Jogo de cena das empresas e bancos em relação ao desmatamento

Jogo de cena das empresas e bancos em relação ao desmatamento

 

Por Luiz Enrique Vieira de Souza, Marcelo Fetz, Bruna Pastro Zagatto e Nataly Sousa Pinho/Le Monde Diplomatique

Retórica de empresários e instituições financeiras preocupados com a Amazônia não resiste à análise das suas ações concretas

Os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em junho de 2019 constataram um aumento de 88% no desmatamento da Amazônia em relação a junho de 2018 e 40% no total acumulado nos doze meses referentes a esse intervalo. As imagens da floresta em chamas correram o mundo e geraram atritos diplomáticos entre o Brasil e chefes de Estado europeus, que expressaram suas preocupações sobre a importância da Amazônia para a mitigação das mudanças climáticas e a preservação da biodiversidade. Em seu discurso na abertura da 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, ocorrida em setembro do ano passado, Jair Bolsonaro adotou uma incisiva retórica nacionalista que reafirmava a soberania do Brasil sobre seu território e acusava os líderes europeus de transvestirem suas atitudes neocolonialistas e interesses econômicos sob um discurso ambientalista: "Os que nos atacam não estão preocupados com o ser humano índio, mas sim com as riquezas minerais e a biodiversidade existentes nessas áreas". Assim, o presidente brasileiro manteve o tom de confronto adotado quando a Alemanha congelou seu repasse de 35 milhões de euros ao Fundo Amazônico. "A Alemanha não vai mais comprar a Amazônia, vai deixar de comprar a prestações a Amazônia" (apud DW, 2019).

A despeito de sua fraseologia patriótica, as estratégias do governo Bolsonaro para a Amazônia não se fundamentam num projeto propriamente nacionalista de desenvolvimento. Isso não apenas porque o presidente já declarou explicitamente que pretende explorar a floresta em parceria com os norte-americanos, mas também pelo fato de que seu apoio incondicional às madeireiras, à mineração e ao agronegócio contribui para manter o Brasil numa posição relativamente dependente e subordinada no mercado internacional. Já em relação aos países europeus, as contradições de sua diplomacia ambiental revelam-se por seus fluxos comerciais com o Brasil. Mesmo após o desgaste diplomático, as balanças comerciais entre o país sul-americano e as duas principais economias da União Europeia mantiveram-se relativamente estáveis (MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2020). Além disso, uma análise detalhada dos produtos comercializados demonstra que França e Alemanha contribuem para a degradação ambiental no Brasil, uma vez que importam madeira, minérios, soja e carne bovina, ao passo que figuram como alguns dos principais fornecedores de agrotóxicos para o mercado brasileiro - incluindo-se nesse ponto determinadas marcas de biocidas cujo uso foi legalmente banido nos territórios da União Europeia em função de sua comprovada toxicidade (BOMBARDI, 2017). Por fim, não deixa de ser emblemático que se tenha assinado em 2019 o acordo para a formação de uma área de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, após vinte anos de negociações. Ainda que esse tratado possa ser futuramente revisto por conta do ceticismo de líderes europeus em relação aos compromissos ambientais do governo brasileiro, por ora prevalece o lobby das indústrias alemãs - particularmente do setor automotivo - que enxergam no Mercosul uma oportunidade para a ampliação de seus mercados.

Levando-se em consideração suas consequências drásticas para a aceleração do aquecimento global, comprometimento irreparável da biodiversidade e insegurança hídrica nos territórios sul-americanos, é evidente que a questão Amazônica requer uma abordagem cosmopolita que ao menos relativize os apelos irresponsáveis de Bolsonaro ao princípio da soberania nacional. No entanto, a postura truculenta e negacionista que o governo brasileiro adotou ao tratar como conspiração e fake news as evidências atestadas por satélites sobre o desmatamento acelerado da floresta tornou cada vez mais constrangedor para empresários e fundos de ações que se respaldam no discurso corporativo da sustentabilidade manterem seus investimentos no Brasil sem prejuízos à própria imagem. Diante desse cenário, um grupo de 29 organizações internacionais que administram ativos no valor de US$ 3,7 trilhões enviou uma carta exigindo medidas contundentes que revertessem as políticas de desmantelamento dos órgãos ambientais e ataques às populações indígenas. "Nós demandamos que o governo do Brasil demonstre compromisso claro com a eliminação do desmatamento e a proteção dos povos indígenas" (apud PHILLIPS, 2020). Paralelamente, uma empresa norueguesa produtora de salmão excluiu uma subsidiária da Cargill da sua lista de fornecedores em retaliação ao desmatamento e ganharam repercussão as campanhas para que as redes de supermercado europeias boicotem os produtos brasileiros [Boykottiert Bolsonaro].

O temor de que a percepção negativa do Brasil no exterior por causa das questões socioambientais na Amazônia prejudique seus negócios levou um conjunto de 36 empresas a protocolarem uma carta junto à vice-presidência da República solicitando que o governo adote medidas para aplacar a reação de investidores e consumidores estrangeiros. Duas semanas depois, executivos dos três maiores bancos privados do Brasil reuniram-se com o general Hamilton Mourão para discutir uma agenda conjunta para a Amazônia com foco no desenvolvimento da infraestrutura local, apoio à bioeconomia e ao mercado de títulos verdes. Num primeiro momento, essas iniciativas parecem reforçar os argumentos de que a pressão dos mercados oferece os corretivos necessários para a degradação ambiental. No entanto, a própria declaração do vice-presidente após o encontro revela que os interesses desses bancos e empresas consistem antes numa estratégia de gestão de seus riscos reputacionais do que numa expressão de compromissos socioambientais genuínos. "E o que a gente vê é que a Amazônia pode ser uma solução em termos de empresas que têm atividades poluentes. Elas poderem colocar recursos para a preservação de floresta para compensar a poluição que elas causam em outras áreas" (apud CARRAÇA and URIBE, 2020).

A contradição expressa na fala do vice-presidente demonstra, portanto, que uma análise crítica sobre os discursos relativos ao desenvolvimento da Amazônia requer que as declarações dos diversos atores envolvidos nessa questão sejam confrontadas com seus respectivos históricos de degradação ambiental. Isso porque entre os signatários da carta endereçada ao vice-presidente aparecem diversas empresas que são responsáveis diretas pelo desmatamento ou por outras práticas de agressão ao meio ambiente. A Marfrig, por exemplo, foi acusada pelo Greenpeace de participar de esquemas de "lavagem de gado", comercializando carne bovina oriunda da pecuária em Unidades de Conservação (GREENPEACE, 2020). A Bayern/Monsanto, por sua vez, tem sido alvos de reiterados protestos por beneficiar-se da "política antiambiental" de Bolsonaro, que liberou 325 agrotóxicos em apenas nove meses, ao passo que a Cargyll já sofre retaliações por negociar soja cultivada em áreas desmatadas - além de financiar a cadeia produtiva do cacau, que emprega o trabalho de 8 mil crianças e adolescentes no Brasil (SUDRÉ, 2019). Já a Vale S. A. promoveu articulações para expandir suas atividades mineradoras na Amazônia e assim continuar satisfazendo o apetite pantagruélico da China por minério de ferro - sem mencionar que a negligência desta empresa resultou nos dois maiores crimes ambientais da história do Brasil com o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho.

No que diz respeito às instituições financeiras, é importante salientar que a retórica ambientalista dos bancos se encontra em colisão direta com suas concessões de créditos aos principais vetores do desmatamento na Amazônia. Um estudo publicado pela World Wild Fund for Nature (WWF) em 2016 demonstrou que os principais bancos em atividade no Brasil possuem baixa adesão aos tratados internacionais de comprometimento com a preservação florestal, critérios ambientais flexíveis para a concessão de crédito e, em alguns casos, inclusive tolerância em relação ao descumprimento da legislação trabalhista. Até o ano de publicação desse estudo, o China Development Bank não possuía mecanismos sequer para restringir o financiamento de atividades que lançavam mão de trabalho escravo ou trabalho infantil. Já Itaú/Unibanco e Grupo Santander não se comprometiam a excluir de seus financiamentos aquelas atividades responsáveis pela degradação das florestas naturais, de modo que seus créditos contribuíram para a expansão das "milícias ambientais". Assim, a pesquisa desenvolvida pela WWF teve como propósito fomentar as discussões sobre a criação de novos marcos de regulamentação do sistema financeiro que sejam mais afinados com critérios de responsabilidade socioambiental (WWF, 2016). No entanto, os dados divulgados nesse estudo paradoxalmente corroboram o ceticismo às prerrogativas advogadas pelos entusiastas da "Green Finance", uma vez que o mercado de créditos também funciona segundo uma lógica concorrencial e, nessa medida, o comprometimento voluntário de cada banco com critérios socioambientais adequados à preservação da floresta pode acarretar-lhes "desvantagens competitivas". Na ausência de uma regulamentação governamental que abarque o conjunto do sistema financeiro, os bancos efetivamente coerentes com princípios de sustentabilidade teriam de compensar sua desvantagem concorrencial perante as instituições financeiras menos criteriosas oferecendo taxas de juros mais reduzidas ou outras vantagens análogas que ao fim e ao cabo diminuiriam suas margens de lucros.

Registro do estrago deixado pelas queimadas, na região entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia - 2018. (Crédito: Daniel Beltrá/Greenpeace)

Apesar das contradições entre a retórica da sustentabilidade e suas práticas de degradação, o temor de banqueiros e empresários acerca das consequências da política ambiental brasileira sobre a gestão dos riscos reputacionais e, consequentemente, sobre a regularidade de seus negócios contribuiu para modificar parcialmente o discurso oficial sobre o desenvolvimento da Amazônia. Tanto o ministro do Meio Ambiente como o general Mourão responderam às críticas afirmando que a Amazônia só será preservada se forem encontradas "soluções capitalistas" que garantam dinamismo econômico e renda para os cerca de 20 milhões de habitantes da região. Após as reuniões com o setor privado, os representantes do governo passaram a valer-se reiteradamente da "bioeconomia" enquanto alternativa para conciliar o desenvolvimento econômico e a preservação da Amazônia.

Na realidade, os potenciais da "bioeconomia" já vêm sendo matéria de discussão entre cientistas brasileiros há anos. Carlos Nobre argumenta, por exemplo, que "a região Amazônica oferece a possibilidade de implantar um modelo que nenhum país do mundo ainda implantou: uma revolução industrial baseada no aproveitamento da biodiversidade de um país tropical". Segundo o pesquisador, as populações amazônicas "agregariam valor aos produtos, que desenvolveriam milhares e milhares de bioindústrias, que criariam empregos bons, de classe média, que são empregos industriais" (NOBRE apud FACHIN and MACHADO, 2019). A princípio, um debate democrático sobre bioeconomia na Amazônia poderia representar uma oportunidade para se avaliar as potencialidades dessa proposta, assim como questões referentes ao modelo de apropriação da biodiversidade, o protagonismo dos povos da floresta no desenvolvimento regional e o alcance dos impactos ambientais que a bioeconomia acarretaria em termos da necessidade de expansão da infraestrutura local e adensamento demográfico.

No entanto, a realidade é que o governo não possui qualquer plano concreto de fomento à "bioeconomia" e a maneira como essa ideia foi apropriada revela um mero uso instrumental destinado a aplacar as críticas ao desmatamento. Uma estratégia coerente para o desenvolvimento da bioeconomia dependeria necessariamente de investimentos nas áreas de ciência e tecnologia, algo que não se coaduna com o corte de verbas das universidades públicas e agências de pesquisa durante o governo Bolsonaro. Mais fundamental ainda, seria reconhecer que não existe "bioeconomia" com a manutenção paralela de atividades que promovem o desmatamento acelerado. Uma vez que a "bioeconomia" depende da manutenção da floresta, não é razoável imaginar que essa proposta possa ser simplesmente justaposta aos vetores econômicos que atualmente catalisam o forest dieback e a savanização da Amazônia. Numa palavra, os representantes políticos das "milícias ambientais" apropriaram-se de maneira instrumental do conceito de "bioeconomia" como uma estratégia discursiva que visa amortecer o desgaste perante a opinião pública nacional e internacional em relação ao desmatamento e ganhar tempo para levar sua política antiambiental às últimas consequências.

 

Luiz Enrique Vieira de Souza é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia.

Marcelo Fetz é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Espírito Santo.

Bruna Pastro Zagatto é pesquisadora de pós-doutorado do CEVIPOL da Université Livre de Bruxelles.

Nataly Sousa Pinho é estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia.

 

BOMBARDI, L. M. 2017. Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União EuropéiaSão Paulo: FFLCH - USP.

CARRAÇA, T. and URIBE, G. 2020. "Maiores bancos privados fazem iniciativa conjunta em defesa da Amazônia". Folha de São Paulo, (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/bradesco-itau-e-santander-tem-reuniao-com-mourao-para-lancar-plano-para-amazonia.shtml, access on July 19th 2020).

DEUTSCHE WELLE/DW. 2019. "'A Alemanha não vai mais comprar a Amazônia', diz Bolsonaro", https://www.dw.com/pt-br/a-alemanha-n%C3%A3o-vai-mais-comprar-a-amaz%C3%B4nia-diz-bolsonaro/a-49988192 (access on 25th May 2020)

FACHIN, P. and MACHADO, R. 2019. "Amazônia e a bioeconomia: um modelo de desenvolvimento para o Brasil. Entrevista especial com Carlos Nobre". Unisinos (http://www.ihu.unisinos.br/588962).

GREENPEACE. 2020. "Como o desmatamento e a criação de gado têm ameaçado a biodiversidade brasileira", https://www.greenpeace.org/brasil/biodiversidade/como-o-desmatamento-e-a-criacao-de-gado-tem-ameacado-a-biodiversidade-brasileira/ (access on August, 25th 2020).

MARX, K. 1982. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural.

MINISTÉRIO DA ECONOMIA. "Estatísticas de Comércio exterior", http://www.mdic.gov.br/index.php/comercio-exterior (access on 30th July 2020).

PHILLIPS, T. 2020. "Trillion-dollar investors warn Brazil over 'dismantling' of environmental policies". The Guardian, https://www.theguardian.com/environment/2020/jun/23/trillion-dollar-investors-warn-brazil-over-dismantling-of-environmental-policies#:~:text=Investors%20managing%20trillions%20of%20dollars,about%20the%20conditions%20for%20investing%E2%80%9D. (access on August 1st 2020).

SUDRÉ, L. 2019. "'Bayer Monsanto é morte': Mulheres do MST protestam em frente à sede da empresa em SP". Brasil de Fato, https://www.brasildefato.com.br/2019/09/20/bayer-monsanto-e-morte-mulheres-do-mst-protestam-em-frente-a-sede-da-empresa-em-sp (access on August 20th 2020).

WORLD WIDE FUND FOR NATURE/WWF. 2016. Banking on the Amazon: How the Finance Sector Can Do More to Avoid Tropical Deforestation. Woking: WWF.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

http://www.patrialatina.com.br/jogo-de-cena-das-empresas-e-bancos-em-relacao-ao-desmatamento/

 

 

 

 

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Pravda.Ru Jornal
X