Como Bolsonaro contraria consenso científico sobre a covid-19

Como Bolsonaro contraria consenso científico sobre a covid-19

 

Presidente disse que o risco de ter sintomas graves se restringe às pessoas com mais de 60 anos

Médicos contestam declarações dadas pelo presidente da República. Idosos não são os únicos que correm riscos com o novo coronavírus, e isolamento social é medida eficaz para conter avanço da epidemia, afirmam.

O posicionamento do presidente Jair Bolsonaro sobre como o país deveria enfrentar a pandemia de covid-19 é equivocado e vai contra as recomendações da comunidade científica, afirmam entidades médicas e especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Na noite desta terça-feira (24/03), Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão no qual conclamou o país a "voltar à normalidade" e pediu que os estabelecimentos comerciais não fechem as portas e que as pessoas saiam do confinamento em suas casas.

Em sua fala, o presidente também questionou a suspensão de atividades em instituições de ensino e disse que o risco de ter sintomas graves se restringe às pessoas com mais de 60 anos. Na manhã de quarta-feira (25), em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro voltou ao tema e defendeu que confinamento seja restrito aos brasileiros dessa faixa etária, estratégia conhecida por isolamento vertical.

A biomédica Fabiana Brandão, professora de microbiologia da UnB (Universidade de Brasília), afirmou à DW Brasil que a ideia de que apenas os idosos estão suscetíveis a efeitos severos da covid-19 e que bastaria isolar esse grupo para protegê-lo não encontra respaldo na realidade.

Ela submeteu à publicação nesta semana um artigo acadêmico redigido com outros dois pesquisadores e que analisa os estudos existentes sobre possíveis tratamentos da covid-19. Se aprovado, o texto será veiculado no Caderno de Saúde Pública da Fiocruz.

Segundo a professora da UnB, as estratégias de mitigação, pelas quais se evita a chegada do vírus às pessoas do grupos de risco, e de supressão, que buscam zerar qualquer nova contaminação, são as mais recomendadas no momento, enquanto não surgem tratamentos farmacológicos com eficácia comprovada e os pesquisadores tentam medir qual será o impacto do vírus na população brasileira. Para que essas estratégias deem certo, ela diz ser essencial manter o isolamento social.

"Por que estamos tão assustados? Porque mesmo que a letalidade seja baixa, esse vírus é muito adaptado ao ser humano e deve contaminar praticamente toda a população. Temos que dar tempo para que ele não infecte todos de uma vez. Se 1% das pessoas infectadas tiverem sintomas graves, isso significa que quase 2 milhões de pessoas no Brasil precisariam de internação e ventilação mecânica, e não temos essa quantidade de leitos", afirma.

O médico Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, lembra que o isolamento social se mostrou eficaz em outros países para diminuir o acúmulo rápido de novos casos da covid-19, ou "achatamento da curva" do número de infectados ao longo do tempo. "A China nos ensinou isso, e depois o Japão e a Coreia do Sul, que também adotaram essa estratégia, tiveram curvas completamente diferentes das curvas de países que adotaram isso tardiamente ou não adotaram", afirma.

"Ninguém tem milhares de leitos ociosos esperando uma catástrofe. A ideia não é que ninguém se infecte, mas fazer com que a demanda pelo serviço de saúde seja distribuída ao longo do tempo", diz Kfouri.

Grupos de risco e isolamento social

Brandão, da UnB, também contesta a ideia de que só as pessoas com mais de 60 anos estão sob risco de desenvolverem sintomas graves, como Bolsonaro expressou em seu pronunciamento. Também estão no grupo de risco os diabéticos, as gestantes, os HIV positivos, fumantes e pessoas com problemas pulmonares, como asma.

Ela afirma que pessoas com menos de 40 anos também podem se infectar, desenvolver sintomas graves e virem a necessitar de internação, sobrecarregando ainda mais os leitos de UTI.

Para ela, a proposta do isolamento vertical, no qual só se isola os mais velhos, não é viável. "Como faríamos com os mais velhos? Vamos prendê-los, isolá-los?", questiona. "As pessoas com mais de 60 anos e os demais no grupo de risco têm familiares e lidam com pessoas mais jovens, que sem o isolamento poderiam estar circulando e trazendo o vírus para casa", diz.

Kfouri também critica a ideia de isolamento parcial, restrito aos mais idosos. "Ter escolas abertas significa ter transporte público funcionando, professores, seguranças, pais buscando e levando as crianças. Você não consegue interromper a cadeia de transmissão, e os mais vulneráveis acabam sendo impactados. Isolamento não funciona quando é praticado apenas em pequenos segmentos", diz.

Promessa de novos tratamentos

Em seu pronunciamento, o presidente disse que a FDA (agência governamental dos Estados Unidos responsável pela aprovação de medicamentos) e o hospital Albert Einstein, em São Paulo, estão pesquisando a eficácia do tratamento da covid-19 com o remédio cloroquina, usado por quem tem lúpus e artrite.

Brandão afirma que, de fato, a cloroquina já demonstrou ser eficaz para tratamento de pessoas infectadas por outros vírus da mesma família e que também provocam síndromes respiratórias, como a Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e a Sars (Síndrome respiratória aguda grave). A droga cria barreiras que impedem que vírus dessa família se conectem às células humanas e depois se instalem e se reproduzam em organelas dentro das células.

Mas ainda há um longo caminho para comprovar se a cloroquina tem o mesmo efeito no vírus Sars-CoV-2, o causador da covid-19. "Os resultados poderão vir a ser promissores, mas também pode ser que o resultado atual dos estudos in vitro não se reproduza nos seres humanos", afirma.

"Como pesquisadora, nosso papel é dizer 'calma' às pessoas, para não gerar esse frenesi, com a população indo à farmácia comprar toda a cloroquina. Tenho uma aluna que tem lúpus e faz uso desse remédio, mas não o estava encontrando na farmácia", diz.

Na fala televisionada no domingo, Bolsonaro também chamou a covid-19 de uma "gripezinha". A comparação é inadequada, segundo a professora da UnB. Ela destaca que o vírus que está circulando pelo mundo agora percence a uma nova cepa da família do coronavírus muito bem adaptada à espécie humana, com uma estrutura que facilita sua ligação a receptores das nossas células.

"Isso não é uma 'gripezinha'. Já temos dados consolidados sobre influenza [a gripe comum], à qual a população humana está co-evoluindo há muito tempo. O Sars-Cov-2 surgiu agora, e ainda vamos levar um tempo para aprender mais sobre ele", diz.

Reação de entidades médicas

Organizações médicas brasileiras também manifestaram oposição às propostas de Bolsonaro para lidar com a pandemia da covid-19.

A Sociedade Brasileira de Imunizações considerou o pronunciamento de Bolsonaro "temerário" e reprovou o incentivo ao fim do isolamento social, que "contraria todas as evidências científicas" e as "próprias orientações do Ministério da Saúde".

"Incentivar os brasileiros que têm a possibilidade de permanecer em casa a voltarem às ruas pode ter consequências trágicas. Ademais, é um desrespeito com os profissionais de diversas categorias - como médicos, enfermeiros, policiais, bombeiros, motoristas, entregadores, funcionários de mercados e muitos outros - que se expõem diariamente ao risco, por exercerem funções que não podem ser interrompidas", afirma a entidade

A Sociedade Brasileira de Infectologia afirmou que o discurso de Bolsonaro trouxe "preocupação" à classe médica ao se opor ao fechamento de escolas e se referir à covid-19 como um "resfriadinho", pois poderia dar uma "falsa impressão" de que as medidas de contenção social são inadequadas e de que a doença se assemelha a um resfriado comum.

"Do ponto de vista científico-epidemiológico, o distanciamento social é fundamental para conter a disseminação do novo coronavírus, quando ele atinge a fase de transmissão comunitária. (...) 'Ficar em casa' é a resposta mais adequada para a maioria das cidades brasileiras neste momento, principalmente as mais populosas", afirma a organização.

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A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. 

 

 

 

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