ETIÓPIA: PRESOS POR CRIME DE OPINIÃO

Hailu Shawel é membro do Parlamento e presidente da Coalizão pela Unidade e a Democracia ("Coalition for Unity and Democracy", CUD). Mesfin Woldemariam é professor de 75 anos, ex-presidente do Conselho Etíope de Direitos Humanos ("Ethiopian Human Rights Council", EHRCO). Birtukan Mideksa é vice-presidente da CUD, advogada e ex-juíza. Dr. Berhanu Negga é parlamentar da CUD, prefeito de Addis-Abeba e economista. Gizachew Shifferaw é membro do Comitê Executivo da CUD.

Dr. Hailu Araya é membro da CUD, ex-diretor de Press Digest e parlamentar. Daniel Bekele é diretor de política da ONG Ajuda em Ação (ActionAid).

Além de nomes de difícil pronúncia, estas pessoas têm algo mais em comum. São uma pequena parte das centenas de pessoas presas por crime de consciência na Etiópia, país africano com pouco mais de 67 milhões de habitantes, o 16o mais populoso do mundo. As prisões ocorreram após uma série de manifestações de protesto contra o controvertido resultado das eleições parlamentares, em maio. Foram detidas unicamente por ter expressado pacificamente suas convicções políticas. Correm perigo de serem submetidas à tortura ou maus tratos, segundo ativistas de direitos humanos que atuam no país.

As manifestações ocorreram na capital, Addis-Abeba, nos dias 1 e 2 de novembro, com o objetivo de protestar pelos polêmicos resultados das eleições parlamentares realizadas em 15 de maio. A polícia, informam os ativistas, está levando sistematicamente de seus domicílios uma grande quantidade de membros e supostos membros da CUD, assim como jornalistas e defensores dos direitos humanos. Entre as pessoas detidas está Hailu Shawel, presidente da CUD que, de acordo com os informes, foi golpeado pelos agentes de polícia que o apreenderam. O professor Mesfin Woldemariam, de 75 anos, ex-presidente do Conselho Etíope de Direitos Humanos (Ethiopian Human Rights Council, EHRCO), foi detido em 1 de novembro. É um conhecido escritor e defensor dos direitos humanos que havia renunciado há pouco tempo a seu cargo no Conselho para apoiar a campanha eleitoral da CUD.

Ativistas correm perigo de vida Woldemariam está há três meses prostrado devido a dores na coluna vertebral que exigem fisioterapia e tratamento médico periódico. A Anistia Internacional revelou forte preocupação com sua saúde, já que é freqüente o desrespeito aos detidos, especialmente durante os primeiros dias de sua detenção. "Geralmente, são obrigadas a dormir em um frio piso de cimento, não podem receber comida ou roupa de seus familiares, e tem negado o tratamento médico", alertam. Não está claro se o professor Mesfin Woldemariam teve permissão para levar consigo seus medicamentos analgésicos. Segundo informam os ativistas, após sua apreensão a polícia revistou sua residência e levou alguns de seus documentos.

As autoridades não revelaram o lugar de reclusão de nenhuma das pessoas detidas. Alguns informes indicam que muitas delas podem estar presas na sede da Direção Central de Investigações (Central Investigation Bureau, conhecido como 'Maikelawi'), em Addis-Abeba. De acordo com os informes, nenhuma das pessoas detidas compareceu perante uma autoridade judicial dentro do prazo de 48 horas previsto em lei. A "polícia antidistúrbios" tem usado munição real contra os participantes nas manifestações ocorridas em vários bairros de Addis-Abeba. Como resultado, mais de 30 pessoas perderam a vida e cerca de 150 ficaram gravemente feridas. As manifestações começaram de maneira pacífica e a violência teve início quando a polícia começou a disparar contra os manifestantes.

Os atos de protesto pacíficos feitos pela Coalizão pela Unidade e a Democracia (CUD) em 31 de outubro tem como objetivo boicotar o novo Parlamento, devido à fraude eleitoral supostamente cometida pelo partido no poder, a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (Ethiopian Revolutionary Democratic Front, EPRDF), do primeiro ministro Meles Zenawi. Cerca de 30 motoristas de táxi foram detidos por tocar a buzina durante os protestos do dia anterior. As autoridades afirmaram reiteradamente que a CUD está organizando uma "conspiração violenta" e, recentemente, o primeiro ministro Meles Zenawi acusou Hailu Shawel de traição. A CUD, no entanto, reafirmou seu compromisso com a oposição e protesto pacíficos, como observam as entidades de direitos humanos presentes na Etiópia.

Uma História de opressão e resistência A Etiópia é um país com um imenso histórico de opressão, tanto interna quanto externa. Em 1869, o imperador Menelik II assumiu o trono e se aliou à Inglaterra e à Itália para organizar a administração local (reino de Choa). Em 1895, os ex-aliados italianos invadiram o país, alegando falta de cumprimento de compromissos. Em 1896, na batalha de Adua, morreram 4 mil dos 10 mil soldados italianos. Foi a derrota mais esmagadora sofrida por europeus na África, até a guerra da Argélia. Mesmo derrotado, o país europeu conseguiu por meio da diplomacia os territórios atuais da Eritréia e o sul da costa somaliana.

Em 1936, no entanto, Benito Mussolini invadiu novamente o país africano, tirando vantagem da luta interna entre candidatos à sucessão de Menelik II. A então Liga das Nações, apesar de solicitada pelo novo herdeiro do trono, não deu apoio concreto. Entre outras realizações, em cinco anos de ocupação, a Itália estabeleceu um sistema de discriminação racial semelhante ao apartheid sul-africano. Com a queda de Mussolini, o Reino Unido assumiu a administração da Etiópia. Os etíopes conquistaram sua independência em 1948, re-assumindo então o herdeiro do trono, Hailé Salassié.

Situação feudal manteve exclusão social O país encontrava-se desgastado. A estrutura produtiva estava completamente desorganizada. Mesmo derrotando o inimigo externo, o imperador haveria de enfrentar os movimentos nacionalistas que resistiram contra o retorno a uma situação feudal. Com tantos problemas políticos, não era difícil de prever que a miséria estava aumentando consideravelmente, principalmente no interior do país. Salassié possuía um discurso de repúdio ao colonialismo e apoiou o Movimento dos Países Não Alinhados e a Organização da Unidade Africana (OUA), cuja sede foi instalada em Adis-Adeba. Além dos vínculos com Israel, a administração de Salassié se caracterizou pela implementação da burocracia estatal, de um sistema educacional inspirado no dos Estados Unidos e pela militarização, com a criação do maior exército da África subsaariana.

A miséria também se dava pela manutenção das injustiças no campo. 80% das terras férteis do país pertenciam aos latifundiários feudais e à Igreja Ortodoxa. Salassié foi deposto em 1974, após uma série de greves, manifestações estudantis e protestos generalizados contra o absolutismo e a falta de alimentos. Em 1977, após sucessivas crises internas, chega ao poder o coronel Mengistu Hailé Mariam. O governo de orientação comunista nacionalizou os bancos, as companhias de seguro, as grandes indústrias de capital estrangeiro e fechou as bases militares norte-americanas. Além disso, estatizou o solo e liquidou, assim, o poder dos latifundiários. O socialismo científico foi adotado como ideologia oficial em junho de 1976. A oposição sofreu uma dura repressão, principalmente em 77 e 78. Milhares de pessoas foram sumariamente executadas.

"Ação" capitalista, 27 anos depois Um dos casos recentes que retomou a onda de estatização promovida pelo governo militar a partir de 1974 foi a intenção da Nestlé, maior multinacional de alimentos do mundo, de cobrar uma indenização de US$ 6 milhões pela nacionalização de uma de suas subsidiárias no país, em 1975. A ação foi movida em dezembro de 2002. Para se ter uma idéia, a renda per capita da Etiópia é de US$ 100, por ano. Na Suíça, sede da fábrica da Nestlé, por exemplo, a renda per capita é de US$ 38 mil ano. À época, a multinacional se defendeu dizendo que "a empresa irá investir qualquer compensação que receber do governo da Etiópia no próprio país".

A organização não-governamental britânica Oxfam condenou a posição da Nestlé, dizendo que não há justificativa para desviar dinheiro do governo da Etiópia para uma multinacional que teve um lucro de US$ 3,9 bilhões no primeiro semestre de 2002. "Essa é uma empresa que disse publicamente que uma coisa que quer fazer no mundo é ajudar a melhorar a vida dos pobres. Essa é uma companhia que está tentando tirar US$ 6 milhões de um dos países mais pobres do mundo", disse um dos diretores da entidade, Justin Forsyth.

Investimentos em guerra aumentaram pobreza O país caminhava para mais guerras internas. A Eritréia, atualmente emancipada, reclamava do colonialismo praticado pelo governo central e foi, por diversas vezes, reprimida. A guerra entre a Eritréia e a Etiópia é uma das mais sangrentas da História da África. De 1982 a 1984, uma seca acabou com as plantações no início do ano e abriu uma das maiores crises de fome da Etiópia. Doze províncias foram afetadas e mais de meio milhão de camponeses morreram, com outros cinco milhões tendo sua sobrevivência ameaçada.

No final da década de 80, a guerra consumia 60% do orçamento etíope a produção agrícola diminuía. Um tratado de paz foi assinado com a Somália em abril de 1988. Com o fim do bloco soviético o partido do coronel Mengistu eliminou a definição de marxista-leninista, mas não abandonou o mono-partidarismo. Com o avanço de guerrilheiros do norte, Mengistu fugiu do país e deixou a presidência para o vice, Tesfaye Gabre Kidane, um moderado que implementou um governo de transição e negociou cessar-fogo com os rebeldes eritreus.

A fome voltou a ser um problema crítico em 1994, já na administração de Meles Zenawi, causando a morte de cinco mil pessoas no distrito de Wolayata, ao sul do país. No começo da década de 1990, a tensão social não abandonou o país, apesar do contexto de mudanças. Em janeiro de 1993, ocorreram grandes manifestações estudantis, por ocasião da visita do secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali.

"Ajuda internacional" condicionada à privatização Programas de redução da fome e desenvolvimento econômico eram coordenadas pelo governo nacional com o apoio da ONU e do Banco Mundial. A contrapartida pelo repasse por parte dos organismos internacionais de 1,2 bilhão de dólares em cinco anos ao país era, exatamente, a privatização do governo etíope. Em junho de 1994, após uma reforma constitucional, foram realizadas eleições para a Assembléia Constituinte. O pleito foi boicotado pelos principais partidos de oposição, tais como a Frente de Libertação Oromo e a Frente de Libertação Nacional Ogaden. Em setembro, a polícia fez prisões maciças no oeste do país, uma área habitada majoritariamente por oromos. Denúncias de desrespeito aos direitos humanos foram feitas, à época, pela Anistia Internacional e por outras entidades.

Em 1995, após eleições novamente boicotadas pela oposição, Zenawi dá lugar a Negasso Gidada e assume como primeiro-ministro. A intenção dos governantes, conforme tese oficial, era distribuir os cargos de acordo com a vasta diversidade étnica do país. No mesmo ano, foram privatizadas (vendidas ao capital privado) nada mais nada menos que 144 empresas estatais. Desde a década de 1990, a Anistia Internacional insiste em pedir a libertação de opositores, exigindo o fim das detenções arbitrárias, torturas e desaparições.

As privatizações promovidas pelo Banco Mundial e o FMI, com a ajuda da ONU, aumentam grosseiramente a desigualdade social, conforme estudos da própria ONU. Após implementarem o aumento da fome e da desnutrição, os organismos internacionais freqüentemente devolvem migalhas à parcela mais pobre da população, sob o signo da "ajuda humanitária". Entidades de direitos humanos seguiam pedindo mais investimentos estruturais e, como sempre, sendo ignoradas e até, por vezes, culpadas pelo assistencialismo ineficiente. Em 1985, por exemplo, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi expulsa do país depois de ter denunciado o desvio da ajuda humanitária e a migração forçada das populações locais.

Disputa com Eritréia Em maio de 1998, a disputa fronteiriça com a Eritréia ocasionou a morte de mil pessoas e, em fevereiro de 1999, reiniciaram-se os combates. Aqui, a "guerra fria" baseada na venda de armamentos se fez mais uma vez presente. A Rússia se negava a parar de vender armas aos dois países, enquanto que os Estados Unidos, que não possuíam negócios significativos locais, pousava de bom moço ao exigir o embargo de armamentos. No mesmo ano, os norte-americanos não hesitaram em bombardear uma fábrica de remédios para pessoas pobres no vizinho Sudão, ao mesmo tempo em que se negavam em receber informações seguras deste mesmo país acerca dos terroristas árabes que - para surpresa de muitos, mas não do governo norte-americano - atacariam as Torres Gêmeas e o Pentágono, três anos depois. Em dezembro de 1998, a Etiópia e a Eritréia assinaram em Argel, capital da Argélia, um tratado encerrando oficialmente a guerra entre os dois países.

O primeiro-ministro do país, Meles Zenawi, descreveu em 2002 a situação da Etiópia como um pesadelo muito terrível de se imaginar, sendo ele próprio um dos construtores deste pesadelo. A renda do governo foi seriamente afetada pela queda no preço do café, o principal produto de exportação do país. Nos últimos 20 anos, mais de um milhão de etíopes morreram de inanição e outro milhão teve de se refugiar nos países vizinhos. Três milhões, sendo 10% de todos os adultos do país, são portadores do vírus HIV. Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, um dos principais responsáveis por isso é o próprio governo, que não adota políticas públicas mais eficientes no combate ao problema. Além disso, os países centrais e os organismos internacionais pouco se mexem para baratear o preço dos remédios que poderiam efetivamente acabar com o problema.

Enquanto "defensores da democracia" se mobilizam na Venezuela para criar um clima de crise internacional por conta das recentes eleições legislativas e para intervir autoritariamente no governo de Hugo Chávez - que promove um dos programas sociais mais eficientes do planeta -, a Etiópia passa por uma real crise político-administrativa. Enquanto o governo etíope elimina ativistas de direitos humanos atuantes no país, a imprensa elimina do noticiário o bom senso e se cala, inerte aos problemas do continente negro.

Gustavo Barreto - [email protected]

Referências

· Enciclopédia do Mundo Contemporânea. Editora Terceiro Milênio e PubliFolha, RJ & SP, 2002. · Anistia Internacional [http://www.br.amnesty.org/] · Nestlé processa Etiópia em US$ 6 milhões. BBC Brasil, 19/12/2002 [http://www.consciencia.net/mundo/africa/nestle01.html] · Etiopía: Mejorar el tratamiento de enfermedades mortales. Médicos Sem Fronteiras [http://www.msf.es/proyectos/africa/etiopia/Etiopa.asp] · Relatório sobre a epidemia mundial do HIV/SIDA, Junho 2000, ONUSIDA [http://www.aidsportugal.com/article.php?sid=572] · Etiópia no Wikipedia [http://es.wikipedia.org/wiki/Etiop%C3%Ada]

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