Palocci analisa os primeiros três meses do governo Lula

Valor — Qual é a sua avaliação desses 100 dias de governo?

Antônio Palocci — É muito positiva dentro daquilo que o presidente Lula se propôs já na transição: a prioridade social naquilo que era emergencial, que é a questão do combate à fome; a articulação política para preparar as reformas; e que iniciássemos um processo de ordenamento econômico do país de maneira a corrigir os rumos da economia, que estavam desordenados, ao final do governo passado. O início do nosso governo foi a tradução dos danos do último choque, em termos de inflação alta, de risco alto, de dificuldade de rolar a dívida, uma sucessão de problemas macroeconômicos de grande porte. Acho que a decisão de fazer uma política fiscal austera, severa, e uma política monetária ajustada, de manter o câmbio livre, foi uma decisão correta, acertada. Inclusive de dissociar essa política do acordo como FMI.

Valor — Mas ainda não está num nível bom, ou está?

Palocci — Não. Nós não estamos contentes com os números, não. Acho que temos que trabalhar muito porque as coisas podem e ainda devem melhorar. Mas a inversão do risco-país e do câmbio foram muito importantes.

Valor — Com a apreciação da taxa de câmbio o governo pretende acumular reservas e ficar mais robusto para choques futuros?

Palocci — Isso tudo nós vamos avaliar a partir do cenário dessas próximas semanas. Nós não estamos excessivamente otimistas. Achamos que os números estão convergindo porque eles não tem como não convergir se a política econômica está ajustada. A partir daí, é lógico, precisamos começar a pensar num cenário novo, em que o país pode se colocar a questão do crescimento econômico num prazo mais curto. É preciso ordenar as reformas de maneira que elas se encadeiam com essas mudanças de indicadores. O que não pode é o excesso de otimismo, de acreditar que a seqüência de medidas deixa de ser necessário, na medida que a resposta é muito positiva. Por exemplo: achar que podemos desprezar as reformas tributária e previdenciária. O risco é esse, negligenciar a nossa agenda. Acho que não. Temos que reafirmar a agenda, porque é isso que tem produzido esse novo momento. E começar a estruturar melhor as políticas de crescimento. Em que tempo que elas vão se expressar é muito difícil definir. Qual o momento que nós vamos poder eventualmente reduzir juros é muito difícil decidir agora. Mas é preciso já ter um cenário de possibilidade.

Valor — O que significa estruturar políticas de crescimento?

Palocci — Temos várias coisas para equacionar, como o problema do setor energético, o que a ministra Dilma [Rousseff, de Minas e Energia] está fazendo de maneira muito adequada. Esse setor veio com um vácuo regulatório importante que precisa ser equacionado. Em segundo lugar, há um conjunto de medidas a ser tomadas sobre crédito. É preciso aumentar a disponibilidade de crédito e reduzir o "spread" bancário. Por isso nós estamos fazendo uma grande agenda junto ao Congresso, que começa com a lei de falências, para atuar nesse ponto da redução do "spread" bancário. A terceira é a questão de infra-estrutura industrial e de exportação. É preciso colocar o sistema de transporte, de portos e outros relativos a custo Brasil, que vão auxiliar nas políticas de produção e de exportação. Em quarto lugar é preciso ordenar o financiamento público, que tem um papel importante no Brasil, tanto para a indústria como para a agricultura.

Valor — Não teria a questão da política industrial?

Palocci — O financiamento público tem a ver, um pouco, com essa questão da política industrial. Na política industrial teremos temas como fomento de tecnologia e inovação, investimento em tecnologia avançada etc. É uma agenda enorme. A definição de como o financiamento público vai ser feito, como ele vai ser ordenado, a que ele vai dar prioridade, qual a relação entre o pequeno e o grande produtor, qual a relação entre a indústria e a agricultura, quais as necessidades de cada setor, tudo isso são dados da política industrial.

Valor — Boa parte do resultado das exportações vem do câmbio. O sr. pretende atuar para melhorar a produtividade da indústria para que dependa menos de câmbio?

Palocci — Eu acho que nós não podemos atuar no câmbio. Eu não tenho receio de que o câmbio varie demais. Acho que ele está se ajustando, mas ele vai se acalmar em determinado tempo. Também não acho que ele vá ter uma superqueda. Não tem porque acontecer situações como essa. Ele está apreciando porque era esperado que apreciasse, estava muito depreciado. Isso tudo tende a ajustar. Nós não estamos agora com previsão de risco de grandes variações. Mas é preciso atuar na questão das exportações porque a reversão da balança comercial foi fundamental para que nós não tivéssemos uma crise recessiva no ano passado. Vários países que tiveram choques da proporção que o Brasil teve no ano passado, tiveram recessão intensa, com queda de 5% do PIB, de 7% do PIB. O Brasil não teve isso pela resposta dada pelas exportações. Isso é um valor do Brasil que deve ser preservado. Mas não pode ser preservado em função de meta cambial. Nós não temos meta cambial e nem queremos ter. Temos meta de inflação e meta fiscal.

Valor — E qual é a alternativa?

Palocci — A alternativa é ter um conjunto de medidas que valorizem a produtividade da nossa indústria e da nossa agricultura. Para que elas ganhem nesse momento não apenas com o câmbio mas com a produtividade.

Valor — O financiamento público significa financiamento com juro subsidiado?

Palocci — Praticamente todo financiamento público tem um nível de subsídio. E isso vai continuar acontecendo. Só acho que deve ser bem escolhido o que fazer e de forma transparente.

Valor — O governo vai definir quem vai vencer e quem vai perder?

Palocci — Não. Podemos fazer a opção de financiar de maneira horizontal. Podemos focar em setores que são essenciais para que o desenvolvimento econômico e das exportações se mantenha.

Valor — O sr. defende uma política mais horizontal?

Palocci — Acho que tem que ser uma coisa combinada. Uma política horizontal, pois não podemos desprezar setores. Ao mesmo tempo, podemos ter focos num planejamento de longo prazo.

Valor — Essa questão está em discussão?

Palocci — Nós estamos dialogando. A Fazenda, o Ministério do Desenvolvimento, a Agricultura, os bancos públicos. Eu já falei com o Iedi, CNI e Fiesp. Estou conversando bastante. Estamos ouvindo todos para compor uma proposta.

Valor — Esse governo não é contra, portanto, a existência de política industrial...

Palocci — Não. Os empresários até nos perguntaram isso, com franqueza. Falamos também com franqueza que não há nenhum viés anti-política industrial. Achamos que isso precisa ser feito de maneira bem transparente porque os fundos públicos devem responder a um interesse público muito definido. O financiamento público deve se refletir em resultados importantes para o país como um todo, não apenas para o setor que recebe o financiamento. É preciso melhorar o perfil do crédito privado porque não há financiamento público para toda a demanda.

Valor — Tem alguma medida nova sendo estudada nessa área?

Palocci — Tem muita coisa que já está no Congresso, mas também tem outras que nós estamos preparando na área de seguro, do crédito. Isso tem um efeito importante. A questão da lei de falências não é só uma questão relativa a "spread" bancário. O Brasil precisa da lei de falências para preservar os ativos físicos, tangível e intangível. O que se perde de empresas pela falta de legislação adequada é muito sério.

Valor — Voltando à questão do câmbio, o sr. acha que esta fase de apreciação do real seria um bom momento para acumular reservas?

Palocci — Não sei se isso é necessário. Este ano as contas externas estão equilibradas. Não sei se acúmulo de reservas é uma estratégia necessária. As coisas estão bem.

Valor — Não seria uma forma de proteger o país de choques externos futuros?

Palocci — Essa é a questão central. Mas essa questão não se responde com reservas. Se responde com reformas. Nós estamos buscando um ajuste de longo prazo. A questão fundamental que queremos mudar na estrutura econômica do país é o governo agir para ter um ajuste de longo prazo. Vamos fazer uma reforma tributária que vai interromper o aumento da carga tributária. O país teve um aumento de 10 pontos percentuais do PIB de aumento da carga nos últimos anos. Para interromper esse processo, é preciso mexer na qualidade dos impostos. A reforma previdenciária vai colocar em perspectiva a sustentabilidade das contas públicas. Estamos fazendo um ajuste fiscal severo para colocar a casa em ordem de fato. A partir daí, o país ficará vacinado, de maneira bastante consistente, contra choques externos.

Valor — Não seria o caso de fazer como a Coréia [do Sul], que acumulou bastante reservas?

Palocci — A Coréia acumulou reservas de exportações. Isso é saudável e vamos fazer. Vamos ter uma política de apoio às exportações, de valorização da balança comercial, mas dando competitividade à indústria e não depreciando o câmbio. Reservas decorrentes do aumento da produtividade são muito bem vindas.

Valor — Quando o país voltar a crescer 4%, 5%, as importações não voltam a pressionar a balança?

Palocci — Essa é uma preocupação, mas a importação dentro de uma política econômica ordenada não é nociva. Ela é importante para dar mais competitividade às exportações. Precisa ver isso com tranqüilidade. Vejo com certo receio quando se diz que é preciso aumentar as exportações e reduzir as importações. Isso pode nos fazer perder competitividade e é por ela que nós temos que ganhar.

Valor — Nessa fase de câmbio amigável, o sr. pode reduzir a parcela indexada da dívida, rolando parcialmente os títulos cambiais, emitir bônus da República no mercado externo. O sr. está pensando em algo dessa natureza? E já tem emissão no exterior sendo negociada?

Palocci — Não está no horizonte mudar o comportamento em relação aos papéis públicos. Emissão no exterior, podemos fazer. Acho que isso [emissão] daqui a pouco vai se colocar para nós, mas não há qualquer decisão tomada. E no longo prazo estamos mudando o perfil da dívida indexada porque estamos rolando só o principal.

Valor — Será necessário um reforço nas metas fiscais para os próximos três anos?

Palocci — Sempre é possível ter superávit maior. A minha pergunta é se é necessário. O acompanhamento que estamos tendo hoje da questão fiscal mostra que o aumento da meta para 4,25% do PIB foi uma medida muito correta. A situação não parece exigir um delta de superávit. Essa história de que estamos debatendo a necessidade de um superávit maior, não sei aonde. Aqui não há esse debate. Estamos discutindo o superávit de 2004 e próximos anos, mas não estamos pressionados para ter algo maior do que já foi feito neste ano.

Valor — Um adicional de saldo fiscal não permitiria maior velocidade na queda dos juros?

Palocci — Se as coisas estão caminhando positivamente não se precisa apostar em velocidade. Precisa ordenar o processo para que a queda possa vir no médio prazo.

Valor — Nesses primeiros 100 dias, e isso é visível em janeiro e fevereiro, a receita fiscal se comportou muito bem mesmo sem as arrecadações extraordinárias e a despesa pública ficou bastante contida. Mas a inflação elevada ajudou...

Palocci — Ajudou, mas quando fizemos a mudança do superávit de 3,75% para 4,25% do PIB mostramos os números. Fazer o superávit de 3,75% já exigiria um esforço fiscal de R$ 2 bilhões e isso o processo inflacionário já cobriria, através do aumento do PIB. Mas o aperto fiscal exigiria mais R$ 3,2 bilhões. Isso é esforço fiscal mesmo. De fato a inflação dá sua contribuição à receita, mas ela também aumenta a despesa, mas com um pouco de atraso. A não ser que seja uma inflação altíssima. Aí as contas públicas viram outra realidade.

Valor — Com o cenário mais otimista que se está construindo, seria possível uma relação dívida/PIB já menor este ano?

Palocci — Acredito que, com esse cenário de hoje, já há queda na relação dívida/PIB. Aí tem que trabalhar para, nos próximos anos, essa queda prosseguir sem que você precise acelerar essa queda.

Valor — O Banco Central acabou de reduzir a previsão de crescimento do PIB para este ano. O sr. acha que, com o cenário mais otimista hoje, é possível uma retomada mais rápida do nível de atividade?

Palocci — É possível que haja retomada ainda no final deste ano.

Valor — O sr. espera uma virada no segundo semestre?

Palocci — Não acredito em virada. Acredito que as coisas vão se alterando para o crescimento lentamente. Isso pode começar só o ano que vem ou pode começar ainda neste ano. Isso depende de uma conjunção de fatores e nem todos estão sob nosso controle. Por exemplo, a economia mundial não está ajudando. Vamos ter que navegar com forças próprias.

Valor — Na medida em que a política do governo vai sendo bem sucedida, há duas possibilidades. Primeiro, que isso confirma que não há muito o que inventar e sossega a ala mais a esquerda do PT. O outro é, baseado na melhora já ocorrida, cair na tentação de dar uma afrouxada, até por pressões políticas...

Palocci — A segunda hipótese é muito perigosa. Já que melhorou tanto, abandonar os instrumentos porque eles são muito duros. Isso é muito perigoso. Aí é admitir que o problema fiscal já está resolvido e não está. Estamos no caminho de resolver e o mercado lê o futuro. Ele está vendo as reformas vindo, uma série de coisas. Se você tira isso do futuro, você traz para o presente uma leitura negativa e piora todas as contas. Isso está claro para o governo. O governo sabe que está trazendo uma melhora na medida em que ele tem ordenado uma agenda consistente de mudanças. É preciso ter clareza de que não estamos com as coisas arrumadas. Estamos no curso da arrumação. E isso confirma, de forma singela, que a política macroeconômica obedece às leis mais simples do mundo.

Valor — Quais?

Palocci — A de que você só pode gastar o que tem, que se você deve, tem que economizar para pagar, que a inflação corrói a renda dos mais pobres, que crescimento inflacionário não traz benefícios. Na verdade o Brasil teve todo o tipo de experiência macroeconômica. Isso ajuda, hoje. Eu tenho dito que eu gostaria, pelo menos, de só cometer erros novos. Seria lamentável para o Brasil se não se olhasse para trás e se cometesse os mesmos erros. Aliás, o risco-país hoje carrega um pouco do efeito dessas coisas do passado. Meta para a inflação, câmbio flutuante, são instrumentos que acho que não devemos abandonar nunca. Agora, é lógico que temos que fazer uma política de crescimento, de geração de emprego, de melhora geral dos investimentos sociais. Aplicamos o remédio amargo e esperávamos a resposta, mas nosso objeto maior é ajustar as contas para o país crescer. Acho que esse foi um erro do governo anterior. De alguma forma eles acreditavam que a política monetária ajustada, o superávit fiscal, o equilíbrio ajustado no médio prazo trariam o crescimento e não trouxe.

Valor — Mas em 2000, quando tudo deu certo, o país cresceu mais de 4%...

Palocci — É verdade. Mas se, além de tudo dar certo, tivesse um plano de ação na questão da infra-estrutura, da competitividade empresarial, na distribuição da renda, então o que vem vem mais forte e mais sustentável. E se ao lado disso você estiver fazendo um ajuste fiscal sustentável, e não criando imposto para pagar o déficit, aí é mais um elemento de crescimento sustentável para o Brasil.

Valor — E a política de crédito que o sr. tem mencionado?

Palocci — Nós estamos estudando o crédito em vários níveis: o crédito privado, as cooperativas, o microcrédito e os correspondentes bancários. Para nós interessa atuar em todos esses níveis. A experiência do banco do povo em Bangladesh é extraordinária e eles emprestam até US$ 27,00. O Brasil precisa dar vazão a isso. Não está pronto ainda, mas podemos fazer um crédito bem baixinho, vamos supor, R$ 30,00. E ela, pagando, recebe outro. Pode comprar camiseta para o filho ir para a escola, ou um chinelo. Não é necessariamente para produção — o cooperativo, sim — mas estamos estudando crédito pessoal para pessoas de muito baixa renda nos correspondentes bancários, com juros simbólicos. Isso cria um movimento econômico num ambiente de pouco acesso à renda. Seria quase que como um cartão de crédito. Nessa área, estamos estudando a redução do "spread" bancário, financiamento público de vários níveis, cooperativas, microcrédito e o crédito popular. E, no crédito público, é preciso definir prioridades. Será que o que o BNDES fez nos últimos cinco anos é o mais adequado? É preciso ver isso de forma transparente, conversar com os setores, para definir melhor.

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