CASA PIA

Declaração política do Bloco de Esquerda

7 de Janeiro de 2004

Pela segunda vez, o Presidente da República teve de se dirigir ao país por considerar que “as instituições da República” e o “adequado funcionamento do Estado de Direito” são postos em causa pela crise da justiça. E só o facto do mais alto magistrado da Nação ter sentido a necessidade de discutir a divulgação, primeiro, de escutas telefónicas ilegais e, depois, de insultos anónimos, seria suficiente para que o silêncio deste parlamento fosse inaceitável.

Por dever de solidariedade institucional com o Presidente contra a inadmissibilidade da calúnia, mas ainda mais pelo dever de defender a justiça como condição para a vida democrática, este parlamento deve uma palavra ao país.

O Bloco de Esquerda reafirma a posição aqui tomada em devido tempo. Que os erros processuais e a confusão instalada não devem levar à absolvição de culpados e à condenação de inocentes, e que existe um crime brutal e continuado de violação de crianças que tem que ser punido. Que o processo da Casa Pia deve ser julgado pelo valor das provas produzidas – e que esse julgamento decorre em tribunal e só em tribunal. Que o respeito pela lei deve começar por todos os agentes da justiça. Que a comunicação social tem o direito e o dever de informar com rigor e respeito pelo bom-nome das pessoas. Que cabe ao Procurador-Geral da República pôr a casa na ordem, e é tempo de o fazer.

Sobre o conteúdo do processo, as culpas e as inocências, nada temos a dizer nem nada devemos comentar. Mas sobre os efeitos que esta crise da justiça tem sobre a democracia, não ficaremos calados. Assim como não o ficou o Presidente da República. Não podemos assistir ao desmoronamento da vida democrática com silêncio que seria cumplicidade. É em nome da separação de poderes que lembramos que é o parlamento quem tem a autoridade legislativa que determina o presente e o futuro da justiça.

A democracia não pode, pois, aceitar que qualquer processo se transforme numa festa canibal em que todos são suspeitos para que ninguém seja culpado. E não pode aceitar que a justiça seja descredibilizada pela inconsequência, muito menos perante crimes de imensa gravidade que terão mobilizado meios poderosos, protecções e favorecimentos.

Sabemos que o processo da Casa Pia irá agora entrar numa fase crítica. Exige-se serenidade, já que todos os dias há novos casos de contra-informação e de intoxicação lamacenta. E não temos qualquer dúvida de que uma parte da comunicação social – salvo digníssimas e notáveis excepções que orgulham o jornalismo português – continuará mergulhada na vertigem do populismo mediático em que a insinuação é notícia e a manipulação é um facto. Ao longo dos próximos meses, a confusão e a guerrilha mediática vão aumentar, e não é seguro que a sentença final tranquilize os defensores de uma justiça exigente e ponderada.

A serenidade e distância em relação a estes desenvolvimentos não devem por isso ser confundidas com demissão. Ao parlamento cabe a defesa das condições essenciais da vida democrática, e é por isso que o Bloco de Esquerda faz daqui um repto solene a todos os grupos parlamentares e ao presidente da Assembleia da Republica: em 2004, e não mais tarde do que em 2004, deve esta Assembleia encaminhar medidas refundadoras do sistema da justiça portuguesa.

A reforma da justiça é uma das grandes tarefas inconcluídas da democracia do pós-25 de Abril e, tendo já mudado tanto, ainda muito mais tem de se desenvolver para que haja justiça igual para todos e não subordinada ao privilégio da riqueza, célere e não subordinada ao poder da interferência, garantística dos direitos fundamentais e não subordinada ao poder do arbítrio. Há portanto que mudar, a partir da experiência concreta do quadro legal actual, em particular no Código Penal e no Código do Processo Penal. E há que mudar não só nas escutas, na prisão preventiva e no segredo de justiça, mas também na definição de prazos, de regras, de responsabilidades, de processos.

É precisa uma grande maioria para essa reforma. Mas é o tempo de a começar, como nos apela o Congresso da Justiça.

Irresponsável seria recusar esta prioridade política e social: 2004 só será um ano de viragem para a confiança se se realizarem duas condições - se for imposta uma nova política económica para o crescimento e para o emprego, e se os portugueses puderem acreditar na reforma da justiça.

O país continuará fraco, desalentado, descrente se a justiça falhar, se a confusão e o barulho se continuar a instalar, se o desemprego crescer, se o poder absoluto continuar indiferente às dificuldades, ao sofrimento, ao esforço e às soluções.

Perante isto, não podemos deixar de condenar energicamente a estratégia da maioria que elege como tema central para o ano de 2004 uma revisão constitucional que procura álibis para o seu próprio vazio. Ao apontar a Constituição como a nova força de bloqueio, a maioria não inventa nada de novo, mas reinventa-se no extremismo de uma reconstrução ideológica que, sob a tutela profética de Santana Lopes e Paulo Portas, quer ajustar contas com o passado e afirmar o salve-se quem puder liberal como a doutrina do Estado.

Porque esta revisão tem passado mas não tem presente nem futuro: ao procurar abrir as portas a uma revisão constitucional que permita a restauração da monarquia, destino apaixonante dos nostálgicos da Casa de Bragança, ou ao impor o primado de uma Constituição Europeia que ainda não existe, a direita mostra o que vale como capela mortuária de ideologias tristes e desistentes, usadas agora para entreter o país à falta de se saber governar.

Não, as dificuldades não se podem solucionar com a irrelevância do debate político. À tragédia não se pode responder com a comédia. Depois de dois anos de degradação da política e da vida dos portugueses, é tempo de parar este delírio que se tem vivido. De abandonar este voyeurismo colectivo a propósito da Casa Pia. De não perder tempo com irrelevâncias na revisão constitucional. De voltar ao que é importante e impedir que as formas mais rasteiras de combate político obscureçam o debate que hoje fundamental: o da construção de uma alternativa à destruição deste país. Enquanto, com a sua escolha da revisão constitucional como prioridade, a direita exibe as danças nupciais que bem podia fazer em recato, é à esquerda que compete a responsabilidade da alternativa.

Francisco Louçã

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