntas, no jeito de ser. Na verdade, ela não era uma criança. Era como se fosse uma adulta num corpo de criança.

- O seu corpo, o senhor se lembra dele?

- Lembrança clara, eu não tenho. Sei que era de criança, pela altura.

- Entendo. Era bem magrinha.

- Não, tinha uma estrutura forte, acho. Uma feição boa.

- Sei. O que mais se destacava nela?

- O rosto, doutora. Tinha uns olhos verdes muito bonitos. Lábios carnudos, boca de moça... Entenda, eu falo assim porque sou um professor rigoroso na expressão.

- O senhor viu o corpo sem vida dessa menina?

- Não.

- Por quê?

- Porque não tive coragem.

- Por quê?

- Ora, ela era uma pessoa querida, doutora. A senhora acha que a gente de quem a gente gosta, a gente tem a coragem de ver morta?

- Mas nem por curiosidade, mestre?

- Eu não sou mórbido. Eu soube da notícia pelos outros professores. Para mim já foi suficiente. Além da conta.

- Então o senhor soube que ela estava seminua, de calcinhas, com marcas de esperma. O pescoço...

- Por favor... Eu não quero saber. Não me interessa isto.

- A propósito. Vou precisar da amostra do seu sangue, professor.

- Do meu? Por quê?

- É só uma rotina. Nada contra, não é?

- Claro. Não tem problema. Mas é muito estranho, doutora. Eu não estou entendendo.

- Nem eu. Por enquanto. A propósito, ainda: a que horas o mestre chegou no dia do crime?

- Eu não me lembro. Mas deve ter sido às sete.

- O senhor foi visto entrando bem antes.

- Foi? Eu não me lembro. Então foi.

- Depois de entrar no colégio, o senhor se dirigiu para onde?

- Doutora, eu não me lembro nem do que comi ontem. Ocorreram tantas coisas entre aquele dia e hoje que, sinceramente, eu não me lembro. Mas devo ter subido para a coordenação.

- Para não dizer que o senhor mente, professor, eu direi que o senhor se engana.

- Sim? por quê?

- Porque outros professores já me disseram que o senhor não estava na coordenação.

- É? Então a palavra deles é verdade, e a minha é mentira ... Mas ainda assim eu lhe digo: eu cheguei e subi para a coordenação.

- Antes das sete?

- Sim, provavelmente antes das sete.

- E depois?

- Depois? Eu não me lembro. Pra mim é o mesmo que a senhora me perguntar onde eu estava, a esta hora, o ano passado. Eu não sei.

- O senhor viu Cristina?

- Não. Acho que não. Eu acho que não vi Cristina.

- E quem o senhor viu?

- Doutora, se eu já lhe disse que não me lembro!... Por favor, eu não sou criança. A senhora fica rodando o carro na areia, para frente e para trás.

- Quem o senhor acha que seria capaz de um crime desses?

- Não sei. Um marginal, talvez. A senhora ainda não interrogou nenhum aluno? Pode ter sido qualquer aluno do científico. Eles já têm esperma, não é?

- Com certeza, mestre. Mas isto não é o mais importante. - E irritada: - Pela capacidade de ter esperma, metade da humanidade teria estuprado Cristina. O assassino está bem mais próximo. Poderia estar aqui, diante de mim.

- A senhora quer dizer que o assassino poderia estar aqui, agora, doutora?

- Talvez sim. – E sem transição: - Dois policiais vão acompanhá-lo até um laboratório, para colher o seu sangue.

- Para quê?

- Para um exame de DNA. É simples.

- O que é isto?! Eu tenho que falar com um advogado. Eu tenho direito a um advogado!

- É mesmo necessário, mestre? O senhor se nega a um procedimento de investigação?

- Isto é uma violência, doutora! Que é isto? A senhora não me pode obrigar.

- Se o senhor se nega, a polícia só pode concluir ... O interesse deveria ser seu em esclarecer este ponto.

- O interesse é seu, a senhora é quem tem que esclarecer. Este problema não é meu. Por que eu tenho que me submeter a um teste, como se eu fosse um criminoso?

- Por que o senhor se nega a fazer um exame? Por que somente o senhor? Todos os outros vão fazer.

- Eles aceitaram isto?

- Claro. Somente o senhor se nega.

- Então a senhora está perdida, doutora. Terá sido um coletivo de estupradores? Existem marcas de esperma de toda a gente? Bando de tarados...

- O senhor respeite a memória da menina! O senhor respeite a minha profissão! Se o senhor não exerce com dignidade a sua, respeite a minha profissão.

- Não me leve a mal, doutora. Se eu disse algo que a magoou, por favor, desculpe.

- O senhor se nega a fazer a coleta de sangue?

- Vou consultar um advogado.

- Não temos mais nada a conversar.

O professor se levanta, estende-lhe a mão:

- Desculpe qualquer coisa.

A delegada se nega ao cumprimento. Fura o professor com os olhos. Ele não quer vê-la. Ao se virar para a porta, deixa ver as costas curvas. A delegada não consegue conter-se:

- Bandido!

* Da novela O Caso Dom Vital

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