Morre Orlando Villas Boas, sertanista legendário

O sertanista estava com 86 anos e era casado com Marina Lopes Dias, uma pediatra que conheceu quando ambos trabalhavam em áreas indígenas.

Villas-Boas notabilizou-se pelas quatro décadas que passou na floresta, durante as quais conseguiu estabelecer contatos com vários grupos étnicos até então desconhecidos dos brancos – e ao longo das quais dizia ter contraído malária cerca de 200 vezes. Apesar de não ter concluído nem o segundo grau, Orlando Villas Boas publicou 12 livros e vários artigos na imprensa internacional, muitos deles em parceria com seu irmão Cláudio Villas-Boas – falecido em 1998. Tamanha dedicação rendeu-lhe fama internacional e fez com que seu nome fosse cogitado para o Prêmio Nobel, em 1976. A coragem de desbravador e o interesse pioneiro pelos povos indígenas continuarão fazendo dele, por muito tempo, uma espécie de lenda.

Orlando foi criado numa fazenda de café. Após a morte do pai, Orlando e seus três irmãos mudaram de Botucatu, no interior do estado de São Paulo, para a capital. Chegando lá, Orlando trabalhou na Esso e na Light – a principal companhia de eletricidade da época. Mas se aborrecia e criava confusão por onde passava, por não se adaptar aos ambientes "burocráticos". Sua vida tomou um novo rumo em 1941, quando, juntamente com os três irmãos, decidiu tomar parte na famosa expedição Roncador-Xingu, organizada pela Fundação Brasil Central, com o objetivo de explorar e ocupar o oeste brasileiro.

Os quatro irmãos foram para Barra do Garças, em Mato Grosso, se apresentar para trabalhar como como "sertanejos", responsáveis por ir abrindo picadas com as enchadas. Mas a partir de 1943, o clã Villas-Boas foi designado para se dedicar ao que era chamado de "pacificação" dos índios: não se contentando em apenas contactar e mapear os diversos grupos indígenas, procuraram, sobretudo, evitar o confronto e a luta - tanto entre brancos e índios, quanto entre os próprios índios. Graças ao sucesso que obtiveram na empreitada, os Villas-Boas tornaram-se, em 1944, líderes da expedição.

Terminada a expedição, continuaram sozinhos sua aventura, que tem no ano de 1961 um marco importante. Neste ano – que é tambem o ano do falecimento de Leonardo - , os irmãos Villas-Boas lutaram pela implantação do Parque do Xingu, assessorados pelo antropólogo Darcy Ribeiro e pelo médico sanitarista Noel Nutels. Guiados por uma visão idealista – e talvez romântica - a idéia era proteger os povos indígenas das frentes de colonização, dos garimpeiros e madeireiros, isolando-os de maneira absoluta.

Certamente concebidos com as melhores intenções, os dois legados institucionais dos irmãos Villas Boas - o Parque do Xingu e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), não deixam de provocar polêmicas entre especialistas. Acusa-se a FUNAI de ser inerte, mal equipada e paternalista – tratando os índios como seres incapazes. Quanto ao Xingu, um dos problemas é que o parque se tornou uma espécie de "depósito", que legitima a retirada de índios de regiões onde representam um obstáculo para a exploração econômica.

Nesse sentido, o caso dos índios Panará, deslocados de sua terrítório de origem devido à construção da rodovia Cuiabá-Santarém, está entre os mais famosos. Antes do contato com a expedição de Villas-Boas, enviada em 1973 na ocasião da construção da rodovia, os Panará ocupavam dez aldeias e tinham uma população estimada entre 300 e 600 pessoas. Atraídos pela construção da rodovia e pelos veículos que chegaram com a abertura ao tráfego, passaram a freqüentar a estrada. Em pouco tempo, em contato com novos vírus e bactérias contra os quais não dispunham de defesas imunológicas, contraíram moléstias que foram se espalhando para todas as aldeias. Morreram às centenas ou tornaram-se mendigos à beira da estrada. Em 1975, quando já não restavam mais de 80 índios vivos, foi Orlando Villas Boas quem sugeriu que os Panará fossem transferidos para o Xingu.

Os Panará nunca se conformaram com tudo isso, sentindo-se primeiro invadidos, depois exilados e cercados por tribos historicamente rivais. Resultado: em 1991, com o ajuda de várias organizações, entre elas o Instituto Socioambiental (ISA), um grupo composto por alguns índios e alguns brancos fizeram uma viagem de reconhecimento ao vale do rio Peixoto de Azevedo. Descobriram que grande parte de sua região de origem encontrava-se devastada por garimpeiros e fazendeiros e que os rios haviam sido poluídos ou drenados. Contudo, sobrevoando o território, conseguiram achar um trechinho, próximo à serra do Cachimbo, que permitiria uma reinstalação dos Panará.

O próximo passo foi obterem do governo federal o direito de voltar às suas terras e, em seguida, iniciar o retorno – o que foi posto em prática entre 1995 e 1997, com auxílio do Instituto Sócio-Ambiental (ISA). E os Panará foram mais longe, cobrarando na Justiça uma indenização pelos danos materiais e morais aos quais foram submetidos desde a chegada da expedição de Villas Boas, em 1973. Mais uma vez, ganharam: uma decisão inédita do Tribunal Regional Federal de Brasília, em setembro de 2000, condenou a União e a Funai a pagarem uma indenização cerca um milhão de reais aos Panará.

Casos como o dos Panará servem para abrir os olhos dos brasileiros e da comunidade internacional para o fato de que a "pacificação" proposta pelo governo brasileiro nem sempre trouxe a "paz" e que a criação do Parque do Xingu, por si só, não dá conta da complexidade da questão indígena. Portanto, sem desmerecer o pioneirismo e o interesse pela diversidade cultural indígena que motivaram todas as iniciativas dos irmãos Villas-Boas, aproveitemos a efeméride para trazer à tona questões tão delicadas, quanto ignoradas. Louvemos a abertura de espírito de Orlando Villas Boas, mas não nos contentemos só com isso. É preciso continuar a buscar soluções, a discutir a legislação e as práticas brasileiras em relação às sociedades que já moravam no Brasil muito antes da chegada dos portugueses.

Ilana GOLDSTEIN PRAVDA.Ru BRASIL

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