Antes que seja tarde demais

Formalmente anunciadas em fevereiro do ano passado, as contas ideologizadas do ministro Palocci e do presidente do BC, Meirelles projetavam para o país um crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) em torno de 2,8%. Como as taxas de juros foram catapultadas, por quatro meses seguidos (fevereiro-maio de 2003), para 26,5% a.a., as estimativas passaram a ser logo desacreditadas.

A nova política externa brasileira, altaneira e imprescindível, contribuía decisivamente para acentuar o contraste entre a sabotagem financeira do rescaldo eleitoral e os argumentos da ortodoxia econômica em nome da governabilidade. Viu-se depois a aparência transformar-se em essência.

Nos meados do mês de julho, certamente ouvindo as sopradas proféticas do Dr. Palocci e seus colaboradores, o presidente Lula afirmou que o Brasil estava às portas de "um espetáculo de crescimento". Evidentemente, dada a completa falta de sanidade dos autores da "cascata" sussurrada ao pé-de-ouvido do presidente, logo desconversou-se sobre o assunto.

Semanas depois, Palocci e o ministro Mantega (Planejamento), só faltam se engalfinhar pela imprensa, um contestando as estatísticas do outro, desta feita sendo a celeuma verborrágica se crescimento do PIB seria maior ou igual a 1%, quando se findasse 2003.

Na reta final do ano, ficara explícita a amálgama de interesses entre os núcleos de poder da Fazenda e do BC com os círculos mafiosos do capital financeiro, à medida que, com o presidente Lula em Moçambique, em viagem à África, o ministro da Fazenda chamou e reuniu-se às pressas com Ana Krueger, uma das chefonas do FMI. Nos noticiários televisivos, Palocci, lado a lado a uma visivelmente encantada Krueger, anunciou a renovação dos acordos com o Fundo, sendo sabedor que o presidente da República criticara de viva voz tal procedimento com ele ausente do país. Estranhamente, novamente desconversou-se, e a seguir selou-se o contrato com a manutenção de um superávit fiscal igualzinho ao anterior: 4,25% do PIB. Anunciou-se um "refresco" de cerca de R$ 2,9 bilhões para hipotéticos investimentos em saneamento básico.

Ainda em dezembro, numa reunião nacional da Direção do PT, todas as pessoas sérias que acompanham economia do nosso país pelos jornais, os profissionais da área, grandes burgueses, e mesmo a base de sustentação parlamentar do governo Lula não acreditaram no que estavam a escutar: o Dr. Antonio Palocci declarou então que, por ele, o superávit fiscal elevadíssimo — muito além de certos compromissos de campanha — deveria ser mantido "por dez anos". Isto depois de um ano de aumento do desemprego, de queda da renda do trabalho e enorme aumento dos lucros "financeirizados", etc., etc.

Naquela reunião de dezembro, mais novidades: Palocci disse estar pronto para enfrentar o debate sobre a "autonomia" do BC, com armas e bagagens; no que deixava clara a sua vontade egóica, ou em atender os desejos do FMI e do FED (BC dos EUA) em esquartejar o que resta do poder do Estado brasileiro no controle do BC. O que fez questão de defender, em mínimos detalhes, numa entrevista dada a revista Veja (18/2/2004). Segundo lá inventou Palocci, a independência do BC, na lei, "aumenta a transparência", o "controle da sociedade", e que isto é "uma conquista institucional de longo prazo".

De falsidades e fracassos

Pois bem. Um ano depois dos prognósticos — chutes, irresponsabilidades — da cúpula da Fazenda e do BC, deu-se o anúncio do IBGE sobre o crescimento do PIB em 2003: -0,2%. Uma retração na economia que não era vista desde 1992, quando o PIB caiu 0,54% frente a 1991; já o PIB per capita caiu 1,5%, ano passado. Nos últimos 10 anos, o crescimento médio real anual do PIB per capita foi de 1%, donde a redução do PIB per capita no ano passado foi o pior resultado desde 1992.

De acordo ainda com o IBGE, o chamado agrobusiness e as exportações estiveram entre os segmentos que escaparam da queda do PIB de 2003: a agropecuária apresentou crescimento de 5,0%, tendo a indústria fechado com queda de 1%, e o setor de serviços caindo em 0,1%. As exportações cresceram 14,2%, enquanto as importações caíram 1,9%.

Simultaneamente, houve ultrapassagem da marca dos R$ 800 bilhões da dívida pública interna. Desnecessário comentar qualquer coisa. Todavia seria tremendamente hipócrita omitir comentar o que circundou as declarações do Sr. Horst Köhler, diretor-gerente do FMI, após expediente inusitado: um convite do presidente Lula, para uma reunião-churrasco, na Granja do Torto (29/02/2004), Palocci e Meirelles a tiracolo. Segundo Köhler, a propósito do pleito do governo de se refazer o cálculo da meta do tal superávit fiscal, "é preocupante que esses investimentos [em infra-estrutura] em muitos países da região [América Latina] tenham declinado na última década" (Folha de S. Paulo, 1/3/2004, p. B-6). Isto não é mais cinismo, e sim coisa de patife profissional.

Para que isso fique claro é só prestar atenção no "troco" que Köhler deu, dia seguinte, aos de seus bem-aventurados crédulos em seus credores. Se no domingo Köhler já tinha alertado sobre a necessidade de se manter, em qualquer hipótese, "o arcabouço de uma política fiscal prudente", na segunda-feira mudou totalmente de conversa sobre um novo cálculo para o superávit: "Não posso prometer que até a primavera deste ano, porque é necessário que o conselho do FMI trate do assunto" (Valor Econômico, 2/2/2004, p. C-2).

E emendou o diretor-gerente a propósito da outra "idéia" de Palocci (a de que o FMI aceite um "cheque especial" a ser usado nos momentos de crise): membros importantíssimos do Fundo "são absolutamente contrários a essa idéia". São os EUA, arrematou R. Bittar (Valor Econômico, idem, p. C-1).

No entanto, o simulacro circense não seria apenas ilustrado pelo ambiente de intimidade gastronômica que agasalhou o marechal de campo do FMI e seu constrangedor descaramento. O ministro Palocci, que apareceu às TVs e fotógrafos, rindo, alegrinho, como se diz, não teve coragem de não ser mentiroso novamente: se em dezembro defendia mais "dez anos" de superávit fiscal — uma provocação —, por que agora ele gargalha e encena negociação para calculá-lo em novas bases? Porque a vida se encarregou de mostrar que a manutenção da orientação de política econômica, até agora, foi o mais rotundo fracasso para o país, e um sucesso para os banqueiros e rentistas daqui e de fora; bem como mais desespero para os trabalhadores, empregados ou desempregados.

Inegável, por outro lado, a insatisfação praticamente consensual que grassa contra as falsidades de Palocci e Meirelles. Questão essa que assumiu aguda dimensão política, nos dias que correm claramente ligada à onda moralista das mais rasteiras, contra o ministro Dirceu, que vinha se opondo abertamente ao crescente poder paralelo da Fazenda e do BC. A batalha contra os governistas representantes do rentismo já não tão camuflados, pública e de temperatura em rápida elevação, tem e terá razões de sobra.

Dito o acima de outra maneira: então, duas frentes de luta? Parece mesmo não haver outra saída. Aliás, foi o grande Lênin quem certa feita falando sobre a dureza da luta de classes, de suas diversas formas de manifestação, na Rússia pré-outubro de 1917, saiu-se com essa pérola: "Quem tem medo de lobos, que não entre no bosque" [2].

Quem por acaso duvidar disso tudo, então escute as recentes declarações do Sr. Paulo Levy, diretor de macroeconomia do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, do Planejamento), exatamente sobre as perspectivas da economia para 2004: "Haverá crescimento, mesmo que em ritmo um pouco menor do que a gente imaginava na última projeção" (O Estado de S. Paulo, 28/02/2004, p. B-3). "Ritmo um pouco menor...", revelou Levy.

Quer dizer, muito provavelmente não deverá ser mais de 3,5% a taxa de crescimento do PIB neste ano, há meses "projetada" pela equipe econômica do governo Lula. E quando virá a nova "projeção"? Quando o país for arrebentado por uma nova crise cambial, em função da necessidade crescente de financiar uma economia endividada e escancarada à especulação? Como fazer então não somar a herança maldita que nos impôs FHC, vez que não deve haver o nível de crescimento econômico "previsto" para 2004 e a equipe econômica enxerga uma "crise" no horizonte? Quantos novos desempregados e miseráveis teremos então?

Já se escreveu à exaustão: o capitalismo brasileiro é uma máquina infernal de reprodução ampliada de desigualdades sociais. Mesmo o volumoso crescimento econômico que o país obteve entre 1947-80, de 7,1% ao ano, não conseguiu paralisar esta máquina gigantesca de concentrar a renda espalhar miséria em larga escala.

Sejamos claros e definitivos: em se persistindo o programa econômico liberal radical, contrarrestado agora exclusivamente pela política BNDES, não haverá crescimento econômico sustentado, tampouco qualquer garantia de retomada do desenvolvimento. No máximo ocorrerão soluços, ou curtos períodos de taxas do PIB um pouco mais elevadas - o que não tem qualquer significado social.

Repetindo, hoje, com a atual política econômica, como bem disse o professor Belluzzo é difícil imaginar uma forma da economia crescer, "Salvo — aduziu — "com rituais de magia negra" (Estado de S. Paulo, idem). Na mesma linha de raciocínio, segue o destacado historiador norte-americano, Robert Brenner (UCLA, Los Angeles), para quem a austeridade draconiana determinada para "conquistar a confiança do FMI, dos investidores, dos credores internacionais", dificilmente não resultará "em estagnação, econômica pontuada por crise financeiras", com enorme custo para o povo, igual ao ocorrido nos governos de FHC (Folha de S. Paulo, 1/3/2004, p. A-12).

Austeridade fiscal e monetária, de taxas de juros nas alturas - justificadas por uma ameaça inflacionária que, definitivamente, não existiu -, inclusive inspiradoras da conhecida exacerbação metafórica do professor Delfim Neto, a respeito da manutenção pelo BC/Fazenda das taxas de juros de 16,5% : na ata da última reunião do COPOM (Comitê de Política Monetária) há "terrorismo", escreveu ele; ela "soa como um carro bomba: Co... pom!"( "A ata onomatopéica", Valor Econômico, idem p. A-2).

Quem avisa amigo é. Karl Marx, criticando a formulação de Hegel, acerca do aparecimento "como que duas vezes", na história universal, dos grandes fatos e personagens, enunciara que ele esquecera de acrescentar "uma vez como tragédia, e a outra com farsa" [3]. Ninguém até hoje neste planeta conseguiu desmenti-lo.

É inaceitável a continuidade de uma plataforma econômica que jogou o país na mais profunda regressão social da sua história, numa tragédia. Portanto, os que querem persistir neste caminho não conseguirão se desvencilhar da alcunha de farsantes.

O problema central da vida brasileira é concentrar os esforços para a mudança imediata da política econômica. E junto ao estorvo econômico neoliberal despejar os membros da equipe econômica que insistem no escárnio ao povo e à nação.

Diário Vermelho

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