A força dos almanaques

Nos séculos XVIII e XIX e ainda no começo do século XX, guardadas as devidas proporções, a febre dos almanaques na Europa foi equivalente à febre de hoje provocada pela massa de informação disponível na Internet. Ainda hoje os almanaques daquele tempo servem para desvendar pistas aos historiadores que se aventuram naqueles séculos. Quem quiser saber, por exemplo, onde morava em Lisboa um figurão daquele tempo basta ir à Biblioteca Nacional consultar o Almanaque para o ano de (...), publicado pela Academia Real das Ciências.

Foi pela edição desse Almanaque de 1802 que descobri, por exemplo, que Bocage, ao morar certo tempo na casa do conselheiro José Andrade de Carvalho, na Calçada de Santo André, vivera bem próximo de seu amigo Antônio Bersane Leite de Paula, contador do Arsenal Real do Exército, que habitava com a família na mesma rua.

Pelo Almanaque de 1800, descobri também que o reverendo Julião Cataldi, secretário do Conselho Geral do Santo Ofício a partir de 1796 e censor régio, era vizinho de Bocage na Praça da Alegria à época da prisão do poeta em 1797. Cataldi foi um censor implacável dos versos de Bocage, nos quais via “fogo lascivo e imagens indecentes”. Teria alguma rixa de vizinhos levado Cataldi a carregar nas tintas de seu parecer à edição de Rimas de 1799 (primeira edição do segundo tomo) ou de 1800 (segunda edição do primeiro tomo)? Eis aqui uma questão que nunca desvendaremos, mas que a leitura do Almanaque suscita.

Estas observações vêm a propósito do trabalho da professora Eliana de Freitas Dutra, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, que acaba de lançar Rebeldes Literários da República em que, ao estudar a literatura dos almanaques e, especialmente, do Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914), discute os conflitos e tensões dos meios literários do Brasil de então, um país cuja população, em sua maior parte, vivia no campo.

O Almanaque Brasileiro Garnier, na verdade, pouco tinha a ver com o citado Almanaque para o ano (...), que trazia especificamente informações sobre a cidade de Lisboa. Estava filiado, isso sim, aos almanaques que surgiram mais tarde no mundo lusófono, como o Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, da Livraria António Maria Pereira, de Lisboa, com direção de Antônio Xavier Rodrigues Carneiro, ou até mesmo o Almanaque civil, eclesiástico, histórico-administrativo da província de Moçambique para o ano de 1859, 3º depois do bissexto, que consultei também na BNL para escrever a biografia de Tomás Antônio Gonzaga.

“Num país carente de livros, de leitores, de livrarias, onde a elite intelectual lutava por se estabelecer e parte dela acreditava que a nação ainda estava por se fazer — daí ser necessário ampliar a instrução — e onde a escola formal ainda era para poucos”, como diz a professora, a importância do Almanaque Brasileiro Garnier não pode ser desprezada. Inspirado no Almanaque Hachette, de Paris, o congênere brasileiro, se se preocupava com a dita informação útil e a vulgarização de alguns temas, não se furtava aos assuntos eruditos e ao debate em torno de questões filológicas, de história e de lingüística, entre outros.

Como diz a pesquisadora, o Almanaque Brasileiro Garnier é visivelmente endereçado a um público urbano, aos setores médios das cidades — especialmente Rio de Janeiro, a Capital da República, e São Paulo, que começava a se industrializar —, integrados por funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes de ensino médio e escolas normais e comerciantes.

Enquanto os livros não ultrapassavam mil ou dois mil exemplares — fato comum ainda hoje em dia para autores pouco conhecidos —, os almanaques alcançavam tiragens fantásticas, como os 45 mil exemplares do primeiro número do Annuario Fluminense — Almanach histórico da cidade do Rio de Janeiro, de 1900, ou o Almanach Ilustrado Brasil-Portugal, editado no mesmo ano pela Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, com uma edição de 50 mil exemplares.

O Almanaque Brasileiro Garnier reunia boa parte da geração de 1870, a maioria em atuação na Academia Brasileira de Letras, então recém-fundada, no Colégio Pedro II, ou sob a tutela do barão do Rio Branco, figura de destaque não só da diplomacia como expoente da intelectualidade da época. É o caso de nomes como Sílvio Romero, Araripe Júnior, Graça Aranha, Clóvis Bevilácqua, João Ribeiro, José Veríssimo, Pedro do Couto, Oliveira Lima, Curvelo de Mendonça, entre outros.

A maioria atuava no ensino, no jornalismo e na diplomacia, áreas que sempre atraíram os intelectuais. Esse mesmo grupo seria responsável pela Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, que se encontra ativa até hoje, em sua fase VII, sob a direção editorial de João de Scatimburgo. Dirigido inicialmente por Ramiz Galvão, entre 1903 e 1906, o Almanaque Brasileiro Garnier esteve sob a orientação de João Ribeiro até 1914.

Para a autora, o Almanaque traz maiores marcas de Ribeiro do que de seu fundador. Suas páginas reproduziam artigos que estabeleciam uma estratégia de instrução da sociedade civil, engajada em nome da causa republicana e de uma pedagogia da nacionalidade. Embora na linha de oposição a uma República refém dos interesses agrícolas, a publicação, como mostra a autora, reproduz um esquema que se reflete ainda hoje na ideologia de alguns partidos conservadores.

Para esses conservadores, as massas marginalizadas — sem instrução e sem cultura — são alvos fáceis para a manipulação de demagogos que dizem falar em seu nome. O fracasso da experiência do Partido dos Trabalhadores tem servido, nos últimos dias, para reforçar esse preconceito conservador.

Ao contrário da França, em que os marginalizados são os filhos dos imigrantes, no Brasil é o povo negro ou de origens mestiças aquele que continua sem acesso a condições dignas de vida. Que ainda não tenha despertado para a balbúrdia das ruas, é mistério que intriga.

Cem anos depois, vê-se que as idéias daqueles intelectuais reunidos sob a batuta de João Ribeiro no Almanaque Brasileiro Garnier ainda estão em vigor. É o que mostra muito bem o trabalho da professora Eliana de Freitas Dutra.

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REBELDES LITERÁRIOS DA REPÚBLICA: HISTÓRIA E IDENTIDADE NACIONAL NO ALMANAQUE BRASILEIRO GARNIER (1903-1914), de Eliana de Freitas Dutra. Belo Horizonte, Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 253 págs., 2005.

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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