Outra vez: sobre "frentes"

"Não há solução 'moral' ou 'de princípio' para uma questão que é política. Assim também, a questão das 'frentes' não se deixa reduzir a uma abordagem 'moralista'. É preciso considerar que a dominação das categorias morais (o 'bem'/o 'mal') sobre as categorias da análise política é sintoma, precisamente, dessa situação em que a soberania popular foi subjugada por um princípio de 'regramentos'."

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A questão da dinâmica interna e das condições de constituição de "frentes" foi posta na ordem do dia pelo apelo de Stefano Fassina. O debate que se vai criando, mesmo que seja voluntariamente poluído, ou pelos atores políticos cujos interesses compreende-se bem que o debate não interessa, ou por jornalistas à procura mais de agitação que de verdadeira informação, é debate essencial. 

É claro que a lógica das "frentes" tem importante capacidade para atrair muita gente. É claro também que essa fórmula política corresponde aos problemas do momento, agora revelados (mas não criados) pela crise grega de junho e julho 2015. Mas é também muito claro que a reflexão, sobre esse ponto como sobre muitos outros, está eivada de uma série de erros e de simplificações.

Não se faz uma frente com os "amigos" ou políticos assemelhados

Pode parecer trivial, mas é importante ter bem claramente em mente essa evidência. Uma "frente", e muito especialmente uma "frente de libertação nacional", implica a participação de correntes extremamente diversas. A fórmula das "frentes de libertação nacional" aplica-se, se se considera que o país está em vias de ser subjugado por potência estrangeira. Claro que implica divergências importantes entre os membros, como foi o caso na Resistência.

Mas essa fórmula política não é aceita unanimemente na "esquerda radical". Foi historicamente constestada nos anos 1930s, por Léon Trotski, que lhe opunha outra fórmula, muito mais restrita, da "Frente Única Operária". Mas essa fórmula só se aplica se nos pomos no ponto de vista de uma revolução social, e se se pode discernir o que é um "partido operário", sabendo que essa definição não tem significado verdadeiramente sociológico. A fórmula da "Frente Única Operária" é de uma frente que reúne assemelhados políticos. Pode-se perguntar sobre a posteridade desse pensamento, ou mais exatamente sobre as fórmulas que trouxe, mas fora do contexto tanto histórico como político, de origem. 

Uma das principais críticas à "Frente Única Operária" veio da experiência política da 2ª Guerra Mundial, tanto na Europa (e na França, no quadro da Resistência) como na Ásia. A aliança do Partido Comunista chinês com o Guomindang na "frente unida anti-Japão" (1936-1937 a 1945) é, ao contrário, um exemplo dessa lógica das "frentes de libertação nacional", e implicou que os comunistas dissolvessem (pelo menos formalmente) a "República Soviética Chinesa" que haviam constituído.[1] Deve-se lembrar que, de 1927 a 1936, a luta armada havia sido feroz entre o Guomindang e os comunistas a partir da ruptura da primeira aliança entre esses dois movimentos.[2] Essa é, pois, claramente, uma "frente" entre antigos inimigos. 

Diferente das análises de Trotski, "frentes" grandes, não limitadas à fórmula da "frente única operária", obtiveram vitórias significativas, na 2ª Guerra Mundial e também no período das lutas anticolonialismos. É significativo que o movimento trotskista se tenha esfacelado no pós-guerra, na discussão e análise das diferentes frentes de libertação nacional.

A fórmula de Fassina faz referência implícita a essa experiência geral, da 2ª Guerra Mundial e dos movimentos anticolonialismos. Ao contrário, os que contestam a própria fórmula política da "frente", teriam de nos dizer se retomam por sua conta a análise de Léon Trotski e como incorporam a crítica que a realidade impôs a essa teoria.

O exemplo chinês mostra bem que a fórmula política das "frentes" não implica de modo algum acordo muito extensivo entre os membros da chamada "frente". Implica, isso sim, um acordo sobre a existência ou não de uma prioridade. 

A evidência de que a direção do Partido Comunista chinês aceitou formar uma frente com os mesmos que, menos de dez anos antes jogavam os militantes chineses nas caldeiras de locomotivas, deveria inspirar um pouco mais de humildade (e de reflexão) aos que se deixam cegar contra a lógica dessa "frente". Não se faz "frente de libertação nacional" só com amigos - melhor que todos saibam bem disso.

Ao contrário, os que insistiram a todo custo em não sujar as mão, muito frequentemente tiveram de decepá-las. O que implica pensar, ao mesmo tempo, e tão rigorosamente como seja possível, as condições sob as quais se pode considerar necessária uma "frente" desse tipo

A "frente" e a questão da oportunidade

Acontece também que a fórmula de uma "frente", incluída na lógica de uma frente de libertação nacional, implica que nós consideramos que uma questão - a da soberania da nação -, tornou-se dominante em relação às demais, e que essa questão e sua solução são a condição necessária para que se possam propor outros debates. Desse ponto de vista, a fórmula política da "frente" não pode ser dissociada da análise política da situação. Não existe a fórmula da "frente", se se abstrái essa realidade.

O que leva a considerar a necessidade, hoje, dessa fórmula, é a compreensão de que a questão do euro não é questão só econômica (é também econômica, claro), mas também se tornou o pivô de uma recomposição antidemocrática da governança no seio da União Europeia: o euro é a garantia de que a finança domina e continuará a dominar a França. Mesmo que os países que não adotaram o euro possam conhecer políticas extremamente nefastas, é preciso demonstrar aqui como um país da zona do euro conseguiu fazer política alternativa. A crise grega decidiu essa questão.

Um colega italiano, o filósofo neomarxista Diégo Fusaro, fala do "euro como forma de governança".[3] Está absolutamente correto. A questão do euro é o C'est entièrement juste. A questão do euro é um acréscimo no conjunto das políticas econômicas e sociais nos países da Eurozona, mas, além disso, ela manifesta e justifica que aqueles países tenham perdido a soberania. 

Tivemos um exemplo com a ratificação do Traité sur la Stabilité, la Coordination et la Gouvernance, TSCG [Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governança] ) em setembro de 2012. Para ver que essa questão do euro é questão eminentemente política. O fato de isso se ter tornado "conhecimento generalizado" ou uma "evidência" depois dos eventos de junho e julho de 2015, implica uma mudança nas fórmulas políticas. É o sentido do apelo de Stefano Fassina.[4] 

A situação criada pelas instituições da Eurozona, sejam de direito ou de fato (como o Eurogrupo) não começou com essa crise. Mas a tomada de consciência, e em vários países, data realmente, sim, dessa crise. É o que trouxe para a ordem do dia essa questão das "frentes", quer as chamemos de "frentes de libertação nacional" como Stefano Fassina quer de "frentes anti-euro" como tenho chamado. 

O que põe na ordem do dia essa questão é uma realidade somada a umanecessidade. Desse ponto de vista, a questão do posicionamento de um ou outro 'discutidor' é realidade secundária. Em primeiro lugar vem a questão da análise da situação política e do debate que convém que haja sobre ela. Mas convém saber que nada absolutamente assegura que os atores cheguem a resolver essa questão. Não a resolvendo, a situação continua a evoluir e as forças em confronto, a transformarem-se. A constituição de uma "frente" nessas condições é também um meio de procurar transformar a situação, de fazê-la evoluir num sentido positivo.

Todo e qualquer discurso que faça da questão dessas "frentes" um problema de princípio é, portanto, discurso vão, discurso vazio de significado. Não há solução "moral" ou "de princípio" para uma questão que é política. Assim também, a questão das "frentes" não se deixa reduzir a uma abordagem "moralista". É preciso considerar que a dominação das categorias morais (o "bem"/o "mal) sobre as categorias da análise política é sintoma, precisamente, dessa situação em que a soberania popular foi subjugada por um princípio de "regras".

A frente não é questão de oportunidade 

Maa a questão de constituir-se uma "frente" implica que se defina não só ocontra o quê se quer lutar mas também as condições dessa luta. Vê-se especialmente nas "frentes de libertação nacional" quando se põe a questão da negociação com a potência colonial: é preciso negociar? quando e sob que condições? Essas questões são importantes e elas determinam a possibilidade, ou não, de abrir a "frente" a certas forças - e determinam, mesmo, a existência dessas "frentes". A questão política põe-se portanto já no plano da constituição dessas "frentes"; e continuará a pôr-se durante toda a existência da "frente".

Essa questão assume concretamente a forma da relação com o euro; entra-se mais uma vez numa lógica de acomodamentos possíveis (pode-se dizer de "apaziguamento", no sentido 'muniquense' [orig. 'munichois'[5]] da palavra[6]) com o Eurogrupo, ou não. É importante que essa base de partida seja rapidamente esclarecida.

Mas não basta rejeitar o euro. É preciso que haja um acordo, pelo menos implícito, sobre as medidas a serem tomadas na sequência. Porque, por mais que o euro seja hoje um problema político, desmontá-lo implica uma evidente dimensão técnica, e essas medidas técnicas não poderão ser postas em ação se não tiverem como base um acordo político geral. Essa é a razão pela qual fiz referência explícitga ao Conseil National de la Résistance [Conselho Nacional da Resistência], porque naquele caso estava bem claro que o objetivo não poderia ser exclusivamente libertar o território, do jugo nazista.

Isso implica claramente que todos os partidos e 'lados' que passem a fazer parte dessa "frente" têm de abandonar toda e qualquer referência à "preferência nacional" fora, bem entendido, dos setores soberanos, onde aquela preferência não é discutível. A ideia da preferência nacional, fora das profissões específicas (ligadas às funções soberanas do Estado, que incluem segurança, justiça e educação), é na realidade inconstitucional, se se considera o preâmbulo da Constituição.[7] 

O mesmo vale para os direitos que se chamam "sociais" e que são a contrapartida da contribuição paga por assalariados e empregadores. A razão conjuntural, ligada ao objetivo da Frente, é que, numa lógica de saída do euro, os mecanismos de retorno ao emprego devem poder operar sem qualquer obstáculo. Muito concretamente, e além das razões de princípio como expostas no preâmbulo da Constituição, toda segmentação do mercado de trabalho sob a forma de aplicação de alguma "preferência nacional" levará a pressões inflacionais importantes, que poderão comprometer os efeitos positivos que se esperam da saída do euro.

Essa é uma das razões pelas quais não se pode sequer imaginar, hoje, que o partido Front National [de Marine Le Pen] venha a participar dessa "frente"; e se pode prever que o movimento político de Nicolas Dupont-Aignan, Debout la France, venha a integrar-se plenamente. Mas isso significa que é preciso manter-se atento às evoluções políticas de uns e de outros e, em função dessas evoluções, estar pronto para reconsiderar a questão da participação de tal ou qual movimento ou partido, nessa "frente". E isso vale igualmente para frações do Partido "Socialista", que serão participantes naturais de tal "frente", tão logo abandonem seu apego religioso ao euro. Relembro aqui, mais uma vez, que Stefano Fassina foi membro (e ministro) do partido de centro-esquerda do atual primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi. *****


27/8/2015, Jacques Sapir, Hipothèses

 

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