Reservas Indígenas

O nome é poético, a causa é justa e as motivações políticas que embalaram a polêmica desses últimos dias é controvertida e tem nuances que jamais serão inteiramente explicitadas, até porque são alimentadas por objetivos nem sempre "nobres", que vão do simples propósito de eliminar qualquer vestígio de "índios" no espaço territorial de Roraima — operação, aliás, já exitosa em outros Estados — ao sempre recorrente objetivo de internacionalização da Amazônia.

Se o debate for escoimado desses objetivos claramente antagônicos é possível uma solução racional, sem maiores conseqüências políticas ou econômicas, para os grupos em contenda. Considero, portanto, uma falsa polêmica o debate sobre se a demarcação da reserva "Raposa Serra do Sol" será feita em "ilhas" ou em área contínua. Enquanto o debate for posto nestes termos e os contendedores não se desarmarem de suas "razões", dificilmente se encontrará uma solução racional para o problema.

De um lado, procura-se apresentar a demarcação de terras indígenas como sendo um mecanismo para inviabilizar a economia do Estado afetado e, principalmente, "a vida do caboclo", com o claro objetivo de antagonizar os índios com os seus descendentes. Instados a responder por que não questionam, igualmente, os vários latifúndios improdutivos que se espalham pela Amazônia, muitos dos quais obtidos de maneira fraudulenta e com área superior à das maiores reservas indígenas já demarcadas, eles se calam, revelando que não questionam o tamanho da área indígena em si, mas o fato de essa área pertencer aos índios. De igual forma nunca se levantaram contra a doação, para empresários do sudeste, de uma enorme área na região que seria posteriormente inundada no entorno da hidrelétrica de Balbina (AM).

Uma área de 1.287.000 hectares, dividida em 429 lotes de 3 mil hectares, foi graciosamente ofertada a empresários que hoje, sem nunca terem feito qualquer benfeitoria na área, estão reclamando, na justiça, indenizações milionárias contra a Eletronorte.

Do outro lado, sob o argumento de que os índios têm "direitos originários sobre as terras que ocupam" (Art. 231, CF), os defensores dessa tese defendem a pura e simples demarcação, com a retirada de todos os "intrusos" da área em questão, como se as terras indígenas e as áreas em que elas estão inseridas fossem algo totalmente abstrato.

A cidade de Autazes (AM), por exemplo, foi construída sob uma área pertencente aos Mura. É possível imaginar — embora haja quem defenda — o despejo de uma cidade para assentar uma reserva indígena, por mais inquestionável que seja o direito originário dos índios sobre aquela área? É claro que não! Dessa forma, é preciso separar o fazendeiro/madeireiro, especulador ou não, que entrou numa área indígena de forma consciente para tentar criar uma situação de fato, do caboclo que ali vive secularmente, sobrevivendo da caça, da pesca e da agricultura de subsistência, nos mesmos termos praticados pelo conjunto dos povos indígenas, até porque, no geral, são descendentes direto dos índios daquela área. Os que eventualmente se negarem a reconhecer e a resolver adequadamente esse fato, por apego legalista e/ou visão esquemática, acabam criando um antagonismo real entre índios e caboclos e permitindo que parte desse segmento acabe sendo manipulada por setores que fingem defender seus interesses quando, na verdade, apenas defendem os seus próprios interesses.

Hoje, no Brasil, vivem cerca de 345 mil índios, que se comunicam em mais de 200 línguas distintas, estão agrupados em 215 sociedades indígenas e perfazem cerca de 0,2% da população brasileira. Estima-se, ainda, que algo em torno de 200 mil índios vivem fora de terras indígenas, além de 53 grupos ainda não contatados. Estão distribuídos em 580 áreas distintas, que vão das classificadas entre "a identificar" até as "Registradas". As 441 áreas em estágio mais avançado de demarcação, que vão das "identificadas" até as "registradas", ocupam um espaço, segundo o IBGE, de 991.498 km2 (11,6%) do território nacional. As áreas restantes (139) se encontram em fase preliminar do processo demarcatório.

A maior concentração indígena é precisamente na Amazônia. Embora as estatísticas recomendem certa prudência, é fato que na Amazônia ainda existe mais de 200 mil índios, agrupados em mais de 200 grupos distintos e diferentes estágios de organização social. Enquanto no Javari (AM), os Marubo chegaram a um grau tal de organização que eles próprios demarcaram as suas terras, outros povos, como os "caceteiro", no mesmo vale do Javari, sequer aceitam contato com a FUNAI e não falam sequer uma palavra em Português.

Os vários grupos do Rio Negro, especialmente na região de São Gabriel da Cachoeira, têm uma das mais sólidas organizações indígenas — a FOIRN — e administram e executam, através do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), a política de saúde indígena em toda a região. Coordenam mais de 350 funcionários, de médicos a estafetas, e administram um orçamento de mais de 6 milhões de reais/ano, valor superior ao que administra a maioria das prefeituras do Estado. Têm vários vereadores e se preparam para disputar, com possibilidade real de vitória, a PM de São Gabriel.

De igual forma, em Roraima, são os índios que administram o DSEI, manejando um orçamento ainda maior do que o do Rio Negro. Muitos desses grupos contatados conservam, porém, sua língua, sua cultura e seus rituais, embora tenham dificuldade de se expressar em português e, o mais relevante, profunda dificuldade de entender o modo de agir e proceder dos "brancos", como eles lacônica e genericamente definem todos aqueles que não consideram índios.

Dessa forma, com a repercussão nacional que acabou ocorrendo no episódio de demarcação da reserva indígena "Raposa Serra do Sol", o conjunto da sociedade brasileira acaba tomando contato com essa realidade que, para muitos, parecia mera ficção. Fica sabendo que no extremo norte do país, mais precisamente em Roraima, não existe apenas "gafanhotos", personagens tristemente famosos por dilapidarem o erário público através da contratação de funcionários "fantasmas".

Lá também ainda existem, e resistem, como de resto em toda a Amazônia, alguns milhares de índios que as "expedições de extermínio" e o assassinato promovido pela contaminação deliberada com sarampo e outras moléstias contemporâneas — fatais nos índios pela inexistência de resistência imunológica — não deram conta de eliminar.

A questão que se coloca, portanto, é: é justo ou não que esses povos tenham direito ao seu espaço territorial como forma de assegurarem a sua existência e, assim, evitarem o destino reservado aos Aimoré, Carijó, Charrua, Potiguar, Tamoio, Tucuju, Tupinambá, Tupiniquim, dentre outros povos, que simplesmente desapareceram, com suas línguas, culturas e modo de viver.

O tamanho das reservas, embora não possamos desconsiderar motivações políticas em alguns casos, se orienta por laudos antropológicos e precisa, portanto, ser questionado com argumentos técnicos e científicos reais, jamais por chavões propagandísticos sem qualquer sustentação técnica e mesmo política.

No caso específico da reserva "Raposa Serra do Sol", uma área de 1.678.800 hectares, segundo a Portaria 890/98, destinada a atender em torno de 15 mil índios, distribuídos entre Wapixana, Ingariko, Taurepang e Makuxi, a polêmica me parece ainda mais despropositada, à medida que a reserva em questão, com uma relação da ordem de 112 hectares por índio, se situa entre as de menor relação área/índio, dentre todas as grandes reservas da Amazônia (Tabela I).

Quanto ao argumento de que as reservas indígenas inviabilizam a economia do Estado, me recuso a comentar pelo primarismo do argumento. Essa linha de raciocínio procura fazer crer que uma reserva indígena é um santuário, sem qualquer atividade econômica — o que evidentemente é inteiramente falso. Ademais com menos de 0,5% do território de Roraima cultivado é possível produzir alimento para toda a população. Como podem, então, as reservas indígenas inviabilizarem o Estado?

Tabela I – Algumas reservas indígenas e sua relação Área/Índio

Identificação da Reserva Estado Relação área / população / habitante Área (há) População Há / indivíduo Paumari e Apurinã AM 784.000 270 2.904 Matis, Marubo, Mayoruna, etc. AM 8.338.000 3.000 2.779 Zuruahã AC 239.070 130 1.839 Apurinã AM 124.000 110 1.127 Yanomami RR/AM 9.419.108 9.910 950 Raposa Serra do Sol RR 1.678.800 15.000 112 Sempre se pode contra-argumentar que uma grande área continua como a da reserva em tela propicia investidas internacionalistas. Isso é verdade e não se pode nem mesmo desconsiderar que alguns desses personagens tenham, subliminarmente, essa motivação. Não são esses, todavia, o pensamento e a motivação da esmagadora maioria das lideranças indígenas; embora seja um argumento que merece ser considerado, até pela posição estratégica da reserva (ver mapa).

No momento a melhor maneira de assegurar a soberania nacional sobre a área é uma efetiva política de valorização dos povos indígenas daquela área e uma forte presença do Estado brasileiro na promoção de justiça econômica e social, à medida que as necessidades básicas da maioria dos povos da região — não só indígenas — são patrocinadas por Ongs estrangeiras. A política neoliberal, de desmonte do Estado, nos delegou mais esse problema.

Diário Vermelho

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