As pedras também amam

Sem a diferença entre os seres, não haveria por que se falar em evolução. Todos comungariam com o mesmo pensamento e com mesma consciência. Seria a inércia total.

Por Fernando Soares Campos

Há quem creia na existência de um Deus fora de nós, uma psique ultra-sublime, ou extra-sublime, o criador e fabricante de psiques etéreas (as almas), dotando-lhes de corpos materiais para se locomover e se comunicar entre si por um curto período nesta condição; em seguida, depois de esgotado o prazo de validade (a morte) da máquina material, as psiques sobreviveriam independentes, livres das máquinas tangíveis.

Nesse estado, o criador/fabricante separaria as psiques que funcionaram bem, obedecendo às regras de sua empresa, das que se comportaram mal, as que infringiram as regras. As primeiras permaneceriam sob seus eternos cuidados; as segundas sofreriam eternamente as conseqüências de não haverem se comportado bem. Ou expurgariam, por um longo período, suas infrações menores, passando a merecer habitar entre as psiques obedientes às regras da empresa divina.

É como se as psiques fabricadas pelo seu criador (criação teria sido apenas a idéia inicial, a partir daí ocorreria a produção em série, e as psiques seriam produzidas e dotadas de máquinas conforme modelos disponíveis: as etnias) fossem submetidas a um período de teste de qualidade, através dos quais o fabricante avaliaria a resistência, capacidades e, principalmente, comportamentos éticos.

Porém, no processo de fabricação (reprodução) das máquinas que serviriam de teste para as psiques, às vezes ocorreriam acidentais falhas e as máquinas apresentariam defeitos de fabricação: membros atrofiados, órgãos debilitados, ou mesmo a falta de algumas dessas peças, obrigando a que algumas psiques utilizassem suas máquinas deficientes ou desistissem da prova ali mesmo, no final da linha de produção. Outras, durante a fase de provas, sofriam acidentes, os quais encerrariam seus testes muito antes de esgotar o prazo de validade da máquina.

Vem daí a idéia de que a nossa massa encefálica é tão-somente o veículo de um suposto ser psíquico e que existiria “totalmente” desvinculada desse hipotético ser etéreo. É como se o psiquismo fosse um ente imaterial cuja dependência do material denso fosse apenas o de se fazer comunicar como outros seres psíquicos, igualmente etéreos, que usariam suas próprias máquinas durante a fase de teste (a existência encarnada). Quem assim pensa acredita que a massa encefálica tem apenas a função de veicular as manifestações mentais, espirituais, voluntárias ou programadas para manter a máquina (as atividades involuntárias).

Religiosos acreditam que a “alma do corpo material” seja alguma coisa que possa, em outra dimensão cósmica, manifestar-se independente, livre, dissociada de qualquer tipo de matéria. Isso provavelmente decorre do fato de que nós consideramos a matéria bruta um elemento inferior, um objeto tangível, identificável pelos sentidos básicos que a alma manifesta quando está utilizando a máquina humana, matéria visível através dos olhos, os canais materiais; enquanto a alma, a psique, o psiquismo seria “imaterial”, apesar de ser um ente sublime, intocável, venerável, a única manifestação divina, o sagrado, acho que até mesmo para os ateus, que acreditam apenas na dissolução desse ser.

Ainda não nos desvinculamos das sensações que a matéria densa proporciona à mente aparentemente “aprisionada”, temos a impressão de que o ser eminentemente psíquico parece somente se manifestar usando a matéria densa, mas que um dia se “libertarᔠdessa matéria (a morte do corpo físico). Este é um estágio do ser ainda bastante rudimentar, imbuído de preconceitos em relação à “matéria bruta”. Mero preconceito.

Entretanto este ser “etéreo” está evoluindo e alcançará estágios em que saberá distinguir perfeitamente as manifestações mentais totalmente “desvinculadas” de um corpo de “matéria densa”, identificará a matéria em seus múltiplos estados, suas funções e perceberá como alcançou autoconsciência, como ocorreu a sua evolução. Perderá o preconceito e considerará a matéria “bruta” tão-somente um estado natural, igualmente “divino”, quando comparada ao “ente etéreo”, a psique “imaterial”. A matéria “bruta” é a concentração de elementos do Universo conhecido. O ente psíquico, a alma, nunca se manifestará independente do ente material, mesmo porque não há como separar. Porém o ente psíquico é eterno, indestrutível, evolui; a matéria “bruta” é eterna, indestrutível, transforma-se.

Deus, um conceito.

O conceito que define a palavra “Deus” como um ser divino, eterno, infinito, princípio absoluto de todas as coisas, está intrínseco ao entendimento de três condições fundamentais: onipresença, onipotência e onisciência. Somente através destas condições reconhecemos a Perfeição de Deus, ou o Deus Perfeito.

Reino Mineral

Na matéria bruta, densa, aparentemente inerte, observamos a presença de Deus através da manifestação “Em si” (onipresença), a matéria tangível. A manifestação “Para si” (onipotência) pode ser observada através da expansão da matéria bruta, movimento e, com ele, o surgimento da noção dimensional, o espaço. E o “Por si” revela-se através do Calor, que corresponde à alma, à psique (onisciência). É o estado mais rudimentar do ser inteligente, o qual caracteriza o chamado Reino Mineral. Na consciência humana, este é o que se pode entender como o estado mais atrasado na escala de evolução dos princípios inteligentes na Natureza.

A matéria que reconhecemos através dos elementos do chamado Reino Mineral, em simples estado de expansão, não tem consciência de seu trabalho fundamental: movimento e ocupação do espaço (ela é apenas “Em si”). Portanto não teria consciência de “tempo decorrido”. É a matéria chamada “inorgânica”. Entretanto nela consideramos a existência do potencial (onipotência de qualquer matéria, o “Por si”) e uma alma (a essência, onisciência, pois é tudo que a matéria precisa “Para si” nesse estado), que, de tão primitiva, não podemos chamar de psique, apesar de promover uma atividade (movimento e ocupação de espaços: a expansão) regida por um princípio inteligente, a causa motora. Neste caso específico, podemos reconhecer o Calor como essa causa motora. Temos, assim, a máquina (os elementos tangíveis da matéria) e a sua psique (o Calor), realizando um trabalho (a expansão: movimento e espaço).

Essa é a matéria bruta, a mais rudimentar entre as matérias, que, na verdade, existe em infinitos estados e porções: infinitos se considerarmos que o Nada é Tudo que está além do nosso poder cognitivo. O conceito de um ser ao alcance dos nossos sentidos imediatos, no estado evolutivo em que nos encontramos, é, portanto, de coisa finita (que tem começo e fim). Por isso mesmo, até este momento de nossa evolução, não podemos nem mesmo imaginar algumas “formas” de matéria, mas podemos imaginar suas existências, seus espaços, suas dimensões, por dedução, indução, hipótese, inferência .

A matéria densa, expandindo-se, portanto criando a noção de movimento/espaço, sem autoconsciência de tempo, assume diversos estados que partem do extremamente sólido ao gasoso (matéria em estados tangentes). E do gasoso ao material energético (sensorial bruto, possível de impressionar os cinco sentidos primários de um ser humano; exemplo: eletricidade). No estado energético sensorial bruto, as reações podem ser apreciadas a olho nu, ou através de aparelhos. Porém a matéria “Em si” possui muitos campos de fuga: a troca de energia entre os seus diversos estados; umas se sacrificando pela sobrevivência das outras (seleção natural), pólos: positivo e negativo. Nesse estágio, pólos diferentes se atraem, pólos iguais se repelem, simplesmente para manter a vida, para manter a troca. É a solidariedade universal no seu mais alto grau.

O Reino Vegetal

Da experiência do “Em si” (onipresença), o “Por si” (a onipotência) cria novos estados da matéria: porções individualizadas e organizadas em sistemas dotados de razoável independência: a matéria orgânica vegetal, seres vivos sem autonomia para locomoção, porém apresentando uma forma de expansão acelerada e evolutivamente mais inteligente (onisciência). Neste estado, a alma, a psique, da matéria-indivíduo-vegetal possui uma rudimentar consciência de si, pois o trabalho (movimento, ocupação do espaço, a expansão) lhe confere uma avançada noção de “tempo” (ciclo de vida e morte). A matéria-indivíduo-vegetal, através de seus instrumentos de evolução, “aprende” a sobreviver, troca informações mais precisas com o universo.

No reino vegetal, a matéria já se expressa mais explicitamente: o “Por si”: movimento, espaço e conseqüente noção de tempo; o “Para si”, a explosão da onipotência; e o “Por si”, a autoconsciência rudimentar, consciência de tempo, do ciclo de vida e morte do corpo organizado.

Reino animal

As três qualificações fundamentais da presença de Deus, em seu conjunto (onipresença, onipotência e onisciência), somente podem ser instintivamente percebidas pela matéria a partir do momento em que a matéria densa libera porções animais. O trabalho (ciência) se torna consciente, necessário à sobrevivência e infinita procriação. É um estágio da evolução muito avançado em relação aos reinos mineral e vegetal.

Espírito, alma, psique, psiquismo...

A causa espiritual está intrínseca à própria matéria. A matéria é divina, a matéria é Deus, a matéria densa é a revelação da existência da matéria espiritual. A matéria densa “aspira”, eternamente, à eterificação. A primeira “manifestação inteligente” da matéria é o MOVIMENTO. O movimento eterno em busca da eterificação (até os diamantes “evaporam”). Certamente o calor gera o movimento, o CALOR é a manifestação “mental” (metal) da matéria densa a “causa espiritual”. A causa espiritual não cria a matéria, ela é um dos seus atributos divinos: Ser “Em si”, “Para si” e “”Por si”.

O “desejo” de ser etéreo, o desejo de libertar-se, expandir-se ( o universo está em eterna expansão), o “desejo” de evoluir.

Tudo parte da perfeição para a “imperfeição” (o caos) e daí para outra perfeição. Ou: tudo parte da perfeição aparentemente inerte (“Em si”, onipresença) para a perfeição dinâmica (“Para si”, onipotência), passando por infinitos estágios. A infinitude dos estágios é o caminho da evolução, que se processa de forma perfeita, eterna e perfeitamente caótico, revelando o “Por si”, a onisciência.

Deus é perfeitamente imperfeito, pois a imperfeição de Deus é a busca eterna pela perfeição. Ou seja: Deus evolui! Por isso mesmo nos é incompreensível, exigimos a existência de um Deus fora de nós sem necessidade de evoluir, imaterial. A palavra “deus” nos soa como o final, o finito, ao qual chegaríamos de fora, contemplando-o, um Deus personalizado. Quando alcançamos o estágio de seres pensantes, passamos a não conceber um Deus impessoal; neste estágio, nos consideramos apenas a semelhança de deus, e assim ocorrerá até o momento que assumirmos a divindade que emana de nós mesmos, na condição de matéria-etérea, e não de ser etéreo, imaterial.

Matéria e espírito são indissociáveis. Na matéria densa: o calor produzindo o movimento; o espírito movimentando a matéria; a manifestação inteligente na matéria densa busca a evolução, está em permanente evolução.

O Nada é o repositório da ignorância humana. O Nada é onde tudo existe. O Nada é onde consideramos existir um Deus sublimado. Porém somos deuses em evolução, manifestando-se através de matéria, já conquistamos a consciência disso; e, quando a consciência aflora, Deus é a parte mais profunda dessa consciência. O Nada é onde os deuses querem chegar, para, daí, recomeçarem, como acreditam terem começado na matéria densa que vem do Nada. O Nada é onde guardamos todos os mistérios, todos os dogmas de todas as ciências. O Nada é revoltante, pois é a sua ilusória noção quem revela a nossa ignorância. O Nada é estúpido! O Nada é o infinito. Como não podemos conceber o infinito do universo que hoje se nos revela, odiamos o Nada, onde tudo recomeça.


Do nada para o tudo e daí para o nada. E do nada para o tudo...

Quando o ser se descobre responsável pela criação, quando se revela a consciência de que se é Deus, onipresente, onipotente e onisciente, mas incapaz de usar todos esses atributos da matéria, sente-se incapaz de estabelecer o finito e infinito, o começo e o fim, o tempo e a eternidade, aí acaba por separar a onipresença, onipotência e a onisciência. A onipresença nos parece local, inerte. A onipotência transforma-se em sacrifício pela sobrevivência, ao invés de potência para sobreviver. A onisciência se reconhece como evolutiva, mas não reconhece a si mesma como onisciente, apenas como ciente, ciência, mero conhecimento. “Em si”, “Para si” e “Por si” parecem perdidos no universo da psique, mas está vivo no universo da matéria em si. Nesse estado, o “Por si” discrimina o “Para si”, considerando-o “inferior”, mas aceita manifestá-lo pela sobrevivência. Porém não quer admitir que é também o “Em si”, um ser aparentemente rudimentar, o mais inferior dos seres.

A meu ver, fala-se de Deus, descreve-se Deus, acredita-se em deus, sempre a partir da consciência de si, do grau de evolução que este deus alcançou dentro de si. Se eu não acredito em Deus, na verdade eu não acredito no deus que as manifestações de Deus estão equivocadamente descrevendo. O ateu se sente deus, deus de um mundo que acabará consigo no momento em que a organização material densa de que ele faz uso hoje deixar de funcionar como sistema. O ateu não que ser um “Em si” (a aparente inércia), nem mesmo somente “Para si”, o aparente movimento/espaço/tempo (pois ele pensa), vive o “Por si” (único, individual, finito), pois ainda não percebeu que finito e infinito se fundem: o fim é o começo. O Nada é o começo e o fim. Qualquer ponto no universo é o começo e o fim possíveis de serem observados.

Talvez o ateu não conceba a matéria etérea manifestando-se de forma inteligente e evoluída, capaz de sobreviver em outras dimensões, voltando a viver nesta dimensão material densa como o mineral migra para o vegetal, daí para o animal, volta ao mineral, percorre o vegetal, novamente o animal, num ciclo que parece eterno, mas que, numa dessas passagens, pelo trabalho que realizou, suas porções assumem a individualidade consciente e passa a fazer o mesmo em reencarnações sucessivas até a sublimação da matéria para suas formas quintessenciadas.

Sem a diferença entre os seres, não haveria por que se falar em evolução. Todos comungariam com o mesmo pensamento e com mesma consciência. Seria a inércia total. Viveríamos como uma matéria talvez inconcebível: sem qualquer expressão de inteligência, nem mesmo o movimento que gera a noção de espaço, que geram a noção de tempo, que gera a noção de vida e morte, que geram todo tipo de dúvida e certeza relativa ao estado evolutivo conquistado.

Fernando Soares Campos

BRASIL

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