Amorim: Alca não é prioridade do governo

O ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) afirmou em entrevista publicada nesta segunda pelo jornal Valor Econômico que o governo Lula já definiu sua política externa e que a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) não é uma prioridade. Ele também ressaltou que a política externa do Brasil já mudou. Leia a íntegra da entrevista:

Valor - As grandes linhas da política externa atual já existiam, como esta aproximação com a América do Sul. O que mudou, então, com o governo Lula? Foram as ênfases?

Celso Amorim - As ênfases não são coisas de se jogar fora. A ênfase na África é algo evidente. O presidente vai visitar cinco países africanos. Eu mesmo, no terceiro mês de governo, já havia visitado sete países. Na América do Sul houve algo que jamais se fez.

Valor - O quê? Amorim - O presidente recebeu, para visitas de trabalho, 11 chefes de Estado e de governo. Todas essas visitas foram seguidas de programas efetivos, com o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] envolvido. Houve anos de discussão para saber se haveria uma segunda ponte no Paraguai. O presidente foi lá e disse: "Vai ter a segunda ponte". A principal mudança em relação à minha própria experiência é que eu vejo que agora o político predomina sobre o burocrático. O político com "p" maiúsculo e estratégico não exclui absolutamente o econômico, mas predomina sobre o econômico de curto prazo, sobre aquela "vantagenzinha" menor.

Valor - A prioridade é partir para o Terceiro Mundo e desistir do Primeiro? Amorim - Não. O presidente não deixou de ir à França, à Alemanha, inclusive, num período importante — antes da guerra do Iraque. Não é que estejamos abandonando as outras parcerias. Estamos querendo ampliar as nossas parcerias, mas queremos fazer isso efetivamente, não retoricamente. O presidente esteve com o Bush [George, presidente dos EUA] numa reunião de trabalho que nunca houve. Nem Fernando Henrique nem nenhum outro presidente do Brasil tiveram. A busca das outras parcerias não nos enfraquece em relação a essas parcerias mais tradicionais. O presidente já esteve em vários países da Europa, aceitou convite para o encontro da Terceira Via. Poderia haver uma resistência ideológica do PT, mas o presidente foi lá e conseguiu levar a mensagem dele.

Valor - Houve resistência dentro do próprio governo à participação no encontro da governança progressista? Amorim - Houve uma reflexão. Se o presidente chegasse lá apenas para ter uma aula de como é que devemos nos comportar, obviamente, não serviria. Quando ficou claro que não seria assim, que haveria oportunidade para cada um expressar seu ponto de vista, e quando sentimos também que até outros presidentes com os quais temos afinidades achavam importante a presença do Brasil, até para fazer com que a governança progressista se tornasse mais progressista, a decisão do presidente foi participar. Em política, o que também vale para política internacional, não se pode deixar espaço vazio. Se deixar, alguém ocupa.

Valor - O presidente disse que a Colômbia deveria entender que o Brasil é que pode ajudá-la e não os EUA. Têm-se repetido críticas diretas ou indiretas aos que dão preferência às relações com os EUA. A nova diplomacia não tem um forte componente antiamericano, às vezes ideológico e até demagógico? Amorim - Por que ideológico? A não ser que você considere ideológico ser submisso aos EUA ou independente, mas houve governos independentes que eram de direita. O governo Geisel, por exemplo. Era de direita, mas não era submisso. E jamais concordaria que o discurso do presidente é demagógico. O discurso é real. Seria demagógico se fossem palavras ao vento, com pouco significado prático. O que está acontecendo no governo Lula é exatamente o contrário. Estamos dando significado prático a coisas que, antes, eram palavras ao vento.

Valor - Por exemplo? Amorim - A integração da América do Sul. Esse acordo do Mercosul com o Peru foi histórico. Quem falou que o acordo é o primeiro passo para criação de uma Comunidade Sul-Americana de Nações não foi o presidente Lula, mas o presidente Toledo [Alejandro, do Peru].

Valor - O governo anterior não fez nada nessa direção? Amorim - O presidente Fernando Henrique fez uma reunião de cúpula aqui, mas talvez tenha levado muito tempo — seis anos. Se tivesse feito no primeiro ou no segundo ano de governo, já estaríamos muito mais avançados na integração. O acordo com o Peru só ocorreu porque houve a determinação e a vontade política do presidente Lula.

Valor - Nota-se em declarações e discursos que o governo Lula dá preferência clara às negociações multilaterais. Faz-se isto em prejuízo da Alca? Amorim - Acho que [a Alca] não deve ser nossa prioridade, mas não quer dizer que não se faça. Muitas coisas que você faz não são prioritárias, mas fazem parte da vida. Eu, particularmente, gosto mais de cinema que de teatro, mas de vez em quando não deixo de ir ao teatro.

Valor - Por que, então, fazer a Alca? Amorim - Acho que a Alca tem pontos positivos. O mercado americano para bens industriais não é um mercado que possa ser ignorado, é o maior do mundo. Entre os países desenvolvidos, é um dos poucos que têm crescido. Seria loucura desprezar isso. Agora, você tem que saber o preço que está disposto a pagar para ter certas vantagens. O preço tem que ser proporcional. Os americanos gostam muito de dizer que o Brasil tem que ser realista. Claro, todos temos que ser ambiciosos e realistas. Ora, não dá para ser realista com os meus objetivos e aceitar que você seja ambicioso com os seus. É preciso ter um equilíbrio de realismos.

Valor - Que vantagens o Brasil pode ter com os EUA? Amorim - Numa análise de acesso a mercados, o Brasil tem o que ganhar. Agora, dizer que os EUA não têm nada a ganhar e que, por isso, não têm o que conceder, não é verdade. O mercado brasileiro de bens, tanto industriais como agrícolas, também é importante para eles, assim como o mercado de serviços. Não quero negociar algo que seja desfavorável. Não vou negociar um protocolo de telecomunicações no meio de 30 outros países que não têm nenhum interesse no assunto, que assinam qualquer coisa. Para o Brasil, é preferível negociar direto com os EUA porque preserva seus interesses.

Valor - Há uma divisão no governo quanto à Alca? Amorim - Eu só expresso o que o presidente Lula pensa.

Valor - O presidente Lula já fez, então, uma opção entre os diferentes grupos conflitantes do governo? Amorim - Não vejo que haja grupos. Há ênfases naturais, há ministérios que são setoriais, que têm as preocupações de seu setor. E o Itamaraty é um ministério político. Não no sentido de ser dirigido por um político, mas no de ter a preocupação de fazer a mediação desses interesses todos e também de pensar no Brasil para a frente.

Valor - A Fazenda e o Desenvolvimento estão preocupados com a possibilidade de o Brasil perder acesso a mercados se a Alca se esvaziar. Amorim - Do que eu assisti, não foi a preocupação tanto de perder acesso a mercado, mas no sentido de que a pressão do outro lado seria mais sobre tarifas industriais. Acho que essa é uma visão imediatista. Nossa preocupação de tirar da negociação da Alca temas como compras governamentais é justamente para proteger a indústria, não essa ou aquela indústria. É a política industrial como um todo.

Valor - Que risco o país correria se perseguisse um acordo mais amplo com os EUA? Amorim - Em propriedade intelectual: se você tivesse aceito um acordo como o do Chile com os EUA, o Brasil não teria condições de fazer a política de saúde que está fazendo. Provavelmente, não poderia nem ter política industrial que privilegiasse a inovação. Por que os EUA querem discutir isso na Alca? Porque querem obter na Alca o que não obtiveram na OMC [Organização Mundial do Comércio].

Valor - E por que não obtiveram vantagens na OMC? Amorim - Porque na OMC há países como a Índia, a China, o Egito, que têm a preocupação de política industrial, de política tecnológica, de projeto de país. O tabuleiro da Alca não é favorável para o Brasil discutir certos assuntos. Se forem as regras de comércio, prefiro discutir na OMC. Da mesma maneira que eles também preferem discutir na OMC os subsídios agrícolas.

Valor - O sr. é contra a Alca? Amorim - Não sou contra a Alca. A Alca possível em janeiro de 2005 é um acordo que pode avançar em acesso a mercados, prazos. Nas ofertas que fizeram a nós, os americanos puseram produtos agrícolas de nosso interesse com prazo de 10 anos e, mesmo nesses casos, não puseram a tarifa chegando a zero nunca. Quotas tarifárias: isso ninguém diz que é obstrução, todo mundo achou normal. Quando o Brasil chega e diz que propriedade intelectual é na OMC, aí, a gente está fazendo obstrução. Acho que o problema é que há, infelizmente — aí vão dizer que sou ideológico —, um certo colonialismo cultural. Não é só em relação aos EUA.

Valor - Nos anos 70, o Brasil se aproximou da África e sofreu calote no pagamento de dívidas. Por que voltar a essa estratégia? Amorim - O PIB [Produto Interno Bruto] da África do Sul deve ser menor que o da Argentina, mas não muito. É um país de 35 milhões de habitantes, renda per capita parecida com a do Brasil. Não é desprezível. Nossas exportações para a Índia passaram de US$ 1 bilhão, então, é algo que tem grande potencial. Agora, você há de convir que é uma coisa também política.

Valor - Qual foi o sentido de uma aproximação política do Brasil com a França, a Alemanha e a Rússia, que declararam posição contra os EUA à época da guerra do Iraque? Amorim - O Brasil favorece uma multipolaridade no sistema internacional. Claro que somos realistas e sabemos que hoje há uma superpotência, a única, muito mais poderosa. Se você analisar qualquer sistema internacional, quanto mais multipolar ele for, maiores são as possibilidades de manter a paz e a estabilidade no mundo e menores serão os pontos de dominação por parte da superpotência. O poder não é só militar. Hoje em dia, a humanidade tem certos limites do que se pode ou não fazer. Embora o poder militar seja muito importante, há outras formas de poder exercidas: diplomáticas, políticas, econômicas. A nós interessa que haja, tanto quanto possível, com realismo, um certo equilíbrio entre esses poderes.

Valor - O que o sr. buscou nas sucessivas reuniões com esses países desenvolvidos para falar da guerra? Amorim - Busquei entendimento. Nada do que se passa no mundo é indiferente. Tivemos a prova dramática com a morte do Sérgio Vieira de Mello. Tudo de alguma maneira nos afeta. Não podemos fazer política de avestruz. Qualquer coisa que abale a paz do mundo mais cedo ou mais tarde vai mexer com você. Eu digo aos meus alunos de ciência política: "você pode não se interessar pela política, mas a política se interessa por você". As primeiras tentativas de contato específicas sobre a guerra do Iraque, tanto no caso da Alemanha quanto da França, partiram deles. Chirac [Jacques, presidente francês] e Schröeder [Gerhard, primeiro-ministro alemão] ligaram para Lula.

Valor - Costurar uma aliança com os países não-industrializados é uma maneira de ter força nesse mundo desenvolvido? Amorim - Não há dúvida, até porque tem legitimidade. Na discussão de medicamentos, a participação das ONGs dos países desenvolvidos foi fundamental. Nossos argumentos, além de defenderem nossos interesses, mostraram força moral, o que se expressa dentro dos países desenvolvidos, em pessoas que votam lá. No caso agrícola, vamos passar a mesma coisa.

Valor - O Itamaraty não permitiu que um grupo de brasileiros, imigrantes ilegais e presos em Londres, retornasse ao país num vôo fretado pelo governo inglês. Diz-se que os presos queriam vir. Não foi uma alta dose de demagogia na política externa? Amorim - Se houvesse uma demanda unânime para vir de qualquer maneira, a gente teria feito. Recebi telefonema até de governador dizendo que seria humilhante se chegassem os brasileiros assim, tratados que nem gado. Não é uma percepção só do Itamaraty.

Valor - Na comparação entre as duas políticas, o sr. acha que a diplomacia anterior era mais cordata? Amorim - É. Cordata é uma boa expressão.

Valor - Como esta nova política externa vai enfrentar o desafio do país de exportar mais para financiar as contas externas? Amorim - Isso não depende de mim. Acho que tem que investir em tecnologia. Eu não tenho que dizer se o Brasil deve ou não ter indústria de bens de capital ou se deve ou não ter indústria de química fina. O que compete ao Itamaraty é, se amanhã você resolve ter uma indústria de bens de capital, descobre que não pode mais, porque o Itamaraty fechou um acordo que não lhe deixa fazer nada.

www.pt.org.br

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Pravda.Ru Jornal
X