Coleção Koenings

A colecção de desenhos de Franz Koenings, que esteve durante algum tempo em poder do coleccionador holandês Van Beuningen, tornou-se num pomo de discórdia entre os Países Baixos e a Rússia.

A posição holandesa, à primeira vista, é correcta, enquanto a da Rússia causa dúvidas.

Permitimo-nos recordar o problema: a Rússia, empenhada em construir uma sociedade democrática, anunciou guardar nos acervos dos seus museus obras-primas de arte mundial tomadas como troféu depois da vitória sobre a Alemanha e tornou-se logo alvo de exigências de, pelo menos, oito países.

A Academia de Belas Artes da Alemanha elaborou uma lista de 2188 obras de arte extraviadas durante a Segunda Guerra Mundial. A maior parte das que se conservaram encontra-se na Rússia.

A elaboração da lista em causa foi possível graças à posição de abertura de Moscovo e ao facto de a Rússia ter editado, em tempos, a revista "Troféus" em que se publicavam as listas de obras de arte retidas pela Rússia.

No entanto, no caso da colecção Koenings, o aspecto ético é mais importante do que o jurídico, pois a questão da restituição em si com que deparam actualmente muitos países é mais uma questão moral.

A posição dos Países Baixos é clara: a parte holandesa encara a colecção Koenings como parte do "património cultural da Holanda", muito importante para a cultura holandesa. Ninguém contesta, só que esta tese formal é formulada à parte do contexto real em que se encontra actualmente a colecção Koenings.

Primeiro, a parte da colecção que se encontra nos EUA não causa nenhuma preocupação aos Países Baixos, e ninguém na Holanda exige a restituição das obras de Cezanne e de van Gogh vendidas, em tempos, aos EUA pelo segundo proprietário da colecção.

Todavia, a diferença entre as duas partes da colecção, a americana e a russa, é a de que a parte que se encontra na Rússia pertencia a van Beuningen e a americana, não.

Van Beuningen vendeu a sua colecção a Hitler, que abriu em Linz a sua galeria pessoal.

O facto de a colecção ter pertencido a Hitler transfere, na opinião da Rússia, a questão do plano dos direitos de propriedade privada para o da justiça e dos troféus de guerra do Exército Soviético. A URSS (leia-se, a Rússia) apreendeu a colecção à Alemanha, ou mais exactamente a Hitler, e não aos Países Baixos nem a van Beuningen, por direito do país vencedor que, juntamente com os aliados, libertou a Europa, inclusive os holandeses, do nazi-fascismo e que perdeu 27 milhões de cidadãos entre mortos.

A URSS recebeu como reparação equipamento alemão, o trabalho dos prisioneiros de guerra alemães, que reconstruíram o que havia sido destruído pela aviação nazi, etc.. Isto é justo e eticamente correcto e é o que tem em vista o ministro da Cultura da Federação da Rússia, Aleksandr Sokolov, quando diz que todas as questões de restituição devem ser examinadas no plano ético.

Devemos assinalar outros aspectos importantes que fragilizam a posição holandesa.

Koenings não é dono da colecção. Em 1935, a colecção Koenings foi adquirida pelo banqueiro Siegfried Kramarsky que a vendeu, posteriormente, a van Beuningen e este, por seu turno, a Hitler. Naquele momento, a colecção compreendia 2671 desenhos de pintores antigos e 47 quadros, nomeadamente de autoria de Rembrandt, Durer, Holbein. Assim, temos um outro dono da colecção, o banqueiro Kramarsky, que a guardava no museu Boimans, em Amsterdão, e que vendeu as obras de Cezanne e de van Gogh aos EUA e que era judeu.

E aí chegamos a uma questão muito delicada, ou seja, às circunstâncias em que a colecção foi vendida por Kramarsky. O nome van Beuningen é um dos mais conhecidos e respeitados nos Países Baixos, podendo, pelos seus méritos, ser equiparado ao Tretiakov na Rússia. Mesmo assim, na época de grandes choques e confusões, era difícil ser-se cavalheiro de honra.

A compra-venda da colecção Koenings ocorreu num ambiente de medo e chantagem civilizada. Quando a Alemanha nazi adoptou a lei "Do confisco de todos os objectos de valor pertencentes aos judeus", o banqueiro Kramarsky, nacional da Alemanha, residente naquela altura nos Países Baixos, compreendeu que iria perder, mais cedo ou mais tarde, a sua colecção. Os judeus residentes nos Países Baixos estavam à espera da invasão nazi. Os coleccionadores holandeses também o compreendiam, coordenando entre si todas as transacções de compra e venda de obras de arte aos judeus e rebaixando os preços. Assim, Kramarsky vendeu a sua colecção a van Beuningen a um milhão de florins (os van Beuningen concordam com o montante citado), ou seja, a um preço duas ou três vezes inferior. O próprio van Beuningen avaliava a colecção em 5,5 milhões de florins, tendo-a revendido, possivelmente também por razões de força-maior, a Hitler a um preço muito mais alto, embora a sua situação fosse muito melhor do que a em que se encontrava Kramarsky. A parte holandesa considera altruísta o acto de van Beningen, afirmando que ele teria ajudado Kramarski e salvado a colecção.

Todavia, os factos disponíveis põem em dúvida esta hipótese.

Formalmente, a compra da colecção teve lugar seis meses depois de Kramarski ter emigrado, em Novembro de 1939, para o Canadá e teve como pano de fundo a prática de suicídio em massa entre os judeus na véspera da invasão nazi. Cerca de 200 judeus suicidaram-se! Neste sentido, parece estranha a frase contida no catálogo oficial holandês de 1989 de que "graças à colaboração decidida de van Beuningen, a colecção não foi levada para o estrangeiro e não foi vendida a retalho".

Na véspera da invasão nazi, nos Países Baixos residiam 113 mil judeus, dos quais 104 mil posteriormente morreram.

Estes terríveis pormenores permitem-nos considerar o contrato de compra e venda entre Kramarsky e van Beuningen como forçado e, segundo a prática jurídica internacional, insignificante e inválido. Daí, os Países Baixos não podem deixar de compreender que este contrato poderá ser reconhecido inválido por exigência de qualquer pessoa ou tribunal interessado. Numa palavra, não é ético jogar a carta judaica e apresentar van Beuningen como vítima do nazismo, tanto mais que ninguém o forçava a vender a colecção Koenings a Hitler.

Não obstante, a Rússia examina atentamente todos os problemas da restituição, constituindo em cada caso concreto uma comissão de peritos dos dois lados. Mas o aspecto ético é sempre o mais importante.

Citemos o exemplo mais recente.

No Museu Ermitage encontra-se um conjunto de 18 peças de prata da colecção do príncipe Anhalt-Zerbst. Como adversário do regime nazi, o príncipe foi desautorado e colocado num campo de trabalhos forçados. Depois da guerra, o príncipe sofreu a repressão estalinista e morreu num campo de concentração soviético. Posteriormente, o príncipe foi reabilitado, tendo os seus filhos sido reconhecidos como vítimas de repressão política. Este caso não suscita nenhuma dúvida. A injustiça deve ser corrigida, tanto mais que Catarina, a Grande, é da Casa de Anhalt-Zerbst. As negociações sobre a restituição da sua colecção à Alemanha já estão na fase final.

Um outro exemplo de restabelecimento da justiça será a restituição à Hungria de um conjunto de livros antigos do acervo do Colégio Reformador de Sarosptak. O respectivo projecto de lei já deu entrada na Duma de Estado (câmara baixa do parlamento russo). Este é um gesto voluntário de boa vontade da Rússia. O Tribunal Constitucional da Rússia também acentua o aspecto ético da problemática da restituição, tendo aprovado recentemente uma decisão, segundo a qual os "objectos de valor só podem ser restituídos no âmbito de um intercâmbio mutuamente vantajoso ou como gesto de amizade, de boa vontade e de humanismo".

Neste contexto, o caso da colecção Koenings poderá ter perspectivas que me parecem, entretanto, muito obscuras. A Ucrânia devolveu, no ano passado, parte da colecção Koenings aos Países Baixos. Tudo bem, este foi um gesto de boa vontade de um jovem país que procura apoio na Europa. Mas foi a Rússia e não a Ucrânia que assumiu os direitos e deveres da URSS extinta e, portanto, os bens e os males daí decorrentes.

Resumindo, a situação ambígua da colecção Koenings-Kramarsky vendida por van Beuningen a Hitler lança uma sombra sobre a posição dos Países Baixos no sentido de tentar apoderar-se daquilo que era património pessoal de um coleccionador e que nunca pertenceu aos Países Baixos.

Anatoli Koroliov escritor sócio do PEN-clube para a RIA "Novosti"

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