Bloco de Esquerda toma iniciativa depois da onda de abusos sexuais de menores em Portugal

Exposição de motivos

Recentemente a sociedade portuguesa foi assombrada por uma onda de horror face aos inúmeros relatos de abuso sexual de menores e à denúncia da existência de redes pedófilas em Portugal. Todos os dias a comunicação social divulga novas informações sobre esta questão.

É, pois, necessário reflectir e repensar as formas de agir e, perante a impossibilidade prática de evitar totalmente a sua efectiva ocorrência, pelos menos encontrar formas de prevenir que no futuro tais crimes se repitam anos a fio, de uma forma tão silenciosa, e atingindo um tão grande número de crianças.

Olhando para a história da Humanidade constatamos que as práticas pedófilas nem sempre foram socialmente censuradas. De facto durante a Antiguidade e até ao séc. III d.C., em Roma, na Grécia, na Babilónia, existiam locais de prostituição infantil. A venda de crianças para estes prostíbulos era comum na Índia, na China e na Pérsia. Também no Egipto, era comum este tipo de práticas com meninas das classes mais elevadas antes das mesmas atingirem a puberdade, motivadas, neste caso, por crenças religiosas.

Em Roma a criança era considerada propriedade do pai, e tal como defendia Aristóteles, como não era possível ser-se injusto com a sua própria propriedade, nenhum comportamento do pai para com o filho poderia ser tido como injusto. O pai detinha o direito à vida do seu filho, sendo por isso o infanticídio uma prática bastante recorrente, quer por motivos religiosos, através do sacrifício das crianças, quer para eliminar filhos ilegítimos ou simplesmente controlar a natalidade.

A primeira grande alteração de mentalidades verifica-se durante a governação do Imperador Constantino que, mercê da sua conversão ao cristianismo e aos respectivos valores, elabora a primeira lei que proíbe o infanticídio.

Na Idade Média os maus tratos infantis eram comuns, sendo os mais frequentes o abandono, a negligência e os maus tratos físicos. Relativamente às práticas sexuais com menores, nomeadamente com adolescentes, estas eram generalizadas e admitidas.

Ao longo dos séculos foi evoluindo, embora muito lentamente, a ideia de que as crianças necessitam de protecção. Também as formas de efectivação da protecção dos menores foram sofrendo um processo análogo, como consequência imediata dessa mudança de pensamento.

Foi Rosseau, quem, no século XVIII, declarou a criança como um ser com valor próprio, com direitos e capacidades, que tornavam fundamental o conhecimento das suas necessidades. Contudo, só no século seguinte, e em consequência da Revolução Industrial, nasceu um verdadeiro interesse por este tema.

O primeiro caso de maus tratos infantis que foi oficialmente reconhecido como tal, data de 1874. Mary Ellen, uma menina nova iorquina, com 9 anos, era vítima de espancamento e de abandono, e foi encontrada amarrada com correntes aos pés da cama, por uma voluntária da Sociedade Americana Para Prevenção da Crueldade com os Animais. Perante a inexistência de qualquer norma que acautelasse tal situação, e face à impuniblidade do mesmo, em Tribunal foi argumentado que a menina mereceria pelo menos a mesma protecção que um cão. Foi, pois, através da reivindicação para uma criança dos direitos de um cão que se obteve o primeiro reconhecimento por um tribunal da existência de maus tratos infantis.

O primeiro grande impulso internacional no sentido do reconhecimento dos direitos da criança surge após a I Guerra Mundial, com a criação da União Internacional de Socorros às Crianças com a aprovação pela Sociedade das Nações da “Carta dos Direitos da Criança”, em 1924.

Após a II Guerra Mundial, no âmbito da Organização das Nações Unidas, foi criado um organismo dedicado às crianças, aos seus direitos e problemas – a UNICEF. Em 1959, foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a “Declaração dos Direitos da Criança”, praticamente onze anos depois da aprovação da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Nos anos 70, a questão dos maus tratos infantis, especialmente a questão dos abusos sexuais, beneficiou de novo impulso através dos movimentos feministas, e com a revelação por muitas mulheres dos abusos sexuais e outros maus tratos que haviam sofrido na infância.

Por último não podemos deixar de referir a “Convenção dos Direitos da Criança”, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 e ratificada em Portugal em 1990. Aliás, recentemente foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República Portuguesa a ratificação do “Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil, adoptado em Nova Iorque, em 25 de Maio de 2000”.

O primeiro Código Penal Português, de 1886, integrava os crimes sexuais no capítulo relativo aos “Crimes contra a Honestidade”, consequência da confusão que existia na época entre sexo e moral e que ainda hoje permanece em algumas situações.

Este Código distinguia:

- Atentado contra o pudor: o qual podia ser cometido contra pessoas de ambos sexos; no entanto, no caso de menores de 12 anos a aplicação da pena não dependia da prova da violência; - - Estupro voluntário: o qual só podia ser praticado contra mulher virgem maior de 12 anos e menor de 18, distinguia-se da violação porque não havia violência mas sedução; e - - Violação: que apenas abrangia as mulheres e as menores de 12 anos. - Todos estes tipos dependiam de queixa, excepto no caso dos menores de 12 anos, ou no caso de ter sido cometido através de alguma violência qualificada pela lei como crime, e cuja acusação não dependesse de queixa ou de acusação de parte, ou no caso de se tratar de pessoa miserável ou que se achasse a cargo de estabelecimento de beneficência.

O procedimento judicial criminal prescrevia passados 15 anos, se ao crime fosse aplicável pena maior, 5 anos, se lhe fosse aplicável pena correccional, e 1 ano se lhe fosse aplicável pena que coubesse na alçada do juiz de direito em matéria correccional. Relativamente aos procedimentos que dependessem de queixa, os mesmos prescreviam ao fim de 2 anos, se ao crime correspondesse pena maior, e 1 ano se a pena aplicável fosse correccional. O prazo de prescrição contava a partir da data do crime, ou no caso de antes desse prazo ter decorrido algum acto judicial contar-se-ia desde o último acto.

Em 1947, a punição por crime de atentado ao pudor independentemente da prova da culpa passou abranger as menores de 16 anos.

O atentado ao pudor é uma espécie de tipo residual, isto é, sempre que a conduta não configure um crime de estupro ou violação integra este tipo criminal, através do qual se pretendia a protecção do pudor individual da vítima, independentemente do seu sexo e do mesmo ser praticado directamente sobre ela ou diante dela, mas contra ou sem a sua vontade. Para se verificar a consumação deste tipo de crime bastava a existência de um qualquer acto de execução.

O crime de estupro voluntário verificava-se sempre que o consentimento da mulher para a primeira cópula tivesse sido obtido por meio de sedução. Entendendo a jurisprudência a sedução como qualquer processo usado pelo homem, adequado para vencer a natural resistência à primeira cópula de mulher menor de dezoito anos. Outro dos elementos do crime era a virgindade, sendo necessária a sua prova, o que acabava por transformar a vítima em acusada.

A violação abrangia somente as mulheres, independentemente da virgindade, embora a desfloração constituísse circunstância agravante. Este tipo de crime não incluía a possibilidade de violação entre casados, pois neste caso a cópula, ainda que sem o consentimento da mulher, não era considerada ilícita. Para se verificar a consumação da violação era necessária a violência física ou uma intimidação, que não sedução, ou estar a mulher privada do uso da razão ou dos sentidos.

A violação de raparigas menores de 12 anos, ou no caso da vítima se encontrar privada do uso da razão ou dos sentidos, era considerada um crime qualificado, independentemente da virgindade da vítima, da existência de qualquer tipo de violência ou de fraude.

O Código Penal de 1982 em termos de tolerância pouco evoluiu em relação ao código anterior. Tal como o Código Penal de 1886, não criminalizava a homossexualidade, nem a prostituição, mas deixou de prever como crime o adultério e, relativamente aos crimes de carácter sexual, prevaleceu o princípio de que as práticas sexuais mantidas por adultos, em privado e desde que com o consenso de ambos, eram irrelevantes do ponto de vista jurídico-penal.

Contudo, este Código, ao manter uma tolerância com mais de 100 anos, foi alvo de várias críticas, nomeadamente pelo facto dos crimes sexuais integrarem o capítulo relativo aos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social, e não o dos crimes contra as pessoas. Mais uma vez prevalece a confusão entre moral e sexo, tutelando-se a moral social e não a liberdade sexual do indivíduo. Como consequência dessa opção os crimes sexuais eram menos sancionados que os crimes contra o património. Por exemplo, a pena prevista para a violação, que constitui indubitavelmente um crime contra a liberdade e dignidade, podia ir até aos oito anos, enquanto que a prevista para o furto qualificado podia ir até aos dez anos.

O Código Penal de 1982 previa, entre outros, como crimes sexuais:

- a violação, - a violação de mulher inconsciente, - a cópula mediante fraude, - o estupro, - o atentado ao pudor com violência, - o atentado ao pudor com pessoa inconsciente, - a homossexualidade com menores. - Tal como no Código Penal anterior apenas as mulheres podiam ser vítimas de violação. Relativamente às menores de 12 anos, a cópula era sempre considerada violação independentemente dos meios empregues. Mais uma vez a mulher era julgada por ter sido violada, pois se através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente tivesse contribuído de forma sensível para o facto a pena era especialmente atenuada. As menores de 14 anos eram incluídas na violação de mulher inconsciente.

O estupro abrangia as raparigas entre os 14 e os 16, sendo necessário que existisse um abuso da sua inexperiência ou que tivesse havido uma promessa séria de casamento.

Os atentados ao pudor praticados contra menores de 14 anos eram punidos com pena de prisão até 3 anos, entendendo-se por atentado ao pudor o comportamento pelo qual outrem é levado a sofrer, presenciar ou praticar um acto que viola, em grau elevado, os sentimentos gerais de moralidade sexual.

A homossexualidade com menores abrangia os menores de 16 anos que fossem desencaminhados para a prática de acto contrário ao pudor e só podia ser praticada por maiores, sendo punida com pena de prisão até 3 anos.

O procedimento criminal dependia de queixa do ofendido, do cônjuge ou de quem sobre a vítima exercesse poder paternal, tutela ou curatela. O crime seria apenas público quando a vítima fosse menor de 12 anos, ou o facto fosse cometido por meio de outro crime que não dependesse de acusação ou queixa, ou quando o agente fosse o titular do direito de queixa, ou quando do crime resultasse ofensa corporal grave, suicídio ou morte da vítima.

Nos termos do Código Penal de 1982 o procedimento criminal extinguia-se após o decurso de 15 anos, relativamente aos crimes a que correspondesse uma pena de prisão com um limite máximo superior a 10 anos; 10 anos para os crimes cuja pena máxima fosse igual ou superior a 5 anos mas inferior a 10; 5 anos para os crimes punidos com pena de prisão máxima entre 1 e 5 anos, e 2 anos para os restantes casos.

Face às molduras penais previstas para os crimes sexuais, a violação prescrevia ao fim de 10 anos e os demais ao fim de 5 anos.

Com a reforma de 1995 do Código Penal assume-se, por fim, que o bem jurídico protegido é a liberdade sexual, consequentemente, o capítulo que integra os crimes sexuais tem como epígrafe “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, que por sua vez se integra no título relativo aos crimes contra as pessoas, o que é bem elucidativo da postura de ruptura com a tutela da moral social através deste tipo de crimes que até então se conseguira impor.

O conceito de atentado ao pudor é substituído pelo de acto sexual de relevo. As penas foram revistas de forma a diminuir as enormes assimetrias com os crimes contra o património. Há uma distinção entre os crimes que atentam de forma directa contra a liberdade sexual e os que atentam contra o livre desenvolvimento sexual.

O Código Penal de 1995 tipificou pela primeira vez em Portugal algumas condutas como crimes autónomos:

- abuso sexual de crianças, punindo quem praticasse acto sexual de relevo com menor de 14 anos ou o levasse a praticá-lo consigo ou com outrem; - - abuso sexual de adolescentes e dependentes, quando praticado relativamente a menores entre os 14 e os 16 anos por quem estivesse encarregue da sua educação ou assistência, ou a menores entre ao 16 e os 18 por quem estando encarregue da sua educação ou assistência abusasse dessa função ou da posição que detinha. - O estupro passa a abranger apenas as situações em que há um aproveitamento da inexperiência.

O procedimento criminal dependia de queixa, excepto quando de qualquer deles resultava o suicídio ou a morte da vítima, ou ainda no caso de a vítima ser menor de 12 anos e o Ministério Público considerar que se impõem especiais razões de interesse público. O prazo de prescrição previsto para os crimes de abusos sexuais contra menores era de 10 anos.

No entanto, esta reforma foi também alvo de diversas críticas, nomeadamente de que deveria ter consagrado soluções mais avançadas no domínio dos crimes sexuais. O conceito de acto sexual de relevo foi considerado excessivamente indeterminado. A violação não incluía o coito oral

O código foi alterado pela Lei n.º 65/98 que conferiu aos artigos relativos aos abusos sexuais de menores a redacção actual.

Actualmente o Código Penal Português pune como crimes contra a autodeterminação sexual:

- o abuso sexual de menores (art.º 172º); - o abuso sexual de menores dependentes (art.º 173º); - os actos sexuais com adolescentes (art.º 174º); - os actos homossexuais com adolescentes (art.º 175º) - o lenocínio e tráfico de menores (art.º 176º) - Assim, quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. Mas se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. O crime de abuso sexual de crianças inclui também a prática de actos de carácter exibicionista, actuações por meio de conversas obscenas ou por escrito ou por espectáculo ou objecto pornográfico, utilização dos menores em fotografia, filme ou gravação pornográfica e a exibição ou cedência desses materiais, sendo nestes casos o agente punido com pena de prisão até 3 anos ou entre 6 meses e 5 anos se praticar os factos com intenção lucrativa.

Quando estejam em causa menores entre os 14 e os 18 anos que tenham sido confiados para educação ou assistência ao agente e o mesmo praticar ou levar o menor a praticar acto sexual de relevo, ou praticar cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de 1 a 8 anos. Estando em causa os actos exibicionistas e demais condutas previstas pelo artigo 172º, n.º3, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano, e se tiver intenção lucrativa até 3 anos.

O abuso da inexperiência de menor entre 14 e 16 anos, por quem for maior, para ter cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.

Quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menores com idades compreendidas entre os 14 e os 16, ou levar a que estes os pratiquem com outrem é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias. Não são punidos os actos homossexuais entre maiores nem entre menores.

Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor entre 14 e 16 anos ou prática por este de actos sexuais de relevo, é punido com pena de prisão entre 6 meses e 5 anos. Quem levar menor de 16 anos à prática de prostituição ou de actos sexuais de relevo no estrangeiro, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. Se tais factos forem praticados com recurso à violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, actuação profissional ou com intenção lucrativa de aproveitamento de incapacidade psíquica da vítima, os se a vítima for menor de 14 anos, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.

Quem for condenado pela prática de qualquer um destes crimes, face à gravidade do facto e havendo conexão com a função exercida pelo agente, é inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou curatela, por um período de 2 a 15 anos.

Acessoriamente, se o autor for titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração, cometer algum dos referidos crimes no exercício da sua actividade, e se o crime for praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes. Se o facto revelar indignidade no exercício do cargo ou implicar a perda de confiança necessária ao exercício da função, é também proibido de exercer as suas funções por um período de 2 a 5 anos. O mesmo se passa relativamente às profissões ou actividades cujo exercício dependa de autorização ou homologação da autoridade pública.

O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando da prática do crime resultar suicídio ou morte da vítima, ou quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e a legitimidade para requerer procedimento criminal seja do agente do crime, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. Nestes casos previstos, pode o Ministério Público decidir-se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da vítima, ponderado com o auxílio de relatório social. Essa suspensão pode durar até ao limite máximo de 3 anos, após o que dá lugar a arquivamento, em caso de não aplicação de medida similar por infracção da mesma natureza ou de não sobrevir naquele prazo queixa por parte da vítima, nos casos em que possa ser admitida. Se os crimes tiverem sido praticados contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.

O procedimento criminal prescreve decorridos 10 anos.

É, pois, fácil de constatar a timidez com que o legislador foi assumindo a gravidade destes crimes. Todavia, não podemos deixar que essa mesma timidez se sobreponha à necessidade de protecção dos menores vítimas destes tipos de crime.

Alguns passos já foram dados nesse sentido, nomeadamente através da Lei n.º 99/2001, que veio permitir a actuação do Ministério Público, em determinadas situações, sem necessidade da existência de uma queixa. Contudo, isso não é suficiente, é essencial que o Ministério Público possa actuar sempre sem necessidade de queixa.

A natureza pública, semi-pública ou particular de um determinado tipo criminal resulta da necessidade de protecção dos bens jurídicos em causa assim como da gravidade, para a sociedade ou para o indivíduo, da violação desses mesmos bens jurídicos.

Ninguém terá dúvida em classificar este tipo de crimes como muito graves, quer para a vítima, quer para a sociedade. Em Portugal, o alarme social provocado pelos recentes escândalos relacionados com o abuso sexual de menores são exemplo dessa mesma gravidade, à semelhança do que já acontecera noutros países como, por exemplo, a Bélgica.

O artigo 69º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito das crianças à protecção do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral. Este desenvolvimento integral, de acordo com o Prof. Gomes Canotilho e o Dr. Vital Moreira, “assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana (cfr. art.º 1º), elemento «estático» mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades” (“Constituição da República Portuguesa - Anotada”, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 1993, 3ª Edição).

Trata-se de um direito fundamental das crianças, o que impõe a natureza pública deste tipo de ilícito criminal, por se tratar de um verdadeiro interesse público.

Por outro lado, o crime de maus tratos, artigo 152º do Código Penal, tem a natureza de crime público. Ora, o abuso sexual de menores é classificado pelos técnicos como uma forma de mau trato, logo deveria ter um tratamento semelhante. Outro exemplo elucidativo do tratamento diferenciado do Código Penal relativamente à natureza pública dos tipos criminais é a ofensa à integridade física qualificada (artigo 146º Código Penal), isto é nos casos em que alguém ofende o corpo ou saúde de outrem em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre as quais se inclui a possibilidade da vítima ser uma pessoa particularmente indefesa em razão, por exemplo da idade.

“Falar de Abuso Sexual é falar de maus tratos, na sua forma mais carnal e sentida, com toda a certeza. Neste jaez, a vítima do abusador sexual é ofendida no seu supremo direito à integridade física e moral. Vê comprometido o seu direito à integridade física e moral, vê comprometido o seu direito a um integral desenvolvimento físico, afectivo e social (direito à alegria de viver os “verdes anos” sem atropelos impostos, sem vivências sexuais precoces não consentidas), vê-se impedida no seu absoluto direito de viver como criança o tempo de ser criança, (…) sem responsabilidades, remorsos ou culpabilidades prematuras…

O menor violentado na sua sexualidade deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projectada ou construída. A história que lhe vão impor ultrapassa-o em velocidade e substância, deixa de ser “sua” para passar a ser aquela que lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um “não” ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas uma imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor, tantas vezes silenciadas em nome de um amor maior…” (“O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia”, Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, Almedina, 2002, pág. 39).

Relativamente às vítimas “há que salientar que o abuso é uma experiência e não uma desordem (Becker & Bonner, 1998). Assim, não existe um síndroma clínico específico das crianças abusadas e estas podem apresentar uma grande variedade de sintomas ou mesmo nenhuns. (...) uma revisão dos estudos levada a cabo por Saywitz e colaboradores (2000) situa este número entre 21 a 49% das crianças analisadas. (...) as crianças abusadas parecem apresentar um maior nível de sintomatologia do que os seus pares (...) mais sintomas de internalização, externalização, bem como problemas ao nível do ajustamento sexual.” (“Violência e Vítimas de Crimes, Vol. 2 – Crianças”, Carla Machado e Rui Abrunhosa Gonçalves (Coords.), Edições Quarteto, 2002, pág. 50).

De acordo com a Prof. Teresa Magalhães, directora da Delegação do Porto do Instituto de Medicina Legal, os casos de abuso sexual “colocam grandes dificuldades de detecção e diagnóstico dado que: a) raras vezes resultam lesões físicas ou existem vestígios de outro tipo que constituam indicadores, porquanto: b) - na maior parte dos casos com crianças pequenas não há penetração anal ou vaginal; - quando há penetração, a ejaculação dá-se, muitas vezes, fora das cavidades; - frequentemente, a criança e as roupas são lavadas; - geralmente, o período entre a ocorrência e o exame médico-legal é superior a 48 horas, o que torna difícil, se não impossível, os estudos para pesquisa do esperma; b) o tabu social implícito (vergonha, medo) dificulta o pedido de ajuda; c) os menores, sobretudo os de idade mais baixa, podem confundir a relação com uma manifestação afectiva “normal” ou podem estar submetidos à pressão do segredo imposto pelo abusador. (...) 3.2. Sintomas: a) dor na região vaginal ou anal; b) prurido vulvar; 3.2.1. nas crianças: a) perturbações funcionais: - apetite: anorexia, bulimia; - sono: terrores nocturnos; - regulação de esfíncteres: incontinência para a urina ou fezes; - dores abdominais inexplicadas e recorrentes; b) obediência exagerada aos adultos e preocupação em agradar; c) pobre relacionamento com as outras crianças; d) condutas sexualizadas: - interesse e conhecimentos desadequados sobre questões sexuais (traduzidos, por exemplo, pelo uso de linguagem específica e desapropriada para a idade); - masturbação compulsiva; - desenhos ou brincadeiras sexuais explícitas; e) comportamentos agressivos. 3.2.2. nos jovens: a) comportamentos aparentemente bizarros, como: - dormirem vestidas com roupa de dia; - urinarem de propósito a cama esperando que os lençóis molhados evitem que o abusador as toque; - destruição ou ocultação de sinais de feminilidade que possam ser atractivos; - recusa para tomarem banho ou se despirem nos vestiários, não querendo fazer ginástica; - recusa em ir à escola, ou voltar da escola para casa; b) perturbações do foro sexual: - comportamentos auto-eróticos extremos (ex.: masturbação em frente dos outros, interacção sexual com os companheiros, abuso sexual de crianças mais pequenas, condutas sedutoras com adultos; (trata-se de comportamentos adquiridos pelo que é importante não criticar ou acusar a criança ou jovem); - repulsa em relação à sexualidade c) comportamentos desviantes: - abuso de álcool e drogas; - delinquência; - prostituição; d) outras perturbações: - depressão; - auto-mutilação; - comportamento suicida; - fuga. (...).” (“Maus Tratos em Crianças e Jovens”, Teresa Magalhães, Edições Quarteto, 2002, págs. 55 a 57)

É importante reflectir, também um pouco sobre o perfil do agressor. De acordo com o DSM-IV, Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, da American Psychiatric Association (Climepsi Editores, 4ª Edição, Texto Revisto), “os sujeitos podem limitar as suas actividades aos seus próprios filhos, enteados ou parentes, ou podem vitimar crianças fora da sua família. Alguns sujeitos com esta perturbação ameaçam a criança para evitarem ser descobertos. Outros, particularmente os que vitimam frequentemente as crianças, desenvolvem técnicas complicadas para se aproximarem delas, o que pode levá-los a tentar ganhar a confiança da mãe da criança, casar com uma mulher com um filho atraente, traficar crianças com outros sujeitos com Pedofilia ou, em casos raros, trazer crianças adoptadas de países não industrializados ou ratá-las a estrangeiros. Excepto nos casos em que a perturbação se associa ao Sadismo Sexual, o sujeito pode ser generoso e muito atencioso face às necessidades da criança com o objectivo de conquistar o seu afecto, interesse e lealdade e evitar que ela relate o comportamento sexual.

(...) A evolução é habitualmente crónica. (...) ”

Isto significa que há uma tendência para a reincidência neste tipo de comportamentos. Assim, o facto de se fazer depender o procedimento criminal do direito de queixa potencia a consumação destes tipos de crime, e o acréscimo do número de vítimas. Atribuir a natureza de crime público a estes tipos criminais permite uma justiça mais célere e eficaz, um maior controlo da sociedade e uma maior protecção das crianças.

É imprescindível a harmonização das disposições constitucionais com o Direito Penal, para que este possa abranger os bens jurídicos consagrados pela Lei Fundamental. É necessário harmonizar o Direito Penal permitindo a coerência das suas próprias normas.

Os interesses dos menores têm que prevalecer sobre a timidez do legislador, a falsa moral social e sobre o preconceito generalizado. As crianças são as vítimas, não são elas quem proporciona a consumação destes crimes, não há que ter vergonha dos seus comportamentos, ou melhor dos seus não comportamentos. Elas necessitam de ajuda e o preconceito e vergonha que conduzem à ocultação destes crimes, tem que ceder perante tal situação. Quanto mais cedo obtiverem essa ajuda, maior é a probabilidade de sucesso dessa ajuda.

No folheto informativo da Casa Pia, para todos os rapazes de idade igual ou superior a 12 anos, podemos ler: “Às vezes, há a ideia de que não dizer ajuda mais a esquecer, que faz de conta que não se passou nada ou que não se pensa mais no problema. Muitas vezes issso resulta durante algum tempo, mas… há sempre alturas em que tudo volta ao de cima… Quando se está sozinho, à noite quando se quer dormir, quando se vê a pessoa que fez mal, ou sempre que algum contacto com outras pessoas o lembram. Por isso, dizer, mesmo que pareça difícil, é o melhor para conseguir aliviar, para deitar cá para fora o que preocupa lá dentro. (…)”.

Compreendemos, no entanto, que atribuir a natureza de crime público a estes tipos não é suficiente. Poderá haver situações em que o menor optou por não contar a ninguém ou outras em que não foram interpretados os seus sinais. Ora, essas situações não podem permanecer impunes, pelo que se opta pela não prescrição do procedimento criminal sem que haja decorrido um ano após a vítima ter atingido os 18 anos. Permite-se, assim, às vítimas que adquiram uma maior maturidade que lhes permita entender o que lhes aconteceu e poderem denunciar esses factos.

A proliferação de crimes contra a autodeterminação sexual e liberdade sexual de menores demonstra que as disposições em vigor actualmente não são suficientes e, consequentemente, não são adequadas aos fins que se propõe prosseguir, proteger as crianças. É, pois, necessário dar um passo em frente, no sentido de conferir a natureza pública a estes crimes hediondos.

Assim sendo, e ao abrigo do artigo 167º e nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, os Deputados do Bloco de Esquerda apresentam o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.º (Objecto)

O presente diploma altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 3 de Setembro, com as alterações da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio, da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, da Lei n.º 97/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 100/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro e do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, no sentido de conferir natureza pública aos crimes contra a autodeterminação sexual bem como aos crimes contra a liberdade sexual quando praticados contra menores.

Artigo 2º (Alterações)

Os artigos 118º e 178º do Código Penal passam a ter a seguinte redacção: “Artigo 118º (...)

1 – (...) 2 – (...) 3 – (...) 4 – Tratando-se dos crimes previstos pelos artigos 163º a 165º, 167º, 168º e 171º, o procedimento criminal não se extinguirá por efeito de prescrição até ter decorrido um ano sobre a data em que a vítima atingir os 18 anos.

Artigo 178º (…)

O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163º a 165º, 167º, 168º e 171º depende de queixa, salvo quando a vítima for menor de 18 anos ou quando do crime resultar o suicídio ou a morte da vítima.”

Artigo 3º (Entrada em vigor)

O presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Assembleia da República, 6 de Janeiro de 2003

Os Deputados do BE www.bloco.org

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