Anna Malm: Causas e efeitos

Por: Anna Malm*

Os efeitos se conhecem bem mas as verdadeiras causas ainda continuam desconhecidas para a grande maioria das pessoas. Quais foram às verdadeiras causas do terror militar que nos matou, mutilou e nos pôs a chorar no exílio?

A relação entre a doutrina econômica e o terror devastador a que fomos submetidos nunca foi clara e abertamente focalizada e muito menos reconhecida como tal. As pesquisas focalizaram o que aconteceu, enquanto “o porquê” nunca foi focalizado com a devida atenção. Teremos que reconsiderar e reconhecer isso se não quisermos ser vítimas de novas afrontas e desgraças. A causa, ou seja, a introdução de um capitalismo completamente libertado do poder coordenador e restritivo do Estado, agindo em liberdade para conseguir acabar com todo e qualquer resíduo do que tradicionalmente se chamou um Estado foi à causa maior do terror que nos paralisou por tantos anos e isso tem agora que ser entendido para nosso próprio bem.

Se as causas do terror no Chile, Uruguai, Argentina e Brasil tivessem sido devidamente entendidas, hoje não teríamos nem um Iraque nem um Afeganistão nem Gaza na condição em que se encontram e nem mesmo estaríamos assistindo as danças de guerra ao redor do Irã.

A derrubada do poder democrático do Chile foi o produto de uma ação planejada, assim como o desenrolar dos acontecimentos no Uruguai, Argentina e Brasil foram fruto de um planejamento bem orquestrado para possibilitar a aplicação de uma teoria econômica que nunca poderia ter sido aplicada dentro de um sistema democrático. A teoria de Milton Friedman, a de um neoliberalismo extremo, implica na prática a destruição total das organizações tradicionalmente existentes para se construir uma forma completamente nova de poder onde qualquer coisa que se chame “Estado” não tem maiores chances de sobrevivência. Tanto a transição como os efeitos à longo prazo desse processo são tão dolorosos que nenhum povo iria se sujeitar de livre e espontânea vontade ao experimento. Por conseguinte nem tentaram aplicá-la aos Estados Unidos. Para a aplicação prática dessa teoria precisava se de um poder que contivesse a indignação popular calando-a, por exemplo, por meio de um terror paralisante e isso seria impossível dentro dos padrões democráticos tradicionais. Tudo começou nos meados de 1950 nos Estados Unidos quando CIA iniciou o financiamento de pesquisas na arte da dominância total. [1] O sistema de tortura que veio desses esforços se concretizaram na nossa carne e nas nossas mentes no tempo infeliz durante o qual fomos completamente subjugados pelos Estados Unidos e mais recentemente se concretizam no Iraque com sua central de tortura estendida a Guantánamo.

O laboratório para a aplicação da teoria econômica neoliberal de Milton Friedman acabou sendo o Chile. Os acontecimentos que levaram em 11 de setembro de 1973, a derrubada de um poder democrático para assegurar que uma ditadura militar sanguinária fosse no futuro levar a uma democracia, é uma lógica com todas as aparências de lógica de doido varrido. A lógica estringente no entanto está lá e tem um fim determinado. Age-se com a intenção de chegar a um fim bem definido. No Chile assassinaram barbaramente mais de 3200 pessoas, muitas das quais mesmo depois de mortas continuaram a ser mutiladas. Aprisionaram mais de 80 000 das quais não se sabe quantas torturadas e no exílio se jogaram mais de 200 000 pessoas. Isso não foi feito silenciosamente. Muito pelo contrário porque o objetivo não era por fim a um grupo de revolucionários armados como diziam, mas de criar e manter o terror necessário para a aplicação prática da teoria econômica. A miséria e a fome devastadora tornaram se realidade para muitos dos quais se mantiveram no país, através da queda brutal dos salários seguida do aumento exorbitante dos preços da comida básica tudo acompanhado pelo pavor de poder ser o próximo a ser levado dentro da noite para um centro especializado de tortura. Tudo isso para que? Tudo isso por causa de uma campanha monstruosa para limpar o país dos tipos subversivos que lá estavam, isso quer dizer a grande maioria dos habitantes do país, impedindo o desenvolvimento de uma doutrina econômica pura, a teoria econômica do Sr. Milton Friedman, amigo do Sr. Donald Rumsfeld, que naquele tempo não se via pelo Chile, mas que mais recentemente se pôde ver fazendo inspeções no Iraque.

Quando o verdadeiro terror começou, quer dizer o terror militar, os grupos armados já estavam controlados há muito tempo. Não eram os grupos revolucionários armados que tinham agora que ser destruídos. Era a nossa própria cultura em suas raízes mais profundas que tinha de ser destruída, era a nossa maneira de ser e pensar que tinha de ser destruída. Da mesma maneira que se trabalha um campo com um arado ou um trator para limpá-lo e amaciá-lo para uma nova plantação assim se estava trabalhando o país para uma nova realidade e maneira de ser, ver e pensar. Em outras palavras, a maneira neoliberal derivada dentro de um contexto norte americano contendo maneiras básicas de viver norte americanas. Se não puderam aplicá-la nos Estados Unidos foi porque era tão extrema que nem mesmo eles poderiam aceitá-la. Mas Chile a teve empurrada pela goela abaixo. Não foi também por mero acaso que na Argentina se concentraram em tirar as crianças das famílias revolucionárias ou em aprisionar, matar ou fazer desaparecer uma grandíssima quantidade de jovens os quais consideravam já como caso perdido para a sua causa ideológica. Pois uma ideologia é o que é. A ideologia americana.

Digno de ser lembrado é que na realidade não foram os militares latino americanos que planejaram tudo. Eles só executaram a parte prática da história. O planejamento foi feito em universidades norte americanas financiado com capital de interesses econômicos americanos e do centro de inteligência americano –CIA. Esse último em direto contato com o Pentágono e as diversas Administrações que se seguiram durante os anos. Tudo seguindo um caminho linear desde os anos cinquenta-sessenta. Agora estão no Afeganistão e dançando em torno do Irã.

Observa se que na América Latina dos anos sessenta aos oitenta, o inimigo ou o obstáculo aos cálculos dos interesses financeiros americanos aparecia na forma de elementos de esquerda, portanto o campo foi contra a esquerda, mas poderia muito bem ser qualquer outra coisa. A verdade é que não importa se é de esquerda, de direita, islamita, budista ou diabista. O que não deve existir é uma organização política, econômica ou social impedindo as ações drásticas de cortes no âmbito social e o enfraquecimento do Estado, enfraquecimento esse com vistas ao seu desaparecimento total. O ideal que eles têm em mente é um mundo no qual o correio, os postos de saúde, os hospitais, as escolas, os transportes, a indústria siderúrgica, assim como a indústria petrolífera, a polícia, as prisões, as interrogações policiais e porque não os militares e seus serviços de inteligência, enfim tudo, está em mãos particulares. Mãos essas que consideram mais efetivas. As mãos idealizadas seriam então as mãos dos “senhores doutores” com os bolsos cheios de dinheiro e com mais dinheiro à caminho. Que maravilhoso mundo novo. Seria mesmo muito maravilhoso para os que estivessem no cume da pirâmide. Para os outros seria só calar a boca e trabalhar. Se ficar doente, paga. Se morrer, não faz mal. Outros virão aqui trabalhar.

A solidariedade assim como a organização social e um Estado capaz são como conjunto o inimigo número um dessa forma de capitalismo e pelo que se nota é o capitalismo que agora se pretende impor ao Iraque ao Afeganistão e Irã, um de cada vez. Gaza estando aqui numa situação especial porque não está confrontando somente um capitalismo mordaz, mas outros tipos de subjugação também. O que tanto horroriza na situação dos prisioneiros palestinos adultos assim como das crianças palestinas aprisionadas em Israel é a total falta de direitos humanos concedidos a eles. O tipo de aprisionamento que sofrem está bem dentro das linhas de diretivas partindo dos centros de pesquisas americanos dos anos cinqüenta e sessenta.

A mídia ocidental descreve os acontecimentos em Guantánamo e Abu-Ghraib de tal forma que até se pode pensar que aquilo até que não é nada. Um capucho na cabeça, um pouco de orgia sexual e de abusos humilhantes e pronto, até que não é assim tão perigoso. Até as tentativas de afogamento com as sensações de angústia que se apresentam na experiência da própria morte conseguem apresentar como coisa leve. O que esquecem de contar é que as pessoas submetidas ao tratamento (estabelecido nos anos cinqüenta e sessenta nos Estados Unidos) acabam por perder a sanidade mental e a sua condição normal de seres humanos. O que a mídia ocidental mostra é muito pouco ou quase nada da realidade terrorizante a que os prêsos são submetidos. Pessoas dignas de crédito depois de visitarem Guantánamo em posição oficial constataram que Guantánamo mais se assemelha a um manicômio do que uma prisão. Salas cheias de gente com sintomas de loucura generalizada e sem contato com o que nós chamamos de realidade acaba por ser o resultado dos tratamentos.

Teve se algumas ilusões a respeito de Obama e Guantánamo, mas Fidel mostra que Obama não mudou em nada a política de extrema direita de seus antecessores continuando na prática não só com Guantánamo como também com:- a) política militarista; b) o saqueio aos recursos naturais; c) e o intercâmbio econômico desigual. Fidel também sublinha que o sistema apesar de ser insustentável continua a se impor porque os setores mais ricos dos Estados Unidos, assim como dos que com eles se alinham contam com a ignorância e os reflexos condicionados da opinião mundial submetida a todas as mentiras que o monopólio dos meios de comunicação e informação lhes oferecem. [2]

Pode se admirar os norte americanos por terem conseguido manter durante tantos anos seus verdadeiros motivos bem longe dos olhos e ouvidos das populações afetadas assim também como da opinião mundial. De qualquer maneira já não é possível deixar de constatar a falta de imaginação deles. O mesmo tipo de choque traumático que aplicaram ao Chile aplicaram ao Iraque. No Iraque com maior força bélica mas dentro do mesmo conceito. Aqui também infligindo um choque tão grande e um terror tão efetivo que a população atacada não conseguiu reagir de forma adequada e antes que pudessem compreender já tudo tinha mudado de forma irreversível. Traumatizar, por fora de combate e agir muito rapidamente mudando o panorama social de forma que as novas atividades econômicas entrem em ação. Eis o conceito a seguir.

Nota se que não precisa ser um trauma em forma de golpe de estado, em forma de guerra com ataque bélico indiscriminado no meio da noite. O trauma e a situação de pânico pode ser utilizado numa situação de catástrofe natural como, por exemplo, um tsunami, um terremoto. É só utilizar a situação e agir rapidamente. Invadir, talvez com o pretexto de ajudar, e na mesma virada mudar definitivamente a realidade econômica -de fato. Guerra ou catástrofes naturais. Um novo mundo abre se diante de nossos olhos estupefatos.

O que significaria para a América Latina uma volta à época dos golpes e dos esquadrões da morte? Impossível? Para que lá estão às sete bases da Colômbia por exemplo? [4]

Nos Estados Unidos está uma campanha em total swing contra a Venezuela e sua campanha eleitoral. Essa campanha envolve muitas figuras públicas tentando desacreditar o governo venezuelano e já estão tentando deslegitimizar as eleições que só ocorrerão dentro de meio ano. Um episodio é esclarecedor. Um general (do US Southern Command) chamado como testemunha ao Senado americano afirmou:- “We have continued to watch very closely...” We have not seen any connections specifically that I can verify that there has been a direct government-to-terrorist connection”. Isso quer dizer mais ou menos:- “Estivemos controlando bem de perto e atentamente... Não vimos nenhuma conexão especialmente que eu possa testemunhar de que tenha tido alguma conexão direta entre o govêrno e terrorismo”. No dia seguinte o mesmo general modificou sua declaração...e aí vem uma história suja. Será que o senhor general recebeu a informação que o time de Obama estava na maior das campanhas contra a Venezuela? O govêrno dos Estados Unidos continua a bombear milhões de dólares para dentro da Venezuela através da USAID – (agência estadunidense de ajuda) e se recusa a mostrar quem são as pessoas ou instituições que recebem esse dinheiro. Essa é a parte “aberta” das dotações. E a fonte conclui que o Departamento do Estado americano está dirigindo um jogo sujo e perigoso.[3] E com isso só se pode concordar.

Venezuela tem talvez o governo mais democrático da América Latina. Seu governo é mais que democrático é realmente um modelo para o que uma democracia deveria ser. Um governo baseado numa maioria popular de saltar aos olhos. Esse governo insiste os norte americanos de chamar de ditadura. Por quê? Porque insistem em chamar de ditador um governo tão obviamente popular como o de Hugo Chávez? Isso foi exatamente o que fizeram contra o governo de Allende.

Considere se agora os seguintes fatores apresentados publicamente em 26 de março, há dois dias atrás. [4]

O Arcebispo Romero, o arcebispo católico de El Salvador, foi assassinado há treze anos. Quem ordenou o seu assassinato foi Roberto D´Aubuisson, graduado da Escola das Américas, uma escola de guerra do pentágono americano (Pentagon´s School of the Americas at Fort Benning, Geórgia). Hoje em dia chamada Instituto Para Segurança e Cooperação (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation).

O General Romeo Velasquez , de Honduras, companheiro de D´Abuisson e vindo da mesma Escola das Américas nomeada acima, liderou o Golpe de Estado contra o Presidente Manuel Zelaya, em junho do ano passado, mais exatamente em 28 de junho de 2009.

No dia seguinte Obama recebeu Álvaro Uribe na Casa Branca e o acordo das sete bases militares na Colômbia foi anunciado.

Honduras era membro da ALBA até que seis meses depois do golpe de estado contra Zelaya em Honduras -o não popularmente eleito- Roberto Micheletti retirou Honduras da ALBA, uma importante organização para os países latino americanos em seu conjunto.

Para coroar vem os Estados Unidos ajudar nas “eleições” -(dar um golpe de estado e depois chamar isso de eleições até parece brincadeira)- que afinal acabou elegendo Porfírio Lobo. Pouco tempo depois Hillary Clinton afirmava que agora já era hora para ir adiante:- Nós achamos que Honduras -(através da eleição que em princípio já era resultado de um golpe de estado declarado)- já tomou os passos importantes e necessários para um reconhecimento seguido da normalização das nossas relações. No Congresso Americano uma avalanche de “$ 30 bilhões” dólares pôs se a caminho de Honduras.

A entrada de Honduras no bloco da ALBA em 2008 é considerada como uma das principais razões para o golpe militar de direita que seqüestrou e expulsou Zelaya do país em Junho de 2009. Foi Zelaya quem introduziu Honduras na ALBA. O que está acontecendo com ele agora? Não sei.

O que se sabe é:

O professor José Manuel Flores, um homem de princípios e trabalhador foi assassinado há quatro dias atrás, em 24 de março de 2010. Ele foi assassinado com vários tiros nas costas, tiros esses disparados por indivíduos encapuzados que entraram pelo telhado na escola onde ele trabalhava, o Instituto San José del Pedregal. O professor opunha se a que os golpistas desfrutassem em paz de uma presidência que não lhes pertencia, porque essa por direito pertencia ao povo de Honduras e a Manuel Zelaya e a nenhum outro, chame se esse Porfírio Lobo ou Barack Obama. O trabalho de oposição do professor era puramente acadêmico.

O assassinato do professor José Manuel Flores deixa a dor e o luto que está se manifestando em grandes demonstrações e também através das reações indignadas e de desgosto não só em Tegucigalpa como através do continente. Um urgente apelo de solidariedade contra assassinatos em Honduras e para a prevalência da Justiça, assim como a demanda para que não só os assassinos como seus instigadores sejam punidos vem do México ao qual se juntam diversas outras organizações do continente.

Desde o ano passado 130 assassinatos e três mil aprisionamentos dos que se opõe a vergonhosa tomada de poder em Honduras foram registrados.

Para poder mudar uma situação começa se por entendê-la. Porque fomos mortos, mutilados e postos a chorar no exílio? Porque assassinaram o professor José Manuel Flores? Só quando pudermos entender os porquês estaremos em condição de erradicar os seus efeitos e sermos efetivamente livres num mundo multipolar.

REFERÊNCIAS E NOTAS

OBS. Todo o conteúdo estrita e rigorosamente factual a respeito da “estratégia da doutrina de choque” - (o capitalismo das catástrofes e das guerras) encontra se em [1] na referência abaixo indicada.

[1] Naomi Klein, “A doutrina do choque – Disastre Capitalismo” 2008 www.novafronteira.com.br ; www.naomiklein.org

Título Original : “The Shock Doctrine – The Rise of Disaster Capitalism” 2007

[2] Fidel Castro, “La reforma sanitaria de Estados Unidos.” 25. Marzo 10 – Reflexiones de Fidel; www.grana.cu

[3] Mark Weisbrot, [A Campanha Anti-Venezuela] “The Anti-Venezuela Campaign” www.globalresearch.com ; 2010-03-18

[4] Rick Rozoff, [Mergulhos Norte Americanos na América Central. De volta à era dos golpes e esquadrões da morte] “U.S. Plunges Central America Back To Era of Coups and Death Squads”; www.globalresearch.com 2010-03-26

*Anna Malm é correspondente do Pátria Latina em Estocolmo na Suecia

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