Lula prevê queda sistemática dos juros

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva previu uma queda "sistemática" das taxas de juros brasileiras em entrevista exclusiva à BBC Brasil, realizada no domingo em Londres, onde ele participou da Cúpula da Governança Progressista a convite do premiê britânico, Tony Blair.

Foi a primeira entrevista exclusiva de Lula desde a posse. O presidente respondeu a perguntas de internautas de todo o mundo. No site da BBC, é possível ver a íntegra em vídeo ou uma seleção dos melhores momentos (clique aqui). Leia a íntegra a seguir:

BBC Brasil - Presidente, nós recebemos mais de 5 mil perguntas feitas para o senhor através dos sites da BBC em português, inglês e espanhol. Eu queria começar a entrevista com uma pergunta feita por Mendes Júnior, da cidade de Sobral (CE), e também por Frank Shimada, de Okaya, no Japão. Eles querem saber o seguinte: o sr. está gostando de administrar o Brasil? Quais são a melhor e a pior parte da função?

Luiz Inácio Lula da Silva - Na verdade, eu estou realizando um sonho que eu e milhões de brasileiros alimentamos durante muitos e muitos anos. Portanto não se trata de gostar ou não gostar. Trata-se de cumprir uma determinação que nós mesmos nos impusemos. Eu ganhei as eleições com um programa de governo. Eu sabia que a situação do Brasil não era boa do ponto de vista econômico e do ponto de vista social… Eu tenho até brincado que, se a situação fosse boa, eu não teria ganho as eleições. Só ganhei exatamente porque a situação do Brasil estava muito má. Mas eu tinha consciência de que nós poderíamos resolver os problemas do Brasil.

Eu diria para as duas pessoas que me fizeram a pergunta que eu estou fazendo aquilo que eu mais queria fazer na vida que era provar que nós éramos capazes de mudar o Brasil. E vamos mudar. Vamos fazer as políticas sociais que entendemos que podem garantir cidadania ao povo brasileiro. Vamos governar tentando ajudar a parte mais pobre da população a conquistar o seu espaço de dignidade na nossa sociedade. E isso eu tenho pedido ao povo para ter um pouco de paciência exatamente porque o primeiro ano é o ano mais difícil em toda e qualquer administração. Mas nós sabemos o que queremos. Sabemos como alcançar o que queremos e vamos alcançar.

É por isso que, no meu discurso de posse, eu disse que nós iríamos primeiro fazer o necessário, depois iríamos fazer o possível e, quando menos esperassem, nós estaríamos fazendo o impossível. Eu estou tranqüilo. Estou consciente dos problemas, mas também estou consciente de como encontrar a solução para esses problemas.

BBC Brasil - E o que é o melhor e o pior da função?

Lula - Eu acho que o melhor de ser presidente da República é que você tem o direito de fazer as propostas de mudanças que você a vida inteira reivindicou que os outros fizessem. Eu diria que o pior é a gente não ter tempo de fazer tudo o que a gente quer fazer. O dia só tem 24 horas. Ou seja, quando você está fazendo metade das coisas que você pode fazer, já acabou o dia. Eu, sinceramente, gostaria de ter mais tempo para poder fazer mais coisas. Tentar compatibilizar a agenda institucional, com a agenda social e ainda a agenda internacional… Na verdade, o dia precisaria ter 36 horas ou mais para dar tempo de fazermos tudo.

BBC Brasil - O sr. mencionou as dificuldades que o país vem e vinha enfrentando e que, na sua própria avaliação, o ajudaram a se eleger. A maioria das perguntas que nós recebemos diz respeito justamente à economia do país. Por exemplo, Alcri Everardo Zago, de Bariri, em São Paulo, questiona sobre o crescimento. E José Luiz Tibiriçá quer saber se o sr. não acha que a carga tributária, e não a taxa de juros, é o principal entrave para o crescimento do Brasil neste momento.

Lula - Primeiro, a questão do crescimento. O crescimento é uma busca quase que obsessiva do meu governo. Nós precisamos e temos consciência de que a economia brasileira precisa crescer. Mas é preciso crescer com distribuição de renda e riqueza, porque historicamente o Brasil cresceu muito. Se você pegar de 1950 a 1980, o Brasil cresceu acima de 7% em média ao ano. Entretanto, não houve distribuição de renda. Por isso é que no Brasil se dizia: os ricos ficaram mais ricos e os pobres ficaram mais pobres.

Nós achamos que o crescimento tem que ser acompanhado de uma boa política de distribuição de renda. Acontece que, para você crescer e ter investimentos, você precisa ter arrecadação. E nós tomamos posse numa situação muito delicada do ponto de vista das finanças públicas. Nós colocamos ordem na casa, porque em dezembro a perspectiva inflacionária pelos próximos 12 meses era da 40%. Nesses últimos seis meses, nós tratamos de arrumar a casa, colocar ordem na casa e agora trabalhamos com uma perspectiva de uma inflação de 7% a 7,5% para os próximos 12 meses. Nós começamos uma escalada agora para reduzir a taxa de juros. E vamos agora, no próximo dia 17, quando estivermos voltando para o Brasil, eu à tarde já tenho uma reunião para discutir os grandes projetos de infra-estrutura que nós vamos fazer. Ou enquanto governo ou enquanto parceria com o setor privado. Vamos buscar dinheiro onde tiver dinheiro para ver se conseguimos fazer esses projetos de infra-estrutura.

Enquanto isso, nós anunciamos no mês de junho e começo do mês de julho algumas medidas muito interessantes. Ou seja, nós fizemos o maior investimento para agricultura já feito na história do Brasil, nós fizemos o mais importante investimento para a agricultura familiar, de R$ 5,4 bilhões. Em 2002, tinham sido anunciados R$ 4 bilhões, mas apenas R$ 2 bilhões tinham sido liberados… Eu não só anunciei, como dei o telefone da conta e do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) para que quem tivesse dificuldades de conseguir o dinheiro telefonasse diretamente para o ministro. Isso porque habitualmente se anuncia o dinheiro e depois, no final do ano, o dinheiro não sai.

Nós queremos que saia todo esse dinheiro anunciado para a agricultura familiar. E temos uma novidade extraordinária: não apenas o agricultor pode pegar o dinheiro, mas a sua mulher também pode ter um projeto e pegar dinheiro, e também o seu filho pode ter um projeto e pegar dinheiro. Acho que é uma novidade extraordinária. Assumimos o compromisso de comprar a safra dos produtores da agricultura familiar do semiárido nordestino. Porque o povo pobre do Nordeste às vezes não planta porque não chove. Quando chove, que todo mundo planta, a produção aumenta e o preço cai, e eles continuam perdendo. Então nós estamos assumindo, enquanto programa Fome Zero, comprar o produto dessa agricultura familiar… Nós anunciamos a liberação de cooperativas de crédito no Brasil para cidades de até 100 mil habitantes. Nós criamos um crédito na Caixa Econômica Federal para as pessoas tomarem dinheiro emprestado de R$ 200 a R$ 600 para ajudar a reduzir a política de juros do sistema financeiro. Então tomamos muitas medidas para a economia brasileira voltar a crescer.

E a questão da política tributária… Nós mandamos uma proposta ao Congresso Nacional, feita de comum acordo pelo governo, pelos governadores e pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Essa proposta vai ser votada no Congresso Nacional e eu espero que, com ela, nós acabemos com a guerra fiscal no Brasil, acabemos com a sonegação, reduzamos o imposto sobre a produção, permitindo que o Brasil tenha maior poder de competitividade, tenha mais vantagens comparativas na sua relação comercial com outros países.

BBC Brasil - Mas o sr. acha que a carga tributária é um impecilho maior do que os juros, por exemplo, para o crescimento do Brasil?

Lula - Não, eu não acredito. Porque a carga tributária brasileira é alta, obviamente que ela é alta, mas, se comparada a vários países do mundo, ela não é alta. Entretanto, o problema do Brasil é que ela é injusta porque você penaliza hoje quem investe na produção. E nós precisamos desonerar a produção para facilitar o Brasil. E isso está contido na nossa proposta de política tributária. A unificação do ICMS, que é hoje o imposto que mais arrecada nos Estados, que tem hoje 40 alíquotas, nós estamos reduzindo isso para cinco, ou seja, eu acredito que, depois de outubro, e eu espero que sejam aprovadas até lá as reformas, a gente esteja num patamar de competitividade com o chamado mundo desenvolvido.

BBC Brasil - Nós também recebemos muitas perguntas de internautas sobre juros. Alencar Donizete Rosa, de São José dos Campos (SP), por exemplo, quer saber como reduzir as taxas de juros cobradas pelos bancos e pelas empresas de crédito.

Lula - Nós estamos oferecendo alternativas. No Brasil, na verdade, nós temos a taxa Selic, que é a taxa referencial de juros, que o governo paga para os compradores dos seus títulos, que está a 26%, e nós temos os juros do sistema financeiro que são uma coisa totalmente à parte. Ou seja, hoje uma pessoa que tem um cartão de crédito está pagando 212% de juros. Uma pessoa que compra à prestação uma geladeira, uma televisão, paga 160% ao ano.

BBC Brasil - Isso é aceitável, presidente?

Lula - Isso não é aceitável do ponto de vista lógico. Agora, o que é que o sistema financeiro faz? Ele diz que o número de inadimplentes é muito grande e que, portanto, eles têm que vender com juros altos para poder garantir o recebimento daquilo. Ou seja, na verdade, o que acontece é que as pessoas que podem pagar pagam por aqueles que não podem pagar. Pagam pelo inadimplente. Nós achamos que é preciso não só criar mecanismos para reduzir as taxas de juros como incentivar, por exemplo, o sistema financeiro a investir em alguma coisa que signifique aumentar a capacidade produtiva do país, como por exemplo, em habitação.

Nós estamos trabalhando com isso e por isso nós criamos um sem-número de mecanismos para baratear os juros para o pequeno crédito, para o pequeno consumidor, e eu acho que isso vai levar os bancos a reduzir suas taxas de juros. Porque o que nós queremos, na verdade, é fazer com que o banco também tenha uma função social de emprestar dinheiro para coisas que gerem crescimento da economia, que gerem empregos e que gerem renda.

BBC Brasil - E a taxa Selic o senhor também acha que vai cair?

Lula - Vai cair. Vai cair porque a taxa Selic é utilizada normalmente como uma taxa de controlador da inflação e, como nós pegamos o Brasil numa situação um pouco delicada, a taxa de juros ficou em 26,5%, no seu teto maior. Agora começou uma escalada de redução. Nós estamos convencidos de que a inflação já foi debelada. Ou seja, nós não corremos mais o risco de a inflação chegar a dois dígitos. Por isso eu acho que a agora a taxa de juros vai cair sistematicamente.

BBC Brasil - E pode ser rápido isso?

Lula - Pode ser rápido até chegar a um padrão… Nós temos que ter um certo controle da economia para não deixar a inflação voltar. Ao mesmo tempo, nós temos que ter um cuidado enorme para não deixar que o Estado gaste mais do que ele tem capacidade de arrecadar. E, ao mesmo tempo, nós temos que investir os poucos recursos que o Estado tem de forma a gerar crescimento econômico neste país. Escolher com muito carinho quais são os projetos prioritários, e nós estamos fazendo isso tentando envolver a sociedade.

É por isso que, pela primeira vez, nós estamos discutindo o plano plurianual, que são os projetos de infra-estrutura que nós pretendemos para os próximos quatro anos. Discutindo com a sociedade, discutindo com os Estados, discutindo com entidades de caráter nacional, discutindo com o movimento sindical, discutindo com o Congresso Nacional, e vamos levar em conta a necessidade de o Brasil ser pensado nacionalmente, regionalmente e setorialmente para que a gente possa fazer justiça nos investimentos que o governo pode fazer e não desenvolver apenas uma parte do Brasil, mas desenvolver aquela parte que historicamente tem recebido menos investimentos do governo federal.

BBC Brasil - Carlos Eduardo, de Poços de Caldas, de Minas Gerais, quer saber o seguinte: o sr. se arrepende de ter sido contrário às reformas constitucionais de anos atrás?

Luiz Inácio Lula da Silva - Não.

BBC Brasil - Por que não?

Lula - Primeiro porque é importante lembrar que o PT, já na constituinte de 1988, apresentava reformas para a Previdência Social. Historicamente, o PT sempre defendeu o sistema universal único para a Previdência Social. Nós nunca concordamos com dois ou mais tipos de Previdência. Nós entendíamos que deveria ter um sistema universal, que tivesse um teto, e que a partir daí você pudesse ter aposentadoria complementar para quem quisesse receber mais, se pudesse pagar mais.

É por isso que nós estamos defendendo hoje o fortalecimento dos fundos de pensão.

O dado concreto é que nós mandamos uma reforma da Previdência Social para o Congresso Nacional porque nós queremos fazer justiça social no Brasil. Eu tenho dito publicamente que a reforma que estamos fazendo é para garantir que, daqui a cinco, dez, quinze ou vinte anos, as pessoas possam se aposentar e receber o dinheiro. Porque, a continuar do jeito que está, os Estados não terão condições de pagar as aposentadorias daqui a dez anos. Tem Estado, como Minas Gerais, que arrecada por ano R$ 450 milhões e que paga por ano R$ 4 bilhões. Ou seja, arrecada apenas 10% do que paga. Isso um dia estoura…

Então, antes que estoure, nós temos que ter responsabilidade de fazer com que haja um novo modelo de Previdência que possa garantir aos nossos netos ter os mesmos direitos que os seus avós estão tendo hoje.

BBC Brasil - O senhor acabou de dizer que o PT sempre defendeu esse sistema único. Agora, os jornais estão noticiando que os líderes do governo estão defendendo agora a manutenção da integralidade e da paridade nas aposentadorias. Isso não cria um sistema diferenciado? Não mantém um sistema diferenciado e acaba com a reforma de uma certa forma?

Lula - Primeiro, nós temos que ver qual é o papel do Congresso Nacional. E precisamos tomar muito cuidado com o que a gente fala para não produzir manchetes de jornais que não condizem com a realidade. O Congresso Nacional é o fórum em que a sociedade se manifesta, pressionando o Congresso para apresentar emendas. Pelo que eu sei, tem mais de 453 emendas para a Previdência e tem mais de 400 emendas para a reforma tributária. É normal que seja assim. E é justo que seja assim. Isso faz parte da democracia.

Agora, o que acontece? O governo tem uma proposta. Essa proposta do governo foi feita junto com 27 governadores, junto com o Conselho de Desenvolvimento Social e foi enviada para a Câmara. Qualquer proposta de mudança no projeto original enviado pelo governo terá que ter a aquiescência do governo federal, dos 27 governadores e do conselho.

BBC Brasil - Mas então o sr. aceitaria manter a paridade e a integralidade?

Lula - Não. Eu não estou dizendo que aceito a paridade e a integralidade. Essa, e qualquer proposta que for colocada na mesa para ser discutida na Câmara, o governo, ao dizer não, ou ao dizer sim, ou ao dizer que não é essa, nem aquela, que vai ser outra. Se é que vai haver acordo, terá que ser de comum acordo com o governo. Porque a proposta não é do presidente da República. A proposta não é do governo federal. A proposta, na verdade, ela é do governo federal e dos 27 governadores dos Estados. Portanto, nós queremos manter a credibilidade e a confiabilidade que conquistamos junto aos governadores e eles terão que dizer se concordam ou não com qualquer que seja a mudança.

Eu acho que a melhor coisa para a Previdência Social brasileira é o projeto original tal como o governo apresentou.

BBC Brasil - Até porque com essas mudanças a reforma vai ficar muito mais pífia…

Lula - É que o Congresso Nacional, ele, na verdade, se coloca como uma voz da sociedade, né? Não é nenhum pecado original o Congresso Nacional fazer mudanças na proposta do governo. Se a mudança na proposta do governo mudar os objetivos da reforma, realmente não tem sentido a reforma. É por isso que nós queremos preservar o princípio fundamental da proposta original do governo.

BBC Brasil - Ludenrique Campos Freire, de Brasília, pergunta o seguinte: por que o governo federal não consegue deslanchar na área social como deslancharam as administrações do PT nos Estados e nos municípios?

Lula - Eu acho que o companheiro… Primeiro eu fico feliz por ele estar falando bem dos Estados e municípios. Não tem exemplo de que os nossos prefeitos e governadores conseguiram no primeiro ano fazer aquilo que é a proposta do próprio partido que ganhou as eleições. Por um motivo muito simples. Quando você ganha a eleição, no primeiro ano você trabalha com um orçamento deixado pelo governo anterior. E a definição de prioridades era outra. A distribuição de verbas era em função das prioridades de um outro governo, que tinha uma outra concepção administrativa. O que é que nós fizemos nesses seis meses que estamos lá? Nós estamos preparando a base estrutural para fazer a política social que nós fazemos desde 1992 nos municípios brasileiros. Nós criamos o projeto Fome Zero, e a esse projeto foi destinado R$ 1,8 bilhão…

Agora, você não consegue acabar com a fome de 43 milhões de pessoas num toque de mágica. Se fosse assim, não teria fome no mundo. Ou seja, é um processo. Porque o projeto de combate à fome tem reformas estruturais, crescimento da economia, geração de empregos, a reforma agrária, uma boa política agrícola. Enquanto isso não acontece, que isso leva um tempo, você institui um programa de distribuição de cartão de alimentação. Agora, mesmo para você fazer essa distribuição, você tem que ter um belo de um cadastro porque as pessoas não podem receber dois cartões… Nós estamos programados para cuidar disso nas mil cidades em que as pessoas estão com mais fome…

E nós temos que começar com um projeto piloto. Ou seja, nós tínhamos que pegar um projeto e tentar, a partir dele, ou seja, a partir dos acertos dele e dos erros, a gente consertar para entrar nos outros municípios. E o sucesso é extraordinário. Não só porque, se você pegar Guaribas como exemplo, que foi a primeira cidade onde nós implantamos o programa Fome Zero, 250 crianças por mês iam para o hospital por conta de diarréia. Quatro meses depois de implantado o programa, apenas 15 crianças foram para o hospital. Significa que a comida faz muito bem para essas crianças e a gente vai diminuir a mortalidade infantil. A gente vai diminuir a procura por hospitais dessas crianças desnutridas.

A segunda coisa é que aumentou a produção em Guaribas. As pessoas começaram a produzir mais feijão. Portanto, o governo vai comprar esse feijão para incentivar as pessoas a comprarem mais ainda. E o acerto desse projeto vai permitir que nós o levemos para mais mil municípios. E vamos levar de forma gradativa porque nós temos que ir aperfeiçoando a cada vez que implantarmos isso num município. E eu estou convencido de que o programa Fome Zero será um sucesso extraordinário no Brasil. E estou convencido de que outros países do mundo adotarão o programa Fome Zero.

Se você me perguntasse qual é o ideal para acabar com a fome, eu diria: o ideal para acabar com a fome é que todo e qualquer homem ou mulher do Brasil tivesse um emprego e pudesse comer às custas do seu próprio trabalho. Esse é o sonho. Esse é o ideal. Agora, enquanto isso não tem, de forma responsável nós temos que garantir que as pessoas tenham acesso ao mínimo necessário.

Nós estamos fazendo uma excepcional política de saúde. Nós estamos fazendo uma política de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil, estamos fazendo uma fiscalização no Brasil inteiro…

BBC Brasil - O sr. acha que isso está sendo bem comunicado para a sociedade? Porque várias das perguntas que nós recebemos questionavam justamente o sucesso do governo na área social…

Lula - Possivelmente… Eu ainda ontem vi no jornal uma crítica, ou seja é um equívoco de comunicação. Ao mesmo tempo em que a gente lançou um grande programa mostrando o novo recorde brasileiro na safra de grãos, a gente anunciou o investimento de R$ 5 bilhões e pouco do Fundo de Garantia para a habitação. Ou seja, dois anúncios importantes no mesmo dia… Um mata o outro.

Eu estou, com o Ministério do Planejamento e a Casa Civil trabalhando para que, na próxima semana, quando eu regressar ao Brasil, a gente faça publicamente uma avaliação dos seis meses de governo. O que é que foi feito do dia primeiro de janeiro ao dia primeiro de julho. Comparando isso com vários outros períodos de outros governos no Brasil para a gente ter dimensão das coisas que estão sendo feitas.

Eu posso te garantir que as bases de um novo modelo de desenvolvimento, de um novo programa de política social já estão colocadas. Agora, essas coisas não acontecem do jeito e com a rapidez que a gente quer. Um simples pé de feijão que você planta, você tem que esperar 90 dias para comê-lo. Ou seja, então nós temos que plantar as coisas agora, adubar bem, para que a gente comece a colher a partir de agora.

BBC Brasil - Nós recebemos muitas perguntas relacionadas ao MST. José Vicente de Menezes, de São José dos Campos (SP), pergunta se o sr. não acha que o MST passou dos limites. E Carlos Palmério, de Campo Grande (MS), quer saber por que o sr. usou o boné do MST.

Lula - Primeiro, eu devo ter umas cem fotografias com o boné dos sem-terra ao longo desses últimos 20 anos. Eu devo ter umas 50 fotografias com o boné da CUT. Eu devo ter umas cem fotografias com o boné de time de futebol, com o boné de feiras agropecuárias que eu visito. Ou seja… É até uma gentileza quando você recebe uma camiseta, quando você recebe um chapéu, quando você recebe um colete, você colocar. As pessoas te dão para isso.

Eu sinceramente não esperava que o preconceito contra os sem-terra fosse de tamanha envergadura. Os sem-terra, na verdade, têm uma luta que é justa, que é a luta pela reforma agrária. Nós temos um compromisso de fazer a reforma agrária e vamos fazer a reforma agrária. Obviamente que nós vamos fazer a reforma agrária dentro das possibilidades financeiras do governo. Nós vamos mapear todas as terras disponíveis que o Brasil tem para poder fazer o assentamento, porque também o Brasil não tem dinheiro para comprar as terras que nós gostaríamos de comprar.

Os sem-terra estão conscientes de que a reforma agrária tem que ser feita dentro de limitações de investimentos do Estado. E não podem ser feitas como vinham sendo feitas habitualmente. Não basta você assentar. Hoje você tem quase 80% das pessoas assentadas vivendo em situações de pobreza. Muita gente vivendo de cesta básica. Tem gente acampada há seis anos e meio, há quatro anos e meio. E essas pessoas, obviamente, estão radicalizadas. Eu acho que nós temos que ter a responsabilidade de assentá-las. E nós vamos tentar assentar, dando aos assentamentos uma nova característica. Ou seja, nós vamos ter que fazer as chamadas agrovilas, criar condições de ter uma comunidade com hospital, escola, etc.

Nós temos que combinar não só a produção agrícola, como um conjunto habitacional para as pessoas morarem e agroindústria, a comercialização disso… Tem que ser algo mais moderno. Algo que leve em conta a tecnologia, algo que leve em conta a capacidade de produção que as pessoas têm que ter.

É por isso que nós estamos trabalhando com mais carinho essa questão da reforma agrária. Nós nem vamos fazer na pressa que os sem-terra querem, nem vamos fazer na lerdeza que querem os que são contra a reforma agrária. Nós vamos fazer no tempo certo porque o governo tem um compromisso de fazer a reforma agrária.

BBC - Robert, de Atlanta (Estados Unidos), pergunta: que mensagem o senhor tem para os americanos que temem um governo de esquerda no Brasil?

Luiz Inácio Lula da Silva - Bom, primeiro os americanos não têm que temer um governo de esquerda, de direita ou de centro no Brasil. Os americanos têm que temer o governo deles, o governo que eles elegerem, seja um governo democrata ou republicano. O governo do Brasil é um problema do povo brasileiro, portanto tem que prestar contas é ao Brasil. Eu acredito que durante muito tempo se criou fantasmas e sofismas com relação aos governos de esquerda em outros países e sobretudo no Brasil.

Veja, qualquer governo que for eleito no Brasil terá que ter a responsabilidade de atender a vontade do povo brasileiro, essa sim é que é a prioridade de qualquer governo. E para que isso aconteça é preciso que você mantenha uma relação diplomática com todo o mundo, com todos os países. E qualquer governo brasileiro sabe a importância que têm os Estados Unidos na sua relação política, na sua relação econômica.

É o nosso maior parceiro individual, portanto o que nós queremos é manter uma excepcional política de relações diplomáticas e comerciais com os Estados Unidos, mas obviamente que queremos ter a nossa soberania que nos permita tomar nossas decisões de manter relações com quem nós quisermos manter relações.

BBC - Aristides Garcia, de Amsterdã, quer saber o seguinte: o senhor não teme que os Estados Unidos venham a sabotar suas políticas em favor da justiça social?

Lula - Não acredito. Eu acho que o meu papel é convencer os Estados Unidos e também a Inglaterra, a Alemanha, a França e a Itália de que eles precisam efetivamente assumir a responsabilidade de ajudar nas políticas sociais dos países mais pobres. Se é verdade que o século 20 foi o século em que a Europa e os Estados Unidos tiveram uma recuperação econômica, um crescimento sustentável, o século 21 pode ser um século em que se pode ter um pouco de distribuição da riqueza acumulada ao longo desses anos.

Por exemplo, se você ajuda a África a se desenvolver, ou se você ajuda a América do Sul a se desenvolver, você estará facilitando até uma política de comércio exterior dos países desenvolvidos para vender os seus produtos. Então, eu acho que esse é o papel que os países ricos têm de desempenhar a partir de agora, e eu quero aproveitar todas as viagens que eu fizer para tentar convencê-los de que, por exemplo, a integração da América do Sul, que tem 220 milhões de habitantes, tem um PIB de quase US$ 1 trilhão e é um mercado importante para a Inglaterra, é um mercado importante para os Estados Unidos, assim como para a toda a União Europeia. Agora, para a América do Sul se desenvolver, é preciso que haja investimento em infra-estrutura.

Então, esse é o desafio que está colocado para os países ricos, até porque se quiserem combater o narcotráfico, se quiserem combater o crime organizado, se quiserem combater o terrorismo a melhor forma é fazer política social na parte mais pobre do planeta Terra.

BBC - Ingacio Adriassola, de Shiba, no Japão, pergunta: o senhor acredita que uma América Latina unida não pode impor uma política diferente da dos Estados Unidos?

Lula - Veja, nós não somos obrigados a ter uma agenda política idêntica a dos Estados Unidos. Nós queremos uma América do Sul unida. Porque nós temos interesse comuns, porque nós temos fronteira com quase todos os países, menos com o Equador e com o Chile, e porque temos interesses políticos econômicos e sociais na América do Sul. Porque nós acreditamos que quanto mais unidos estivermos mais força nós teremos para negociar, ora com os Estados Unidos, ora com a União Européia.

Ao mesmo tempo, temos que procurar parceiros que não estão estejam diretamente ligados ao Primeiro Mundo, como a África do Sul, a China, a Índia, a Rússia, todos têm muitas similaridades com o Brasil, similaridades tecnológicas, na produção agrícola, similaridade no PIB, na população. Então, nós precisamos procurar outros parceiros até para que, quando formos lutar com a União Européia para reduzir os subsídios agrícolas na OMC, tenhamos mais parceiros e mais companheiros como eu chamava no movimento sindical.

Eu nasci na vida política dizendo em porta de fábrica que a união faz a força, e isso vale para a política também. Se cada país da América do Sul ou cada país da África tentar encontrar sozinho as soluções para seus problemas não conseguirá. É preciso juntar forças, ter uma política comum para que a gente possa enfrentar os nossos parceiros mais ricos como Estados Unidos e União Européia.

BBC - O seu governo deu bastante importância à unificação da América Latina, fortalecendo o Mercosul antes da criação da Alca, e também exigindo que os Estados Unidos abram seu mercado. Agora, quando o senhor esteve recentemente nos Estados Unidos, deu a impressão de ter abandonado esta posição para adotar a posição americana...

Lula - Veja bem, primeiro os Estados Unidos não são donos da Alca. O Brasil é co-presidente da Alca e, portanto, existe um protocolo que diz que devemos tomar uma decisão até 2005, e essa decisão pode ser de mandar todos os principais problemas para a OMC. Os Estados Unidos querem mandar todos os problemas sensíveis para serem discutidos fora da Alca, ao mesmo tempo em que querem preservar sua agricultura, mas querem, por exemplo, que os países pobres negociem suas compras governamentais. Então, em negociação externa, negociação comercial, cada país tem que negociar de acordo com os interesses econômicos daquele país, de acordo com os interesses de seu povo e de acordo com os interesses de sua soberania, e disso nós não abrimos mão.

Os Estados Unidos são um país muito forte. Eles têm um PIB de 10 trilhões, um PIB que representa quase 80% do PIB de todo o continente, têm hegemonia tecnológica e numa negociação de um país fraco com um país mais forte, se não existir nenhum critério de proteção ao mais fraco, a hegemonia do mais forte vai prevalecer e nós não queremos isso, nós queremos é uma negociação em que efetivamente ela seja igual.

Se é verdade que os países ricos falem tanto em livre comércio, é preciso então que eles abram mão de todas as tarifas que eles impõem sobre o comércio, sobre os produtos agrícolas dos países do terceiro mundo e sobretudo da América do Sul e da África. Então, nós queremos uma negociação paritária. Nós achamos que nenhum país do mundo respeita um outro país que não se respeita. Ou seja, qualquer negociador que negociar de cabeça baixa não será respeitado. É importante os Estados Unidos saberem que o Brasil tem interesses econômicos, interesses políticos, interesses sociais, interesses militares e interesses tecnológicos e isso, nós queremos dar igualdade na discussão da Alca e, se não der certo, vai para a OMC. E lá nós vamos resolver isso, vamos brigar mais, vamos envolver mais gente nessa luta. Por isso é que estamos defendendo a união da América do Sul em torno do Mercosul para termos força para negociar a Alca.

BBC - Alfonso J., de Nova York (Estados Unidos), quer saber por que o senhor continua dando apoio ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que - de acordo com o internauta - aprovou uma "Constituição sectária".

Lula - Veja, eu tenho muito interesse no desenvolvimento da Venezuela. Já há algum tempo o Brasil vem trabalhando em parceria com a Venezuela, o Brasil tem investimentos na Venezuela, e o Brasil tem interesses econômicos, interesses políticos e estratégicos na Venezuela. Quando houve um golpe contra o governo do presidente Chávez, propusemos a constituição do grupo dos amigos, propusemos a participação do Brasil, propusemos a participação do Chile, dos Estados Unidos, da Espanha, porque não queríamos criar um grupo de amigos do Chávez - queríamos sim fazer um grupo de amigos da Venezuela. E graças a isso nós fizemos um acordo com a Venezuela, coordenado pelo Gavíria, secretário-geral da OEA.

O que nós queremos é que a Venezuela dê certo. Agora, o que temos que fazer é respeitar a decisão do povo da Venezuela. O Chávez foi votado duas vezes. Ele teve 60% dos votos. Ele é o presidente da República. As pessoas que querem derrotá-lo que derrotem nas eleições. Não dá é para as pessoas dizerem "eu não gosto" e, por isso, ele não pode ser presidente. Então, não vote. O que nós queremos é que a democracia seja respeitada na América Latina e seja respeitada na Venezuela. O Chávez foi eleito duas vezes, portanto ele tem que terminar o seu mandato. Quem quiser derrotá-lo que não o faça através de um golpe, vença-o num processo eleitoral. É isso que ele está propondo e é isso que todos nós queremos que aconteça na Venezuela, no Brasil e em qualquer país do mundo.

BBC - Rivestre Cahachedri, de Jacarta (na Indonésia), pergunta: o que o senhor pensa em fazer sobre a questão da segurança pública se o Rio de Janeiro ganhar o direito de ser a sede dos Jogos Olímpicos de 2012?

Lula - Bom, primeiro eu vou rezar muito para que o Rio de Janeiro seja a sede das Olimpíadas de 2012. Eu acho que o povo do Rio de Janeiro é um povo extraordinariamente maravilhoso. Acho que o Rio de Janeiro é efetivamente um Estado que tem condições de fazer as Olimpíadas. Acho que a cidade do Rio de Janeiro, pela beleza natural que Deus lhe deu, merece ser sede das Olimpíadas e obviamente que nós vamos cuidar de fazer que os Jogos Olímpicos sejam realizados com toda a segurança possível. Esse é o compromisso do governo brasileiro, ou seja que não ocorra nenhum incidente durante as Olimpíadas, a não ser os incidentes da própria disputa, ou seja, alguém vai certamente perder e outros ganharão. Mas, do ponto de vista da segurança pública, do governo brasileiro, se o Rio de Janeiro for a cidade vitoriosa, nós iremos assegurar que todos os participantes terão tranqüilidade e serão tratados como se estivessem em sua própria casa, com muito amor e carinho.

BBC - Gary Dreamer, de University City, nos Estados Unidos, pergunta: o Brasil vai liberar o consumo de alimentos transgênicos para não perder em produtividade para a Argentina e os Estados Unidos e poder fornecer comida em maior quantidade e a preços mais baixos à população?

Lula - Creio que a pergunta carrega uma dose de desinformação muito grande. Neste ano, o Brasil superou os Estados Unidos na produção de soja. E, no ano que vem, vamos superar ainda mais, pois pretendemos chegar em 2004 a 120 milhões de toneladas de grãos. Essa não é a nossa preocupação. Não queremos fazer um debate ideológico sobre os transgênicos. Queremos fazer um debate científico. O governo está promovendo um grande debate científico coordenado pelo Instituto de Planejamento Estratégico, e quando tivermos um resultado tomaremos uma decisão política. Não é uma questão ideológica contra ou a favor, simplesmente, aceito ou não aceito, pensando puramente do ponto de vista econômico ou do ponto de vista ideológico. Não, nós queremos saber simplesmente os efeitos que podem ter a plantação de soja transgênica no Brasil. Nós queremos saber qual é o valor do mercado consumidor da soja transgênica ou da soja orgânica.

Portanto, faremos o debate e depois tomaremos uma decisão. Se os Estados Unidos ou se a Argentina entendem que a soja transgênica é boa para a produção é a auto-determinação de cada país. No nosso caso, queremos fazer um debate bem feito, envolvendo toda a comunidade científica envolvendo os trabalhadores, os empresários, o governo, o Congresso, e quando tivermos um resultado científico tomaremos uma decisão política, sem nenhuma pressa porque esse é um problema que nós temos competência para resolver.

BBC - Um internauta de Genebra, na Suíça, quer saber como as empresas podem ajudar no combate à fome e como o senhor pode convencê-las de participar nesta batalha. E Terry Barry, do País de Gales, pergunta que "garantia o senhor dá aos brasileiros que votaram no senhor de que não vai abandonar a busca por uma sociedade justa e menos desigual em benefício dos interesses econômicos globais".

Lula - Primeiro, eu não fui um candidato inventado, não fui um candidato que alguém tirou do bolso do colete e falou: "esse é o nosso candidato". Eu sou o resultado da evolução política de uma parcela da sociedade brasileira. Portanto, o meu compromisso com essa gente não é programável, está no sangue. E, quando eu deixar a Presidência da República, não vou vir para a Inglaterra nem para a França. Vou ficar no Brasil, em São Bernardo do Campo, onde construí minha vida política, freqüentando os mesmos companheiros e quero olhá-los de cabeça erguida, pois esta é uma conquista minha e que não pretendo abandoná-la nunca, olhar os meus companheiros olho no olho, com a certeza do dever cumprido. E vou fazer o que o Brasil entende que deva ser feito. Nós temos clareza do que precisa ser feito. Temos certeza de como fazer as coisas e vamos fazê-las. Podem ficar certo de que vamos fazer.

Quanto à pergunta do companheiro na Suíça, gostaria de lembrar que uma empresa suíça, a Nestlé, tem participado ativamente do programa Fome Zero, tem participado do programa de primeiro emprego, assumiu o compromisso de gerar 600 empregos para jovens como forma de ajudar o nosso programa de primeiro emprego que deverá ser iniciado dentro de 30 ou 40 dias. As empresas podem ajudar participando do Fome Zero. Nós temos milhares de empresas que estão doando alimentos, dinheiro e não precisa dar para o governo, não, pode escolher uma comunidade e levar para lá os alimentos. Tem muitas empresas fazendo isto.

No último dia 5, eu participei de um encontro promovido por uma ONG que foi criada para ajudar o programa Fome Zero e que reuniu 80% do PIB brasileiro, banqueiros e empresários. Combater a fome não é um problema somente do governo brasileiro. É um problema ético e moral de todo o mundo que vive no planeta Terra.

Partido dos Trabalhadores

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