Dirigente petista prevê "segunda abolição"

Martvs refere-se à eleição de Luiz Inácio Lula da Silva e à criação, pelo governo federal, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que deverá trazer avanços significativos no combate ao racismo e na correção de distorções históricas na questão racial.

Nesta entrevista, o secretário comenta sobre avanços já alcançados pelo governo e suas expectativas para o futuro. Martvs aproveita para pedir que Estados e municípios administrados pelo PT acompanhem o movimento do governo federal, criando seus próprios organismos de igualdade racial. Leia a seguir:

O sr. acredita que o próximo 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, terá uma nova conotação neste ano, já que temos um governo federal preocupado com a questão racial e um organismo com status de ministério para a luta contra o racismo?

Sem dúvida muda muito. A instalação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é como uma segunda abolição e, desta vez, corrigida. Esta segunda abolição vem exatamente pelo fato de este governo estar implementando uma política voltada para os negros e negras do Brasil e que vai permitir efetivamente a entrada desses negros no sistema de governo, no sistema educacional, de trabalho. Vai permitir a inserção que foi negada 115 anos atrás.

Porque a abolição foi apenas um ato formal, que deu liberdade aos escravos, mas não lhes deu o que comer nem onde dormir. O que temos de novidade, 115 anos depois, é que hoje nós temos condição efetiva de possibilitar à população brasileira um novo formato de inserção. E esse formato está sendo dado pelo governo do presidente Lula.

Em que medida essa inserção será possível em apenas quatro anos?

Já existem alguns sinais. O primeiro deles, o presidente Lula deu muito antes da decretação da criação da secretaria, que foi o decreto que aprovou a inserção, no currículo escolar, da história da África. Isso é necessário porque, hoje, as crianças e os jovens negros que vão para a escola não têm uma referência positiva de seus ancestrais.

A historiografia e os meios de comunicação de uma forma geral retratam o negro apenas nas suas posições subalternas, sem levar em conta que, antes de virem pra cá, assim como outras raças, os africanos também tinham uma forma de desenvolvimento econômico, social, político, religioso. Mas o que é trazido é que eles vieram pra cá como escravos, que brigavam muito lá, uns pegavam os outros, vendiam, colocavam dentro do navio negreiro e vinham pra cá. Mas não é isso. Trata-se de uma civilização que, até que digam o contrário, é o berço do mundo.

A África é o berço do mundo. E precisava ser estudada e referenciada tanto quanto a Europa, o Oriente Médio e outros continentes que estudamos obrigatoriamente no currículo escolar. Então eu acho que essa primeira iniciativa do presidente, de inserir a história da África no currículo escolar, de maneira que as pessoas, independente de sua condição de raça e cor, venham a valorizar o continente africano e seus descendentes, esse é o primeiro passo.

Quando isso será implementado?

O decreto já foi assinado e está para ser implementado. A Secretaria de Promoção de Igualdade Racial tem o papel de, junto com o MEC, fazer com que essa implementação ocorra o mais rápido possível. Este é um pequeno passo para que, sem muito estardalhaço, mudemos a mentalidade das pessoas. E a correção dessa desigualdade racial passa necessariamente pela mudança de mentalidade.

Que outras mudanças o sr. espera que ocorra durante o governo Lula?

O governo federal está trabalhando com um novo olhar, voltado efetivamente para o atendimento da população negra. E essa nova forma está visível porque na história da República brasileira nós nunca tivemos um ministro ou uma ministra negra, com exceção do ministro extraordinário dos Esportes, o Pelé. Dessa vez, num primeiro momento de governo, temos quatro. É espetacular. É um avanço que as pessoas ainda não se deram conta. Por isso temos que insistir que há, de fato, uma mudança. O que aconteceu nesses anos todos?

Por que não existia um? Porque não fazia parte da política dos governos anteriores. Uma outra questão que tem que ser trabalhada com mais ênfase é a questão do mercado de trabalho. Diz-se hoje de um número enorme de jovens que não conseguem acessar o mercado de trabalho. Qualquer levantamento de dados mais profundo vai identificar para o mais leigo cidadão que a maioria dessas pessoas é da população negra. Então acredito que programas como o Primeiro Emprego, que vai ser instituído, têm que ter um recorte para negros. E o PT tem que estar muito alinhado, não só através da direção partidária, não apenas da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo, mas temos que estar atentos aos programas do governo federal, para que, em todos eles, possamos colocar uma cunha para enxergar o Brasil como ele é. Somos um partido de ponta, um partido transformador, um partido que vai fazer as reformas estruturais necessárias para este país, e essa reforma tem que se dar no interior do partido também.

E de que forma o PT deve fazer isso?

Acho que o PT tem uma parcela de responsabilidade muito grande nisso porque durante toda a campanha eleitoral fizemos um processo de sensibilização muito grande voltado para a questão racial. Então esperamos um retorno grande. Existe uma necessidade de se criar nos Estados e nos municípios organismos que dêem sustentação a essa política. Então não podemos permitir que, nos Estados, nas grandes capitais e nos municípios em geral, não haja uma Secretaria de Combate ao Racismo. Isso não tem que ser uma ação da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo somente. Isso tem que ser ação do próprio partido lá na base. Do próprio militante de base do partido. E não precisa ser negro para incentivar, para organizar, para chamar as pessoas para criar o organismo. Se há um entendimento de que esta questão é tão importante quanto o presidente acha, não precisa esperar os negros organizarem. Incentive a organização. É incompatível a política que Lula quer implementar no Brasil com a falta de espaço para a questão racial nos municípios e nos Estados. Se não houver esse acompanhamento, será uma política que vai nascer e morrer na Esplanada dos Ministérios. Ela não terá corpo e densidade para apresentar resultados.

Quantas administrações do PT têm um organismo para a questão racial?

Nosso levantamento anterior dá conta de que apenas 35% das prefeituras do PT tinham algum organismo voltado à questão racial. A Secretaria Nacional de Combate ao Racismo está fazendo um novo levantamento e, com ele, vamos tentar sensibilizar nossos prefeitos e prefeitas da necessidade da criação desses organismos. Nós não estamos aqui propondo criar despesas. Existe, nas próprias prefeituras, material humano suficiente para cuidar disso. Falta incentivo, falta uma política voltada para que as pessoas se apresentem e tenham efetivamente condições de trabalhar e de cuidar disso de maneira tão séria quanto nós achamos que deve ser tratada essa questão da igualdade racial.

O sr. é bastante afinado com a ministra Matilde Ribeiro. O que você está sentindo nesses primeiros dias da Secretaria da Promoção de Igualdade Racial?

O que acontece é que a secretaria está passando as mesmas dificuldades que os ministérios estão passado. Não podemos esquecer que houve um corte de R$ 14 bilhões nos ministérios, e os novos organismos também foram afetados por estes cortes. Então as dificuldades estão aí, estão presentes. Mas a ministra está fazendo seu papel. Esses primeiros dias estão sendo de preparação, de diálogo com a sociedade ainda, de formatação efetiva da ação. De toda forma, o que a ministra está tentando fazer dentro dessa contingência é estabelecer algumas ações que serão base para a atuação da secretaria durante este ano. A questão das cotas para negros, por exemplo, é um assunto muito emergente que tem que ser discutido. Aliás, para além das cotas, o que tem que ser discutida é a política de ações afirmativas. E também essas questões do recorte racial nos programas pilotos do governo federal. Agora eu acho que, principalmente do ponto de vista partidário, os nossos ministros poderiam acolher melhor essa idéia da secretaria e da trasnversalidade para que a gente não fique com a impressão de que o presidente criou [a secretaria], mas que não tem ressonância nos ministérios.

A secretaria está planejando a realização de um seminário nacional de combate ao racismo?

Sim. Está definido um seminário nacional sobre combate ao racismo e promoção da igualdade. Estamos aguardando uma reunião com todas as secretarias para definir datas. A princípio, queremos fazer o seminário ainda no mês de novembro, no mês da Consciência Negra. A idéia é tirar um documento para apresentar ao governo. A intenção é trabalhar o que temos de acúmulo até hoje e, dentro desse acúmulo, verificar o que podemos sugerir, o que podemos refazer e incorporar, tudo isso com um olhar para a nova situação do país. Com um olhar passando pelo programa Fome Zero, pelo Primeiro Emprego, reforma da Previdência, tributária e inclusive a reforma política. Queremos estar presentes nessas discussões. Então acredito que o seminário tem que dar conta de trabalhar esses temas. Não se consegue trabalhar a questão racial isolada dos problemas que a sociedade vive. Eles têm que estar efetivamente ligados para que a gente tenha condições de operar. Além do seminário nacional, estamos estabelecendo uma agenda com os Estados para a realização de seminários regionais. Além disso, vamos elaborar alguns impressos que orientem as pessoas a como participar mais efetivamente do combate ao racismo, desse debate sobre a promoção da igualdade no PT.

O debate sobre cotas está muito presente na agenda nacional, e o PT é favorável à política de cotas. O sr. acha que será possível instalar essa política ainda no governo Lula?

Creio que sim. E essa é uma discussão que temos que fazer. Não só é possível, como necessário. Mas não podemos esquecer e perder de vista que o PT é favorável às cotas. Isso tem que ser ressaltado e com todas as letras. Porque, senão, parece que estamos voltando a uma discussão que já foi feita. O PT, por princípio, é favorável a uma política de cotas para negros por entender que há uma distorção racial e social muito grande advinda de problemas que o Estado brasileiro criou. Então nós temos que dar condição para o próprio Estado brasileiro corrigir essas distorções. Nós defendemos isso durante a campanha, e essa defesa foi feita inclusive pelo Lula, então candidato à Presidência. Quando eu percorro alguns lugares, a impressão que tenho é que esse debate nem foi feito no PT, que as pessoas nem sabem que existe política de cotas e nem sabem que o PT defende isso. Acho inclusive que temos que ter uma resolução muito clara sobre isso. O Diretório Nacional e a Executiva têm que se debruçar para tirar uma resolução que não dê margem para duplas interpretações. Somos favoráveis à política de cotas porque há uma distorção histórica grave. E essas cotas, a que somos favoráveis, vai corrigir uma política de cotas que já existe e que ninguém está contestando: que 97% dos que se formam nas universidades são de origem não-negra.

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