JK: OS DOIS LADOS DA HISTÓRIA

É difícil analisar de forma racional o papel histórico de JK, tal o nível de louvação generalizada que cerca sua figura de homem público. Nenhum estadista, nem mesmo Getúlio Vargas, que foi indiscutivelmente o artífice do Brasil moderno, suplanta Juscelino no devocionário nacional, fenômeno ajudado ainda agora pela minissérie encomiástica da Rede Globo.

As razões desse encantamento são várias e perfeitamente explicáveis. Em primeiro lugar, pelo exemplo de homem corajoso, que soube enfrentar todos os desafios – políticos, econômicos e militares – para chegar à presidência da República, governar democraticamente, realizar projetos fundamentais, como Brasília, as estradas e as usinas hidrelétricas, além de impulsionar a expansão do parque industrial brasileiro, iniciativas que mudaram para sempre a cara do País. Seu espírito inovador já se manifestara em Belo Horizonte, quando, como prefeito, idealizou e tornou realidade o conjunto arquitetônico da Pampulha, graças ao talento de Niemeyer, Portinari, Ceschiatti e José Pedrosa, jovens artistas que soube mobilizar com seu entusiasmo, ou a escola livre de artes, sob a direção de Guignard, mais tarde transformada na prestigiosa fundação que leva o nome desse outro gênio das nossas artes plásticas. Ao mesmo tempo, pela pessoa simples, generosa, alegre e boa praça que foi, amante do progresso, das atividades artísticas e da boemia, e que trazia consigo, partilhando-a com seus contemporâneos, uma grande paixão pelo Brasil e a vida.

Esse sentimento profundo de brasilidade contaminou todo o ambiente daqueles dias, coincidindo com o surgimento de fenômenos tão importantes, a exemplo da Bossa Nova e do Cinema Novo, da aparição de títulos culminantes de nossa literatura, como Grande Sertão. Veredas e Memórias do Cárcere; da busca de uma orientação externa independente, inclusive diante do FMI; das revolucionárias pesquisas nucleares de César Lattes e até mesmo da conquista do primeiro campeonato mundial de futebol. O Brasil parecia haver encontrado o rumo, levantando-se por fim de seu letárgico berço esplêndido.

Minhas palavras podem parecer estranhas e inadequadas partindo de quem, desde os tempos do Binômio, jornal nascido justamente da oposição ao governo JK em Minas, mantivera sempre uma atitude crítica, embora não apaixonada ou sectária, à trajetória política do juscelinismo. Como demonstração de que essa crítica não possuía um caráter incondicional, lembro que em 1955 e 1956, no instante em que a oposição udenista tudo fez para impedir sua posse na Presidência e depois que exercesse o mandato até o fim, o Binômio, sob minha direção e do companheiro Euro Arantes, posicionou-se de maneira veemente contra aquela articulação golpista promovida por poderosas forças civis e militares.

Ao lado de suas qualidades e acertos, JK incorreu em gravíssimos erros que precisam ser levados em conta para a correta avaliação de sua ação político-administrativa. O primeiro foi o de não haver implementado, ao redor de Brasília e às margens das estradas que para lá se dirigiam, um gigantesco programa de colonização rural, por meio da desapropriação de áreas direta ou indiretamente favorecidas pela edificação da nova capital. Nesses milhões de hectares então quase vazios poderia ter sido assentada grande parte das multidões que, por não disporem de terra nem de condições de sobrevivência, iriam deslocar-se nas décadas seguintes para a periferia dos grandes centros urbanos, gerando ali os problemas sociais, quase insolúveis, que conhecemos na atualidade. Além de possibilitar o assentamento no campo dessas levas de deserdados à procura de trabalho, o governo teria implantado na região um dos eixos de produção agrícola mais portentosos do mundo, antecipando a presente explosão do agronegócio, com ênfase especial na agricultura familiar intensamente empregadora de mão-de-obra.

Outro erro imperdoável consistiu no tipo de industrialização adotado, sobretudo no setor automobilístico. Em vez de estimular a instalação de uma indústria verdadeiramente nacional, preferiu entregar o setor às montadoras estrangeiras, cujas decisões são tomadas lá fora à margem dos interesses do País. Noutra direção seguiram as nações asiáticas, como foi o caso da Coréia do Sul, que dispõe de um mercado interno muitas vezes menor do que o nosso e que tem hoje seus veículos rodando pelas estradas dos cinco continentes. Para não falar no exemplo do Japão, mais expressivo ainda. Quanto já gastamos com o envio de dividendos dessas empresas para suas matrizes no exterior? Certamente muito mais do que tudo o que investiram aqui. E nem se diga que nos faltasse competência tecnológica para produzir nossos próprios veículos, pois já contávamos com uma base importante, a Fábrica Nacional de Motores, fabricante do famoso caminhão Fenemê, que batia em qualidade seus concorrentes importados. O que foi feito em relação à indústria aeronáutica, com a Embraer disputando os mais diferentes mercados mundiais, poderia ter sido feito com a indústria automobilística.

Outro aspecto profundamente negativo de sua administração foi a ênfase dada ao transporte rodoviário em detrimento do ferroviário, que acabou se tornando uma das causas determinantes do que chamamos hoje de custo Brasil.

Caberia citar ainda a utilização indevida de recursos dos antigos institutos de previdência nos projetos governamentais, em especial na construção de Brasília, num processo que até hoje repercute negativamente nos cofres previdenciários.

E, para não nos estender mais, a leniência demonstrada em face da corrupção, nascida principalmente da promiscuidade com o mundo dos negócios, em particular com o ramo das empreiteiras, favorecidas pelas obras oficiais, tanto em Minas quanto em âmbito federal, algumas delas até hoje muito conhecidas no mercado.

Sei que estou desagradando aos devotos do ex-presidente. Porém, não há como desconsiderar esses dados desabonadores, tão fortes que são, e que paradoxalmente fazem parte do outro lado de um dos momentos mais prodigiosos e fascinantes da história brasileira.

Juscelino foi, sem dúvida, um governante excepcional, à frente de seu tempo, mas cometeu erros irreparáveis que comprometem o balanço conclusivo de sua obra.

*José Maria Rabêlo jornalista [email protected]

(Este artigo faz parte da obra coletiva sobre 50º aniversário da posse de JK na presidência da República, publicada pela revista mineira Mercado Comum.)

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