SAÚDE: 100 dias do mesmo para pior

Na área da saúde, os primeiros 100 dias da acção governativa estão inequivocamente marcados por um conjunto de medidas já decididas ou em fase de estudo, que no essencial configuram uma aposta em políticas de continuidade, as quais apontam para uma crescente desresponsabilização do Estado pelo direito constitucional à saúde e na transformação da saúde numa área de negócio, com evidentes prejuízos para os utentes.

Não só fazemos uma avaliação negativa da intervenção do governo do PS nesta área, como se confirmou que tínhamos razão, quando na discussão do programa do governo alertámos para o facto de, num quadro de grande previsibilidade quanto às políticas de saúde e sabendo-se por experiência anterior, das práticas do actual ministro, existirem razões para ficarmos preocupados relativamente ao futuro.

A intenção manifestada pelo governo, de reduzir a comparticipação de medicamentos para doentes crónicos, de aumentar o custo de medicamentos genéricos e de manter os preços de referência, bem como o aumento global e constante dos preços muito acima da inflação, tem como consequência o agravamento dos custos para os cidadãos e o crescimento da percentagem do encargo financeiro individual para as despesas da saúde, que é já hoje das maiores da União Europeia.

Simultaneamente, o governo pretende reduzir em 5% o financiamento aos hospitais, já subfinanciados, enquanto o ministro da saúde desvaloriza o facto das listas de espera para cirurgia, abrangerem já 224.000 pessoas, com uma demora média de cerca de um ano. Disse o ministro, certamente porque não está entre aqueles que aguardam a sua vez, que “o número até é positivo”, tendo esclarecido à posteriori que o que pretendeu dizer é que “este número até é positivo, porque significa que há mais gente que sabe que há cirurgias electivas e que tem acesso aos cuidados”. O único comentário que nos apraz fazer é que os portugueses merecem mais respeito.

O que o Ministro da saúde não disse, é que apesar dos milhões de euros que se gastaram com os programas de redução das listas de espera, o problema agravou-se passando de 123.000 em Junho de 2002, para 224.000 actualmente, o que vem confirmar que o tão prometido aumento de eficácia, que a transformação de 34 hospitais em 31 sociedades anónimas iria trazer, não se confirmou.

Integrada na ofensiva mais geral contra os trabalhadores da Administração Pública, a política demagógica de liquidação dos subsistemas de saúde neste sector, com o argumento de igualizar o acesso de todos à saúde, não é mais do que um processo para reduzir o acesso à saúde a 1,8 milhões de pessoas, sem qualquer benefício para os restantes cidadãos e eventualmente com o seu prejuízo, por sobrecarga do Regime Geral. A equidade deverá manifestar-se pela melhoria global do Serviço Nacional de Saúde e não pelo corte de regalias e direitos já adquiridos.

Ao mesmo tempo que afirma querer defender o Serviço Nacional de Saúde, o governo PS persiste na sua liquidação. A passagem do quadro jurídico dos hospitais SA, para EPE, não pretende ser mais do que uma mal disfarçada operação de cosmética, em que se mantêm os vícios de má gestão, do desperdício, do economicismo para os doentes e do negocismo para os “boys”, sem obviar à sua posterior privatização.

De facto, não é a mudança de estatuto jurídico que determina a melhoria da eficiência dos recursos disponíveis, como o alargamento das listas de espera comprovam, mas sim medidas concretas de boa gestão só possíveis por gestores competentes e empenhados, num quadro de regime público.

A persistência nas Parcerias Público Privado, para a construção de novos hospitais, iniciada pelo mesmo ministro no anterior governo PS, intensificada pelo governo PSD/CDS-PP e retomada pelo actual governo, é reveladora da intenção de privatizar os serviços públicos de saúde. O argumento do défice e da incapacidade do Estado, em financiar as novas construções, é falso. Da reestruturação da rede hospitalar resultará a transferência de hospitais de velhas instalações, para novas instalações, tendo o património desactivado um valor que permite financiar as novas construções. Por exemplo, só no distrito de Lisboa, a substituição dos velhos hospitais civis pelo Hospital de Todos os Santos, permite libertar um património superior a 300 milhões de euros, para financiar a sua própria construção, a construção dos novos hospitais periféricos e a remodelação dos hospitais de S. José e Santa Maria de acordo com o Plano Director Regional. Desta reestruturação resultarão ainda ganhos de eficiência, com ganhos vultuosos nos custos de exploração. Só a obstinada persistência nas políticas privatizadoras, impede o governo de encarar outras soluções.

A côrte que rodeou o Ministro da Saúde no recém realizado Fórum da Saúde, organizado pelo Diário Económico, revela que a política de saúde do governo passou a ser definida, não em função das necessidades das populações, mas que vai a reboque dos interesses dos grupos financeiros e das contradições entre estes, como se revela no processo envolvendo o Hospital de Loures.

Não é estranha a esta pressão dos grupos económicos, o facto de só entre 1998 e 2002, o dinheiro movimentado nas despesas do SNS, ter sido de 6.000 milhões de contos, 1.200 milhões de contos ano e de nos últimos três anos terem sido transferidos para o SNS 16.977,2 milhões de euros. Para estes grupos, o “mercado da saúde” está em crescimento e é em grande parte financiado pelo OE, o que quer dizer um mercado certo, seguro e potencialmente lucrativo.

Também nos cuidados primários de saúde, acompanhamos com preocupação os crescentes indícios de uma linha de desresponsabilização do Estado, privatizadora, ao mesmo tempo que persistem gritantes faltas de resposta em recursos humanos e financeiros, sem o que qualquer reestruturação não tem viabilidade.

A responsabilização dos profissionais de saúde pelos problemas que atravessa o Serviço Nacional de Saúde, não só é injusta, como pretende esconder, também a este nível, a orientação neoliberal que caracteriza a política do governo, nomeadamente no que respeita à destruição do vínculo ao serviço público, através da generalização dos contratos individuais de trabalho, da manipulação dos incentivos e da adopção de uma política de mão-de-obra barata, que não deixará de ter graves reflexos na qualidade dos serviços prestados.

A política de contratação individual, é estruturante da política privatizadora de direita, contribuindo para a desorganização e diminuição da qualidade dos serviços, ao destruir as carreiras dos profissionais de saúde, geradoras da sua responsabilização e qualidade.

Nesta data, em que os estudantes preparam as suas candidaturas ao ensino superior, em que são conhecidas as gritantes carências, imediatas e futuras do país, em médicos, exige-se que o governo anuncie o número de vagas adequado aproveitando as capacidades instaladas nas Faculdades de Medicina existentes.

Os cem dias de governação na área da saúde, também foram marcados pela superficialidade, pela falta de rigor e pela incoerência, por vezes ridícula nas declarações do Ministro da Saúde, reveladoras de que para além do processo de privatização, se torna difícil descortinar qualquer outra orientação sustentada, de que são exemplos, as declarações relativas aos cuidados higiénicos de médicos e enfermeiros e às listas de espera para cirurgia. Sintomático destas políticas é a recondução do Conselho de Administração do Hospital do Barreiro, que agora decidiu distribuir 800 mil euros de incentivos por alguns funcionários, quando existem carências em relação à prestação de cuidados de saúde neste hospital e quando se perspectiva o aumento das taxas moderadoras, bem como a nomeação para a Administração do Hospital S. Maria de um administrador da Médis.

As medidas do Governo e as declarações do Ministro da Saúde, mostram que o PS persiste na mesma errada política neoliberal, de desresponsabilização do Estado e privatizadora do Serviço Nacional de Saúde, com sacrifício do direito à saúde, em particular dos mais debilitados e carenciados, transformando o princípio constitucional do SNS tendencialmente gratuito, no princípio inconstitucional tendencialmente pago.

Na passagem do 7º aniversário do referendo do aborto, o PCP assinala o facto de a saúde sexual e reprodutiva das mulheres estar a ser profundamente lesada, num quadro em que vinte anos após a aprovação da primeira lei em Portugal, esta apenas abrange 1 a 2% das causas que motivam a realização do aborto, tendo sido sempre sujeita a interpretações muito restritivas por parte de direcções dos serviços de saúde, havendo hospitais públicos que se recusam mesmo a aplicar a actual lei.

Esta situação é responsável pela entrada de mulheres nos hospitais com complicações de aborto clandestino e pelo facto de uma em cada 200 jovens, entre os 15 e os 19 anos, já ter abortado.

Aos que afirmam que os hospitais não estão em condições para aplicar uma nova lei, que alargue as causas para a sua realização em meio hospitalar, lembramos que as mulheres sempre que dispõem de alternativas seguras para controlar a sua fertilidade não recorrem ao aborto, como é possível verificar com a redução do número de abortos clandestinos.

PCP

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