Mariana: Saint-Hilaire, um naturalista francês no Rio Doce em 1818

Arthur Soffiati, ecohistoriador e ambientalista

Três anos depois da passagem do príncipe alemão naturalista Maximiliano de Wied-Neuwied pelo Rio Doce, foi a vez do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire passar pelo mesmo rio. Ele foi um grande viajante. Chegou a muito mais lugares que o príncipe. Saint-Hilaire era mais pragmático que o alemão; não sabia descrever paisagens de forma panorâmica como o príncipe. Seja como for, suas observações são valiosas.

Primeiramente, ele fica fascinado com a grandiosidade da Bacia do Doce, embora apontasse os obstáculos a sua navegação. "Mesmo nas marés altas ou na estação das águas, apenas permite a entrada de pequenas embarcações. Numa distância de 22 léguas, da foz até o Rio Guandu, barcos de fundo chato podem subir o rio, navegando à vela." Por esta razão, propõe a abertura de canais laterais às corredeiras e quedas d'água, bem como o rebaixamento de pedras em trechos inacessíveis a embarcações.

Como os demais cientistas de sua época, Saint-Hilaire acreditava que as doenças contagiosas eram transmitidas pelas emanações mefíticas de águas paradas e pútridas. No caso do Rio São Francisco, elas são mais raras porque as águas de transbordamento do rio retidas nas margens eram logo evaporadas, já que o tipo de vegetação favorecia a penetração dos raios solares. Não assim com o Rio Doce e seus afluentes porque "As espessas florestas que sombreiam suas margens impedem a ação do sol; a evaporação das águas transbordadas se efetua lentamente, continuando de um ano para outro, e em qualquer estação é perigoso descer ou subir o rio."

Embora com gargalos para a navegabilidade, "Toda a parte do rio que percorri, no primeiro dia de viagem, não tinha mais de 3 ou 4 pés de profundidade; mas esta, durante a estação das chuvas, aumenta de modo considerável. Quase na foz, suas águas são muito doces e podem ser bebidas."

As florestas também encantaram o naturalista. Num dos trechos mais fascinantes da descrição e análise do Rio Doce, ele reflete sobre a Mata Atlântica: "... eu me sentia humilhado diante desta natureza tão possante e austera; minha imaginação se assustava, quando eu pensava que as matas imensas que me cercavam se estendiam para o norte, muito além do Rio Grande de Belmonte; que elas ocupam toda a parte leste da Província de Minas Gerais; que cobrem, sem qualquer interrupção, as do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, parte da Província de São Paulo, completamente a de Santa Catarina, o norte e o oeste da Província do Rio Grande do Sul..."

A respeito da ocupação do vale do Rio Doce, ele menciona a mineração em Minas Gerais, a agricultura, a pecuária e a urbanização. Quanto à mineração, o naturalista faz um registro altamente significativo para nós, mostrando que a catástrofe recente no Rio Doce pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da Samarco tem raízes antigas. Em suas palavras,  "na época das águas,  (as torrentes do rio) chegam carregadas de limo avermelhado, que é simplesmente o resíduo da mineração da Província de Minas." Ele se refere a descargas bem menos volumosa que a atual, mas revela que os descuidos com o ambiente eram aceitos com naturalidade. Ele mesmo não condenava os despejos. Saint-Hilaire e os brasileiros viviam num momento da história ocidental em que ainda havia muita natureza e em que se apostava na inesgotabilidade dela. É o que chamamos de síndrome da inesgotabilidade. Embora em menor escala, os processos de destruição são os mesmos: mineração devastadora, desmatamento, erosão, assoreamento, poluição etc.

Mesmo já alterado pela ação do colono luso-brasileiro, o Doce, para ele, era "O rio (que) corre majestosamente abaixo da vila (de Santa Cruz de Linhares),  (com) muitas ilhas (que) se elevam no meio dele e, do outro lado da margem, avista-se o engenho de Bom Jardim, rodeado de terrenos cultivados, que contrastam com as florestas virgens."

Nas suas observações sobre as atividades econômicas praticadas na bacia, ele chama a atenção para a mineração: "Ribeirão do Ouro Preto (...) aí, é apenas um riacho insignificante subdividido sem cessar pelos mineradores (que) já no fim do século 18 lastimavam o esgotamento de suas minas e o de suas terras de cultivo." A economia predatória no Brasil vem dos primórdios da colonização. Lembremos do pau-brasil, da cana-de-açúcar e das minas.

Mas Saint-Hilaire ainda conheceu a Bacia do Doce com florestas contínuas habitadas por veados, onças, porcos do mato, antas, macacos e muitos insetos picadores. Em sua visão, contudo, o maior perigo eram os botocudos, confirmando a opinião de Maximiliano de Wied-Neuwied manifestada em 1815. As roças de mandioca, abóboras e melancias em meio as matas ainda eram pequenas e escassas, assim como as habitações. Contrariando as palavras de Maximiliano, ele informa que o vegetal mais cultivado nos arredores de Linhares era a mandioca. Como a concepção de desenvolvimento ocidental já estava em curso em 1818, o botânico propõe o aproveitamento agrícola da região perto da foz do Doce.

Linhares era o núcleo urbano mais importante nas cercanias da foz. Sua população, segundo o autor, era constituída por "... alguns aventureiros, mulheres de má vida e índios que fugiam às perseguições do governador  (que) juntaram-se neste núcleo e eis o que forma hoje a população de Linhares." Pelo menos, o Brasil teve um forte contingente de aventureiros e de mulheres "de má vida", como fala o botânico, na sua colonização. As mulheres não eram perigosas, mas os aventureiros sim, pois queriam ganhar dinheiro fácil.

Saint-Hilaire menciona as duas lagoas de Juparanã. Linhares ergueu-se perto de uma delas. Em suas palavras, "No tempo das águas, esse lago transborda e vai desaguar no mar, no lugar chamado Barra Seca (...) Não é só a Diocese do Rio de Janeiro que finda em Barra Seca; lá também acaba a jurisdição administrativa do Espírito Santo."

Para nós, as palavras do botânico francês mostram que a lógica da economia de mercado, que se desenvolve ao custo da predação da natureza e do ser humano, já estava em curso no seu tempo. Os reflexos diretos da revolução industrial do fim do século 18 ainda não eram sentidos no Brasil, típica colônia de exploração de Portugal e das "nações amigas".

Curioso notar que, tanto Maximiliano quanto Saint-Hilaire, propõem timidamente um estilo de desenvolvimento que implicará na destruição de rios, florestas e povos nativos, que tanto fascinavam os dois naturalistas.

 

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