De olho no olho da tragédia

No centro de toda tragédia tem um olho. Um olho duro, estóico e estático. Insano e maligno. Um olho terrível, difícil de olhar. Mas é preciso encarar esse olho.

Depois da tragédia, há muitos olhos. Olhos de desespero e aflição, olhos de súplica. E também olhos abjetos, execráveis. Olhos que saqueiam sem serem necessitados, por mera mesquinha ganância. Olhos que compram vaidades de falsas benevolências.

Há ainda o olho da comiseração. Mas o olho sagrado, o que se sobressai, é o olho da solidariedade.

Esse é o único olho que nos conforta do tanto que se perdeu, em muitos casos irrecuperavelmente. E com a mesma incomensurabilidade que nos aterrorizou o olho da tragédia, nos comove agora o enorme olho da solidariedade que vem de todo o Brasil e do mundo. Em nossas lágrimas de perda, agora se misturam lágrimas de emoção por esse abençoado olho.

Mas não podemos esquecer o olho insano da tragédia.

No início da década de 70, em São Paulo, foi a primeira vez que olhei dentro desse olho. Acorri do Largo do Paissandu à Av. São João, sem entender o que atraía as pessoas para invadir a via movimentada, interrompendo o trânsito intenso. As tensões de tantos desaparecidos, mortos, exilados e torturados na tragédia cotidiana que se alastrava por todo o país daquela época, talvez tenham provocado minha primeira impressão desatenta ao avistar o edifício Andraus em chamas, comparando-o à uma enorme fogueira de São João da adolescência. Só quando frente aos meus olhos um corpo despenca, desperto para a realidade de que ali havia gente. E então vi as pessoas na laje do heliporto, como se estivessem sobre uma frigideira.

Ali estava o olho da tragédia enorme e terrível, me encarando. Meu desespero nascido no imediato da compreensão de que não havia por onde aquelas pessoas escaparem me fez totalmente impotente ao poder daquele olho.

Deixei-me ali, pateticamente perguntando como não previram escadas de incêndio para aquelas pessoas que fritavam. Um edifício enorme lambido pelas labaredas e com um olho estático, frio, terrível e realista em seu topo.

Tentaram fechar nossos olhos e nos convencer de que não víramos o que víramos. As notícias oficiais divulgadas pela imprensa falaram em 16 mortos. Somente ali, no heliporto, eu vi muito mais. Mas sempre sabíamos muito mais do que as inverdades divulgadas naqueles tempos do Brasil das mentiras.

A covardia do negar o olho da tragédia, apenas resultou em que dois anos depois ele voltou a nos encarar no Edifício Joelma, na mesma São Paulo. A mesma ratoeira e o mesmo olho sarcástico a rir de nosso desespero. Dessa vez não deu para esconder e a imprensa noticiou 180 mortos. Talvez, em verdade, tenha sido mais, mas 180 vidas era muito mais do que suficiente para se exigir saídas de incêndio que o olho maldito negara às vítimas da tragédia anterior.

Em 1975 submergiu-se 80% da cidade do Recife, então a maior do nordeste, matando 107 pessoas. No ano seguinte, quando para lá me mudei vindo de Salvador, contaram que durante a enchente não chovera uma gota na cidade, mas chuvas torrenciais na cabeceira da bacia do Capibaribe avolumaram as águas dos rios que com a maré cheia, não encontraram vazão para o mar.

Conjunção de acasos?

Em visita ao Instituto Joaquim Nabuco, a diretora me apresentou uma raridade: um volume de folhas manuscritas por Maurício de Nassau, o governante no período colonial sob domínio dos holandeses. As folhas eram cuidadosamente emolduradas em páginas que na face seguinte trazia datilografada a tradução para o português. Lembro exatamente da frase traduzida: "A cada braço tomado do rio, ser-lhe-á devolvido outro".

Na cuidadosa caligrafia do original em flamengo seiscentista de Nassau, enxerguei o olho previdente que evita as tragédias.

Infelizmente, ao retomar o controle sobre a cidade os portugueses não tiveram os mesmos cuidados. Tampouco os brasileiros pós - independência, e ainda menos o interventor do regime militar, Moura Cavalcanti, que acompanhando o ritmo do então "milagre brasileiro", permitia o crescimento desordenado da cidade e o avanço da especulação imobiliária sobre os mangues e canais da outrora "Veneza Brasileira".

E assim, por inúmeras vezes o tétrico olho da tragédia espiou o desespero dos recifenses.

Em meados dos anos 80 já morava em Ubatuba, cidade litorânea sob os costões da Serra do Mar, ao norte de São Paulo, na divisa com o estado do Rio de Janeiro. Uma forte chuva provocou a queda da casa de uma família caiçara, construída em uma área de risco evidente. Uma pessoa morreu.

Na noite daquele mesmo dia recebo telefonemas de amigos de outras cidades, preocupados com o que pudesse ter me ocorrido. Atônito, não compreendia a razão dos telefonemas, pois chuvas como aquela, são normais à região. Mais tarde me inteiro de que estando na capital, o então prefeito do pequeno município, Pedro Paulo Teixeira Pinto, ao ser informado da queda da casa e morte do trabalhador, com apoio do então governador Orestes Quércia requisitara uma emissora de TV para anunciar ao Brasil o estado de calamidade pública na cidade.

Envergonhados, assistimos por vários dias a pequena cidade ser invadida por caminhões de diversas procedências, com faixas solidarizando-se com as vítimas da tragédia de Ubatuba. Já falecida, a única vítima não usufruiu absolutamente nada das tantas doações vindas de todo o país. Tampouco seus familiares que reconstruíram a mesma casinha no mesmo local de risco. Mas logo a população apontou quais casas de altos funcionários da prefeitura trocaram de mobiliário ou foram transformadas em brechós, e em que festas se consumiram os donativos em gêneros alimentícios.

Nunca mais Pedro Paulo conseguiu se eleger sequer a vereador, mas nas vezes que o encontrei pelas ruas da cidade, enxerguei o olho mais calhorda da tragédia. Uma tragédia que mesmo não havendo, teve seu olho execrável e desumano purgando nas consciências das gentes.

É difícil, é asqueroso, é terrível, mas não podemos tirar o olho do olho da tragédia.

Hoje ouvi o espantado governador de Sta. Catarina, Luiz Henrique da Silveira, natural da bela Blumenau, uma das cidades mais atingidas pela tragédia que nos abate, comentando que áreas densamente arborizadas, mesmo as de matas primárias, vieram abaixo. Talvez uma pré-autodefesa do governador que já foi agraciado com a Moto Serra do Ano, a irônica condecoração do S.O.S. Mata Atlântica aos que mais contribuem ou permitem a devastação desta área que abrangia toda a costa brasileira desde o nordeste até às margens dos pampas gaúchos.

O escritor José de Alencar, como deputado do partido aliado ao Imperador Pedro II, já no século retrasado advertia para os riscos de tragédias com a destruição contra a qual lutam os ambientalistas do S.O.S. Mata Atlântica. Tragédias como as que assolam o sertão nordestino, alimentando a famigerada indústria da seca que beneficia coronéis e políticos sugadores de Sudenes, contribuições e donativos internacionais. Um desses, afamado escravocrata do ex-PFL, ainda circula pelo Congresso Federal sob o nome de Inocêncio. O olho da tragédia não tem o mínimo pudor.

Portanto, se o governador Luiz Henrique tem a consciência intranqüila, ao menos não pode ser apontado como único responsável, ou sequer o principal. Mas se é verdade que a região afetada, a das maiores cidades do estado, é uma das menos desmatadas, ou das mais reflorestadas, também é preciso enxergar no olho desta tragédia que se trata de um olho de Boiúna, a cobra grande do lendário indígena. Sincretizada a uma grande embarcação que levaria desgraças ao longo dos rios, na Boiúna se interpretava a perceptível correlação de efeitos ambientais neste país tão ecologicamente interligado através dos ventos e das marés de sua extensa costa oceânica, ou pelas inúmeras e serpenteantes ramificações fluviais.

Em nossa tropicalidade, o olho desta tragédia tanto pode estar geograficamente escondido no desmatamento da Amazônia por madeireiros e pelo agro-negócio, a provocar concentrações de nuvens no sul do país; quanto perdido no tempo em meio à criação de grandes concentrações de águas, como Itaipu, a aspirar ventos e calores provocando extemporâneos confrontos térmicos. Portanto, seria mesmo uma aleivosia computar a culpa do que agora nos ocorre ao governador ou qualquer outro, mas espera-se que dessa vez todos tenham se imbuído, sobriamente, do significado do olho da tragédia.

O próprio governador -- ao contrário do que sempre fez tão logo eleito por apertada diferença, vencendo em segundo turno com o apoio do então também candidato ao primeiro mandato presidencial, Luís Ignácio Lula da Silva -- através da imprensa local elogiou e agradeceu o que chamou de efetivos e intensos esforços do governo federal em solidariedade à Sta. Catarina. E certamente também estará agradecido ao significativo apoio de todo os estados brasileiros não apenas em doações de populares, mas inclusive de dinheiro para a reconstrução do que foi destruído. Substanciosas importâncias noticiadas pela imprensa local como provindas das mais diversas origens internacionais: Alemanha, governos de países árabes, etc.

Poderá, em tempo, ser resgatada a lamentável imagem de Luís Henrique reclamando da Operação Moeda Verde da Polícia Federal contra seus secretários e os secretários de seu aliado político, o Prefeito Dário Berger de Florianópolis (então no PSDB), em razão de concessões espúrias para ocupações de áreas federais de preservação permanente.

Apesar da imensa tristeza que recai sobre todos os que vivem em Sta. Catarina, se algo de positivo pode restar desta enorme tragédia é a oportunidade do nosso governador entrar para a história como o político que literalmente levantou o estado da lama, e ser lembrado como um exemplo aos administradores do futuro.

Luís Henrique está com todas as armas para enfrentar o olho da tragédia. É só ter coragem.

Como declarou publicamente através de uma emissora de TV, apoio do governo federal não lhe falta. Para que nos orgulhe perante todos os brasileiros, aos quais recompensaremos com nossa hospitalidade de estado turístico, de nossa parte pode contar que não tiraremos o olho dos múltiplos olhos da tragédia.

Raul LONGO

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