Ao mestre, com carinho*

Quando eu era criança, academia p’ra mim era o que no sul se chama de jogo de amarelinha e batente apenas aquela parte alta do piso da entrada das casas onde a porta bate.

Depois aprendi que a “academia”, rica em significados, também podia ser de ginástica, de polícia, de letras ou uma escola de ensino superior e “batente” uma referência ao lugar de onde se tira o sustento. Por um bom tempo eu achei que a incompatibilidade dos batentes com o jogo de amarelinha tivesse ficado na minha infância.

Tenho um professor que, com uma longa vivência nas redações, critica seus professores de mestrado e o fato deles sempre basearem seus pensamentos nos pensamentos de outros autores. Sobre isso, é interessante lembrar que nas revoltas estudantis que sacudiram o mundo ao final da década de 60, uma das palavras de ordem berradas aos professores da Universidade de Heidelberg na Alemanha foi “Hier wird nicht zitiert!”- “Nada de citações aqui!”. Os estudantes exigiam pensamento original. A propósito disso, o ensaísta canadense Alberto Manguel diz que “os estudantes esqueciam que citar é continuar uma conversa do passado e dar contexto ao presente; citar é fazer uso da Biblioteca de Babel; citar é refletir sobre o que foi dito antes, pois, se não o fizermos, falamos ao vácuo, onde não faz som”. Porém, esse mesmo professor que regeitava a pós- graduação, nos mostrava em sua sala de aula na graduação, seus trabalhos do mestrado com a satisfação que uma criança talentosa mostra seus desenhos à professora de artes. Durante as aulas, ele sempre ilustra suas explanações com exemplos do que está aprendendo no mestrado e inevitavelmente...cita autores.

Mas erra quem vê contradição nesse professor que nos ensinou algo que se leva para toda vida como “não escreva nem com amor, nem com ódio. Troque o amor pela serenidade e o ódio pela indignação”. Na verdade nós, seus alunos, estamos percebendo o que ele mesmo ainda não se deu conta: queira ou não queira, a oportunidade de fazer uma pós-graduação está dando ao professor muito mais subsídios teóricos com os quais ele pode desenvolver uma linha coerente de raciocínio, ampliando seus horizontes humanísticos e o melhor, no nosso caso, suas aulas estão ficando bem melhores, mais fundamentadas e mais conscientes.

Dentro do espírito da citação, vou citar um proeminente pensador da moderna sociedade contemporânea e um líder predestinado a guiar os caminhos da humanidade, ou seja, vou citar a mim mesmo. Vejamos o que eu disse na edição nº 6, ano I, maio de 2001 de O Fim dos Dias:

“É preciso esclarecer que ao mesmo tempo que a produção acadêmica é inútil sem divulgação, a imprensa local poderia se beneficiar muito com as pesquisas feitas na universidade. Não só em termos de conteúdo, mas também no que se diz respeito à compreensão do público. Tal e qual a indústria farmacêutica se beneficia com o que é descoberto nos laboratórios universitários de Farmácia.

Os professores “academicistas” acusam os práticos de formarem verdadeiros zumbis da imprensa sem espírito crítico que num estalar de dedos ressuscitam e vão fazer matérias bem investigativas, como buracos de ruas e brigas de comadres sem ousar qualquer matéria sobre àquele político viciado em peculato. Já os professores do mercado reclamam que Departamento não oferece laboratórios adequados a necessária prática dos alunos e que por isso eles costumam empregar estagiários, ato ilegal, diga-se de passagem. Aos estudantes só resta concordar com Guimarães Rosa quando disse que ‘na panela do pobre tudo é tempero’ e se resignar a aceitar uma vaga de estágio na imprensa local, onde aprenderão dentre outras coisas, o que quer dizer aquela história da exploração do homem pelo homem. Os estudantes se submetem a isto porque esta é a única forma de praticar e, com sorte, ainda ganhar algum dinheiro. No dia seguinte dormem na sala de aula até os academicistas puxarem-lhes a orelha.

Tudo bem...cada macaco no seu galho, mas se o macaco não pular de galho em galho ele morre de fome. Os dois grupos atuam em áreas diferentes mas se complementam. O academicismo puro não tem sentido e pelo contrário, a prática sem teoria transforma um futuro jornalista em joão-de-barro, aquele pássaro que sempre constrói sua casinha da mesma forma sem ter, evidentemente, qualquer reflexão sobre o ato de construir.”

Nunca vi grandes diferenças entre o trabalho de um jornalista e o trabalho de um pesquisador. O que faz um repórter antes de escrever uma matéria sobre um assunto do qual ele não conhece bem? Pesquisa.

Alguns nomes soam muito pomposos “academia”, “doutores”, “pós- doutores”, “mestre”...mas na verdade muitos esquecem que pesquisar é principalmente estudar, aprender. É isso o que um jornalista, como muitos outros profissionais, passa sua vida fazendo. Por que o estranhamento?!

É importante refletir sobre de onde vêm esse medo da academia por parte dos jornalistas. Estaria ele em nossos genes? Viria dos nossos mais primitivos ancestrais? Ou viria de jornalistas antigos, de uma época bestial lembrada frequentemente como “romântica” em que não existiam cursos superiores de jornalismo, jornalistas profissionais e que bom repórter era aquele que sabia fazer matérias com os inúteis narizes-de-cera, datilografar rápido e ir para um boteco depois da meia- noite? Tenho nojo desse passado.

Nos anos 50, 60, 70 e 80 só fazia mestrado e/ou doutorado quem nutria a esperança de seguir uma carreira universitária. Hoje muito gente ainda pensa assim. Mas a realidade é outra: quem não quiser ter seu diploma de graduação reduzido daqui há alguns anos à importância de um certificado de 2º grau, deve fazer pós. Esse fenômeno já está acontecendo e pode ser medido tanto pela exigência de segundo grau completo para gari quanto pelos concursos públicos que exigem superior ou pós e pelo mercado em geral que vê com bons olhos quem apresenta um canudo de pós, de preferência feito no exterior. Com o advento das universidades particulares só não tem “um canudo para chamar de seu” quem não quer ou quem não tem um dinheirinho para frenquentar um curso superior. O que antes era uma vaidade acadêmica passou a ser pré-requisito para quem vai ou não ser professor universitário. Veja-se o fenômeno dos MBA’s. O número cada vez maior de graduados dá margem as empresas para exigir profissionais cada vez mais qualificados, inclusive criando-se o insólito cenário de muitos estagiários (aprendizes) terem mais conheimentos do que os próprios profissionais (mestres). Atualmente para ser estagiário, se exige que o candidato tenha conhecimentos que quem está efetivado ou chefiando não possui. Hoje quem chefia normalmente não está qualificado para ser estagiário, observando-se os pré-requisitos exigidos.

Não há incompatibilidade entre redação e pós-graduação. O jornalista ideal é um sujeito que gosta de ler e escrever, estudar, se informar, por isso não precisa temer a pós. Em vez de se acovardar e ficar tentando arranjar desculpas auto-enganadoras, sugiro que tomemos a pós de assalto.

Houve uma época no Brasil que só existiam três cursos: Direito, Medicina e Engenharia. Se o cidadão não gostasse de sangue ou matemática não tinha outra opção a não ser ir para Direito. Igualmente chato, mas que dava para ir levando sem ter que se afogar em números ou desmaiar nas aulas de anatomia. De Rui Barbosa à Câmara Cascudo, segue-se toda uma linha de advogados frustrados que queriam mesmo era ser jornalistas.

Há quem diga que os jornalistas da velha guarda vêem-se como “guardiões da supremacia do saber”. Eu nunca botei muita fé nisso. Até porque penso que a “notoriedade” de muitos dos medalhões do jornalismo é baseada muito mais na antiguidade de profissão, no “eu cheguei aqui primeiro” ou no tráfico de influência do que necessariamente em credibilidade. Tanto é que não é segredo muitos deles gostarem mais de “bola” do que Pelé em seus tempos áureos. Nos parece uma cena bizarra o fato de que ao escrever uma matéria, alguém que cometesse um erro simples tivesse que rasgar a lauda e datilografar tudo novamente a apartir do zero. E usar carbono para tirar cópia. Telex? Tipos de chumbo derretido, então?! Tudo isso é tecnologicamente explicável, já que tende-se q desprezar as velhas tecnologias, mas venerar tais práticas rudimentares é no mínimo um saudosismo trash. Minha crença é de que a informática que dividiu o jornalismo antes e depois dela continue criando uma nova forma de fazer jornalismo todo dia.

O jornalismo mudou tanto que nós do presente não reconhecemos como nossa a mesma profissão que era praticada no passado. Seriam os velhos...”proto- jornalistas”, “arcaico-jornalistas” ou “primata- jornalistas?” Não me interesso pelos trejeitos da velha imprensa, não sou agente funerário. Prefiro as idéias de velhos ou jovens mestres que beberam na fonte dos livre- pensadores como no caso do nosso professor.

Quem tem saudade da velha imprensa do mesmo geito que engoliu à seco o advento dos cursos de jornalismo e os computadores vai, se estiver vivo, ter que engolir goela à baixo jornalistas webdesignes, jornalistas mestres (“jornalista Ms. Fulano de Tal”), jornalistas doutores (“jornalista Dr. Fulano de Tal” ou “jornalista Fulano de Tal, Ph.D.”) e finalmente jornalistas pós-doutores. Uma nova geração que sabe pensar, pesquisar, com bagagem de conhecimento e esperamos, sem os vícios do passado. Os botecos da vida vão ter que se adaptar a essa nova geração. Aqui vai uma sugestão um “cyberboteco” chamado “Simpósio”.

A exigência, ou melhor, a necessidade de formação acadêmica específica não só para o Jornalismo como também para todas as áreas é uma realidade que dificilmente será revertida om bravatas de velhinhos ou canetadas de juízes que cação a exigência de diploma. Basta citar a área de publicidade: não se exige diploma para ser publicitário, mas as faculdades estão cheias de alunos e em algumas há mais concorrência do que para Direito, Medicina ou Engenharia. No fim pode-se dizer que os que hoje vociferam contra a academia estarão, como nos versos de Manuel Bandeira, “Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/ (...) / Onde estão todos eles?/ - Estão todos dormindo/ estão todos deitados/ Dormindo/ Profundamente.”

Adriano Costa

* O título do texto é um trocadilho com o substantivo “mestre”, isto é, professor; com o adjetivo “mestre”, ou seja, aquele que serve de guia; com o título universitário de mestre e com o título do filme “Ao mestre, com carinho”, estrelado por Sidney Poitier.

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